Uma mensagem que recebi no meu inbox de Jorge Matine a perguntar se estou bem levou-me a fazer esta reflexão... longa, obviamente!
Nunca é tarde
O homicídio que vitimou Gilles Cistac traz de volta à memória, se é que alguém tinha esquecido, que há muita coisa que não está bem no nosso País. Há muita hipocrisia, muito oportunismo, muita perplexidade e, infelizmente, poucas pessoas comprometidas seriamente com o Estado de Direito. Pessoalmente, mas aceito que possa estar equivocado, não tenho a impressão de que no nosso País se assassine quem pense diferente. Isso pode ter sido o caso nos conturbados tempos da “Luta Armada” e da “gloriosa” revolução socialista. Se, de facto, houvesse a prática de matar quem pensa diferente haveria, hoje, pouca gente, mas muito pouca mesmo, para sair à rua e se indignar de forma veemente contra este bárbaro acto de que todo o nosso tecido social foi vítima. Mesmo a ideia algo patética segundo a qual o modus operandi consistiria em matar poucos para silenciar muitos não me parece suficientemente plausível para sustentar a tese de que críticos correm perigo de morte violenta em Moçambique. Na verdade, até pela estrutura sociológica da nossa cultura política o maior perigo que alguém corre vem de dentro da sua própria afiliação do que de fora, mas reconheço que se trata duma hipótese que necessitaria de maior elaboração.
Isto não quer dizer que não haja razões para supor que tenha havido motivos políticos por detrás do ocorrido. Pessoalmente, achei inoportunas, infelizes – e um golpe baixo ao Estado de Direito – as declarações do finado a propósito das exigências dum partido político que atentou contra o estado de direito, politizou a administração eleitoral e, perdendo as eleições, enveredou pelo caminho da promoção insensata de sentimentos secessionistas. Sempre concordei com ele, e isso já escrevi, quanto à necessidade da limitação dos poderes do Chefe do Estado, um dos maiores perigos à consolidação duma cultura política íntegra, transparente e servidora do interesse público. Mas não concordei com a sua intervenção, e no momento em que essa intervenção foi feita, a respeito das “regiões autónomas”. Faltou-lhe tacto, algo que mesmo o mais isento dos intelectuais precisa de observar, sobretudo em momentos políticos sensíveis. Escusado será dizer que nada disto justificaria a sua liquidação assim como a observação de tacto não deve ser feita em atenção à possibilidade de se ser liquidado. Igualmente, as diatribes que lhe foram dirigidas em vida, sobretudo na sequência do seu posicionamento foram dum nível intelectual e moral extremamente baixo e vergonhoso. Também torci o nariz perante o teor cada vez mais xenófobo que as críticas foram ganhando. Mas é bom não esquecermos que estamos a lidar com um país onde este tipo de intolerância (recordemo-nos do caso do treinador português, Miranda) é aplaudida pelos dois lados da fronteira política sempre que for conveniente politicamente. Paul Fauvet, o jornalista da AIM também moçambicano naturalizado, costuma ser alvo deste tipo de comentários da parte daqueles que são hostis à Frelimo. Só que achar a postura de Cistac “corajosa” e comprometida com a “verdade” só por ter defendido as posições que defendeu, como muitos andam por aí a dizer, brada um pouco aos céus do meu ponto de vista. A não ser que isso seja necessário para construir o cenário dum atentado à liberdade de expressão. Tudo indica, porém, que o nível intelectual dos inimigos da liberdade de expressão é idêntico ao dos amigos da liberdade de expressão. Concordo, contudo, com um amigo que em comunicação privada me disse que após as ameaças de que ele foi alvo o governo deveria ter oferecido protecção.
Mas um dos problemas que esta ocorrência torna visível é o problema de sempre, nomeadamente da nossa cultura política, e em ambos os lados da trincheira. O facto de ser necessário, no contexto actual, prefaciar tudo quanto se diz a este respeito com condenações do acto como se quem não o fizesse pudesse estar secretamente feliz revela a extensão desse problema. Eu não sinto nenhuma obrigação moral de pedir desculpas por aquilo que gente insensata – se é que se trata mesmo de crime político (outro prefácio que me incomoda) – fez, faz ou fará no futuro porque em toda a minha intervenção no debate público de ideias tenho primado pela defesa dos princípios que tornam a nossa liberdade de expressão possível e que me permitem reclamá-la quando ela é ameaçada. Tenho passado muito tempo a discutir com gente que pela sua postura intelectual e política seria tão hostil à liberdade de expressão quanto os que se supõem terem cometido este acto se tivesse poder para tal. Não é a primeira vez que digo isto. Há uma maneira de abordar o país sem nenhuma âncora no compromisso democrático que faz de todos nós, porque produtores do debate nacional, cúmplices em todo o acto que atenta contra a liberdade.
