Brincar com coisas sérias
Um discurso, por muito bem conseguido que seja retoricamente, pode falhar por dizer coisas erradas. Outros discursos falham por não dizerem nada de relevante. O mais grave, porém, são os discursos que falham por tratarem como simples aquilo que é estruturalmente complexo, e como técnico aquilo que é, no fundo, político. O informe do Chefe do Estado inscreve-se nesta última categoria. Não é um discurso escandaloso, nem particularmente ofensivo. É, antes, um discurso que brinca com coisas sérias e, por isso, merece uma análise rigorosa. Nós temos a tendência de analisar mal este tipo de discurso. Os simpatizantes aplaudem a retórica da unidade e a enumeração de realizações, enquanto os críticos, por sua vez, concentram-se em lapsos factuais ou em omissões pontuais. O essencial, contudo, é avaliar o discurso enquanto acto político, isto é, enquanto exercício de responsabilidade pública num contexto de crise política profunda. Não pretendo estipular o que é um informe presidencial, para que serve, e por que razão, tanto mais que o Presidente gastou tempo precioso a fazer isso, mas interessa-me reflectir sobre o que significa abordar o país politicamente, e não apenas economicamente ou administrativamente.
Um informe presidencial, para mim, não é, nem devia ser, um relatório técnico ou uma peça de propaganda. Também não é mera formalidade constitucional. Trata-se dum acto político de alta densidade, no qual o Chefe de Estado deve três coisas fundamentais ao país: um diagnóstico honesto, a explicitação de escolhas e a assunção de responsabilidade. Não se trata de dizer tudo, mas de dizer o que importa, portanto, não de prometer, mas de explicar e não de tranquilizar, mas de dar sentido político à governação. O discurso desta manhã falhou aqui. Ele cumpriu o ritual, mas esvaziou a função. Confundiu prestação de contas com enumeração de virtudes, estabilidade com normalização e governação com gestão. O país foi apresentado como um sistema funcional perturbado por choques externos, portanto, pela violência, ciclones, manifestações, e não como uma comunidade política atravessada por conflitos de representação, déficits de confiança e problemas de autoridade legítima.
O discurso pareceu-me internamente coerente. Os conceitos se repetiam, as considerações alinhavam-se e a narrativa foi consistente. Mas isso é coerência retórica, não coerência política. Politicamente, o texto foi vazio porque evitou responder à única pergunta que realmente importa, nomeadamente, que problema político Moçambique tem hoje. Em nenhum momento se discutiu a crise de representação, a erosão da confiança nas instituições, a partidarização do Estado, ou a dificuldade do poder em aprender com os seus próprios erros. A instabilidade pós-eleitoral foi mencionada apenas como perturbação da economia, nunca como sintoma dum sistema político em tensão. A política apareceu como cenário, a economia, como motor e a governação, como técnica. Esta inversão pareceu-me fatal, pois, sem política, não há economia sustentável e, sem legitimidade, não há estabilidade duradoura.
Um dos traços mais reveladores do discurso foi a sua incapacidade, ou recusa, de nomear o conflito. Onde há violência armada em Cabo Delgado, fala-se genericamente em terrorismo e segurança. Onde há contestação social, fala-se em vandalismo e criminalidade. Onde há impasses institucionais, fala-se em limitações de recursos. O conflito é sempre deslocado para fora da política. Mas governar é, precisamente, assumir conflitos entre interesses, valores, prioridades e visões do país. Um Chefe de Estado politicamente responsável não ignora esses conflitos. Usa-os para explicar escolhas difíceis, custos inevitáveis e limites reais da acção governativa. Ao evitar esse terreno, o discurso optou pela neutralização política do país e isso não me parece prudência. É empobrecimento deliberado, ainda que inconsciente, do debate público.
