No dia em que Obama foi eleito pela primeira vez, fez um belo discurso, aquele que abriu assim: "Se ainda alguém duvida que na América é tudo possível, que o sonho dos nossos pais fundadores ainda vive, esta noite é a resposta." Mas ele não foi o único a falar nesse dia. John McCain, o seu adversário republicano, no discurso de reconhecimento da derrota, disse: "Há um século, o Presidente Theodore Roosevelt convidou Booker T. Washington a jantar na Casa Branca, o que foi considerado um ultraje em muitos lugares americanos..."
Naquele discurso, o senador McCain, acabado de se dar conta da sua amarga e definitiva derrota, preferiu glorificar o dia. No momento em que um negro entrava na Casa Branca para mandar nela, ele lembrou aquela noite de 1901 em que o negro Booker T. Washington foi simplesmente lá jantar. "A América de hoje está longe dos cruéis erros de ontem e nada demonstra melhor isso que a eleição de um afro-americano para presidente dos Estados Unidos", disse John McCain, a 5 de novembro de 2008. Os americanos gostam de pequenos passos que se transformam em saltos históricos. E os seus políticos, os grandes, sabem da sua obrigação em lembrar os momentos redentores. Mesmo quando acontecidos à sua custa.
A historiadora Deborah Davies soube daquele encontro ao ouvir o discurso extraordinário do republicano derrotado. Há quatro anos, ela publicou o livro Guest of Honor (convidado de honra), dedicado inteiramente àquele jantar na Casa Branca que chocou uma nação. Theodore Roosevelt era um filho das famílias aristocráticas de Nova Iorque, ex-governador do estado de Nova Iorque e um dos pais dos parques naturais americanos, política notável que não tem equivalente na herança social que deixou. O episódio com Booker T. Washington foi isolado. Este era um autodidata e pedagogo, filho de escravos. A universidade negra que ele fundou em Tuskegee, no Alabama, foi fundamental na história da emancipação da comunidade negra nos Estados Unidos. Os seus adeptos chamavam-lhe o Moisés Negro.
Os dois tinham-se encontrado, na Casa Branca, porque o presidente precisava de um conselho do afro-americano influente. Quatro décadas depois da Guerra Civil, as sociedades branca e negra viviam segregadas mas encontros destes, de trabalho ou oficiais, já eram comuns. Ao fim de algumas horas e a reunião indo pela tarde dentro, o presidente percebeu que precisava de prolongar a conversa. Hesitou mas num repente - Teddy Roosevelt era impulsivo - convidou o outro para o jantar de família, com a sr.ª Roosevelt e três filhos, entre os quais duas jovens. Trabalho é trabalho, mas convivência social, isso, já era inédito e sem jeito... Booker T. Washington ainda hesitou, mas aceitou.
Um repórter, destacado na Casa Branca, noticiou o jantar e o escândalo rebentou. Nos estados do sul, mais racistas, jornais titularam: "Pretos na Casa Branca". E um senador do Mississípi declarou que a Casa Branca estava "tão saturada pelo cheiro a pretos que os ratos se refugiaram nos estábulos". Um assassino, conta Davies, chegou a ser contratado para ir a Tuskegee atirar em Booker T. Washington.
A Casa Branca tentou pôr água na fervura. Que não fora bem jantar, só lanche e, sobretudo, não em presença das senhoras... Anos depois, Edith Roosevelt, já depois da morte do marido, confirmou que Booker T. Washington tinha estado mesmo na sala de jantar e à mesa da família. E só na década de 1930, um político negro e a sua mulher foram recebidos na Casa Branca. Eis as razões que levaram John McCain a perceber a dimensão histórica, e a proclamá-la, de um negro, em 2008, ser convidado pelo povo americano a entrar na Casa Branca, para almoçar e jantar, dias, semanas, meses e anos, até o povo e a Constituição o substituírem.
Depois dos magníficos discursos de Barack Obama e de John McCain, surgiu a gentileza do presidente que acabava o mandato, George W. Bush: "Já convidei o presidente eleito e a sr.ª Obama a vir à Casa Branca logo que quiserem." É da tradição os presidentes convidarem os sucessores, no intervalo que vai da eleição à tomada de posse em fins de janeiro, a visitar a casa em que serão inquilinos. A dona de casa Mamie Eisenhower passeou a cosmopolita Jackie Kennedy julgando-a encantada, quando esta analisava as mudanças radicais que iria fazer aos cortinados.
Isto remete-nos, claro, para outra possível situação inédita a acontecer, oxalá, no próximo novembro (a alternativa é, como se sabe, uma situação patética e trágica). Então, teríamos, nessa desejada hipótese, a eleição de Hillary Clinton. Uma mulher na Casa Branca e não como primeira dama! Haveria algum interesse, talvez, em acompanharmos Michelle Obama a mostrar os cortinados a Bill Clinton, embora este não deva prometer grandes revoluções na decoração de interiores.
Talvez também, apesar do acontecimento histórico, o discurso de vencedora de Hillary não atinja os cumes líricos da iniciação de Obama há oito anos. Talvez. Mas certo, certo, é que no discurso de reconhecimento de derrota do candidato vencido não haverá nenhuma grandeza, nenhum lembrar de momento redentor, nenhuma vontade de assinalar um passo em frente da América - que o há, por haver, enfim, uma presidente. Mais certo, porém, é ouvirmos palavras como "gorda" e "falta de estamina".
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