O caso mais grave deste empobrecimento foi o tratamento, ou melhor, o não tratamento, dado à violência em Cabo Delgado. Trata-se da maior crise de segurança e soberania que o país enfrenta desde o fim da guerra civil. No entanto, o discurso evitou uma abordagem directa, substantiva e politicamente assumida do problema. Cabo Delgado não foi tratado como teste decisivo da autoridade do Estado, mas como mais um dossier entre outros. Este silêncio não é neutro. Ele revela a incapacidade de pensar Cabo Delgado como problema político nacional, portanto, como falha de integração territorial, de gestão de expectativas, de relação entre desenvolvimento extractivo e comunidades locais, de soberania partilhada com actores externos, enfim, como problema do próprio sistema político. Reduzir tudo isso a uma questão de segurança é brincar com algo demasiado sério para slogans institucionais.
Algo semelhante ocorreu com a chamada “independência económica”, apresentada como eixo central do mandato presidencial. O que o discurso descreve sob esse rótulo (industrialização, transição digital, gestão sustentável dos recursos naturais, diplomacia económica) não é independência, é normalidade. Trata-se do funcionamento básico de qualquer economia moderna minimamente organizada. O problema não é defender essas medidas, mas apresentá-las como se fossem um projecto político transformador. Não houve análise da dependência estrutural, nem reflexão sobre soberania fiscal, nem discussão sobre a relação entre Estado, capital estrangeiro e elites nacionais. Mais grave ainda, não houve qualquer referência séria aos casos da TotalEnergies e da Mozal, símbolos máximos do modelo económico moçambicano. Falar de independência económica sem falar destes dossiers é falar de economia sem falar de poder.
Durante a campanha eleitoral, slogans como “fazer diferente para ter resultados diferentes” e “vamos trabalhar” criaram expectativas de ruptura. Num informe presidencial, esperar-se-ia que esses slogans fossem traduzidos em critérios: diferente como? diferente em relação a quê? com que custos? contra que resistências? Nada disso aconteceu. Os slogans desapareceram. E isso é revelador. Eles serviram para mobilizar, mas tornam-se inconvenientes quando chega o momento da avaliação. Um discurso que evita os seus próprios slogans evita, na verdade, ser julgado pelos critérios que ele próprio propôs.
Eu abordo a política com base num esquema simples. Olho para os objectivos que se pretende alcançar, as medidas necessárias para esse efeito e as condições que precisam de ser criadas para que as medidas sejam eficazes. Visto sob essa perspectiva, a fragilidade do discurso torna-se evidente. Os objectivos são vagos e consensuais; as medidas são remetidas para outros documentos; as condições institucionais, políticas, culturais são praticamente inexistentes. Não se discute capacidade do Estado, incentivos perversos, cultura política, nem bloqueios estruturais. Governa-se como se a vontade bastasse. Ora, governar não é querer. É criar condições. E criar condições é um acto profundamente político, porque implica confrontar interesses, reformar instituições e aceitar perdas no curto prazo. Aqui vou um pouco mais longe: teria sido interessante saber o que o Presidente pensa fazer para lidar com o que neste momento é o principal obstáculo ao desenvolvimento e à estabilidade, a saber, a Frelimo e o seu modo de funcionamento. É verdade que aquele não era um momento partidário, mas o partido Frelimo é, neste momento, o proverbial elefante na sala.
No fundo, tudo isto aponta para o problema da pobreza da imaginação política. O discurso não imagina alternativas, não admite riscos, nem mesmo reconhece dilemas. Apesar de ter dito que reconheceria o que não fez, nada disso constou do informe. Só enumerou sucessos. A política foi tratada como administração eficiente do inevitável, não como espaço de escolha responsável. O povo foi invocado como fonte de legitimidade, mas nunca como parceiro adulto de decisões difíceis. Isto não foi apenas um problema do discurso. É um problema de cultura política. Nós somos reféns duma cultura que prefere estabilidade retórica a conflito produtivo, slogans a critérios, e gestão a responsabilidade substantiva. Mas países não se constroem com boas intenções; constroem-se com pensamento político sério.
Brincar com coisas sérias não é cometer erros. É recusar-se a pensar à altura dos problemas. Um informe presidencial deveria ajudar o país a compreender-se melhor, a nomear os seus dilemas e a aceitar que governar implica escolhas difíceis. Quando isso não acontece, o discurso pode ser aplaudido, mas o país permanece desarmado intelectualmente. É verdade que o nosso país precisa de crescimento económico e de eficiência administrativa. Só que esse não é o desafio. O grande desafio é a imaginação política, que se consubstancia numa responsabilidade substantiva e na coragem de dizer a verdade politicamente relevante. Ainda é o primeiro ano, por isso há tempo para corrigir isto. Se o actual Presidente não quiser ser uma versão retórica melhor do que tivemos nos últimos dez anos, vai ter de parar de confundir governação com gestão, porque isso é brincar, perigosamente, com coisas demasiado sérias. Vai ter que abordar o país politicamente, nomear o que não está bem politicamente e precisa de correcção, e abandonar os maus hábitos de fazer discursos triunfalistas.
Quem ler os discursos de presidentes moçambicanos nos últimos cinquenta anos não pode entender por que o país está como está. Ou, se calhar, pode por causa disso mesmo!
Mussá Mohamad Ibrahimo
Estava a espera... Entendo a demora, porque deve analisar com rigor e explicar de forma didática. Valeu a pena esperar.
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Brazao Catopola
Professor, compreendo e bem a sua posição e até está certo dentro do nosso "prisma académico". Perfeita analise. Contudo, se pensarmos que no fundo o discurso da nação é, em último caso, uma justificação do exercício do poder do estado, então julgo ter sido de facto coerente com aquilo que foram as suas promessas eleitorais. O grande problema, caro Professor, é que a nossa elite política não concebe as questões que levanta como aspectos de construção do estado. Por consequência, governar é dar soluções para aquilo que o político concebe como problema e generaliza. Governar Nunca será analisar esses por si levantados. Eu dou mérito ao discurso nessa relação entre a promessa e o que se fez. Infelizmente, e isso sobre isso postei, também julguei o discurso como sendo em alguns momentos triunfalista e que ou nada fala sobre as manifestações, causas, etc. P
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Elisio Macamo
Brazao Catopola, compreendo, mas esse é justamente o problema. não fiquei com a impressão de que tivesse feito diferente de todos os outros. foi mais do mesmo. o problema de moçambique é político! o chefe de estado tem que falar sobre isso, mesmo que as pessoas queiram ouvir outras coisas. ele só vai representar a mudança real quando fizer isso. não podemos nivelar por baixo, já chega! a mozal está a fechar as portas, 6000 empregos vao desaparecer. porque não falou sobre isso, nem que fosse para dizer que não vai ceder às pressões?
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Aly Caetano
E, no final de tudo, confiança renovada: quem confia em quem em Moçambique?
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Manu Dos Santos Vilanculos
Professor, eu entendo que a posição aqui exposta parte de uma premissa discutível: a de que só há seriedade política quando o Chefe de Estado dramatiza conflitos, nomeia antagonismos internos e expõe publicamente fraturas estruturais.
Essa leitura confunde densidade política com a ideia de confronto e responsabilidade com exposição maximalista dos problemas. Num país que acaba de atravessar um ciclo eleitoral tenso, marcado por contestação social, fragilidade institucional e vulnerabilidades securitárias reais, a prudência discursiva não é empobrecimento político. É, antes, um acto deliberado de contenção responsável.
Um informe presidencial não é um seminário de teoria política nem um manifesto de ruptura. É um acto constitucional que deve equilibrar três exigências muitas vezes contraditórias: prestar contas, preservar a estabilidade institucional e orientar a governação. Exigir que esse momento seja o palco para a explicitação crua de todos os conflitos latentes pode satisfazer uma expectativa intelectual legítima, mas ignora a função sistémica do discurso presidencial num Estado ainda em processo de consolidação democrática.
O Presidente não falou como analista externo do sistema político. Falou como garante da continuidade do Estado. E isso faz diferença.
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Alcídes André de Amaral
Isso mesmo, "brincar com coisas sérias". As vezes penso que é discurso do qual não somos porta-vozes...
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