E isto é o que me incomoda em toda esta história. Há muita indignação que é genuína, e com toda a razão, mas também há um tipo de indignação teatral protagonizada por pessoas singulares, grupos de pessoas e mesmo jornais que em nenhum momento da nossa história recente se notabilizaram por defenderem aquilo que devia, hoje, ser a principal fonte dessa indignação, nomeadamente o espírito da constituição. Não me lembro de ter ouvido as vozes dessas pessoas se indignarem contra a elevação do princípio segundo o qual os fins justificariam os meios – que foi o que aconteceu durante as malditas “hostilidades militares”. Antes pelo contrário, isso foi celebrado com base no argumento (que tanto mal fez ao nosso País, sobretudo na ressaca da independência) segundo o qual a violência seria um recurso legítimo sempre que alguém se sentisse lesado nos seus interesses e direitos. Maldito Fanon! Tenho apontado com certa frequência para a natureza incoerente deste posicionamento, mas sem grande impacto porque estamos a lidar com posições incoerentes.
Quem acha que uma ordem constitucional democrática pode ser ignorada como quadro normativo da nossa acção política quando ela é violada por aqueles que estão no poder priva-se de qualquer lugar privilegiado para se indignar e pregar moral. Aceitando, por momentos, a hipótese de que Cistac tenha sido vítima de quem se sentiu incomodado pelos seus posicionamentos políticos porque não seria legítimo, dentro desse raciocínio problemático, fazer uso da violência? Esta é a pergunta que todos nós, como sociedade, devíamos colocar. Uma sociedade que emula a violência priva-se de argumentos para se indignar contra quem faz recurso à violência para alcançar os seus objectivos políticos. O cúmulo desta incoerência é quando a Renamo publica um comunicado em que condena este acto mesmo depois de ter usado a violência contra o Estado Democrático (não contra a Frelimo porque se tivesse sido contra a Frelimo teria atacado as suas sedes e os seus militantes), ou ter ameaçado fazer uso da violência para alcançar os seus objectivos políticos. A coisa ganha contornos grotescos quando o mesmo partido cita Martin Luther King (ao invés de citar Malcolm X), herói nobre da causa cívica e da não-violência. O pior ainda é quando o “Canal de Moçambique” se excede nas suas condenações, apesar de ter noticiado com um prazer masoquista a morte de membros das forças de segurança do Estado durante as tristemente famosas “hostilidades militares”.
Há duas figuras extremamente problemáticas no “Facebook” (nenhuma delas consta da minha lista de amigos), nomeadamente Calado Calashnikov e Unay Cambuna. Neste momento, está na mó de baixo a primeira figura, sobretudo aos olhos de quem se acha defensor da liberdade de expressão. Os supostos inimigos da liberdade de expressão defendem Calado Calashnikov. Quando é o Unay Cambuna a fazer basicamente o mesmo que este faz os defensores da liberdade de expressão dão-lhe crédito, ou desculpam os seus exageros com um encolher de ombros, enquanto que os inimigos da liberdade de expressão consideram-no de diabo. A verdade, porém, é que tanto um quanto o outro são dois lados da mesma moeda. Quem compartilha os textos deles, junta-se em debates com eles e, basicamente, não vê nenhuma necessidade de deles se distanciar é, no fundo, também mais inimigo da liberdade de expressão do que defensor por os ajudar a contaminar o ambiente de debate são de ideias. Mas percebe-se porque somos condescendentes (ou duros) com cada uma destas figuras. Explica-se pela natureza do problema que nós próprios somos em Moçambique.
Na verdade, o nosso problema em Moçambique, sobretudo ao nível daqueles que participam no debate público de ideias, é de perdermos mais tempo cavando trincheiras políticas (eu sou contra ou a favor de…) do que a investir numa comunhão de princípios democráticos sérios que não abram espaço para aqueles que, dum lado e de outro, acham correcto fazer uso da violência para fins políticos ou que se não preocupam com os méritos das questões. É disso que nos ressentimos hoje perante este acto ignóbil que pode ter todo tipo de motivação, desde a instrumentalização política até ao aproveitamento oportunista por parte de pessoas que com a política pouco ou quase nada têm a ver. Quando abro o “Facebook” e vejo esse mar de “Je suis Cistac” que banha vários murais, reconheço pelos nomes algumas das pessoas que se escondem por detrás desses dizeres, e me lembro das suas intervenções nas várias discussões por aí fico arrepiado porque essas pessoas, pela sua própria incoerência democrática e postura intelectual, seriam das primeiras a fazer recurso à violência em “defesa” da sua razão se tivessem o poder que os outros hoje têm.
A ameaça à liberdade de expressão em Moçambique não vem dos que andam pelas nossas avenidas de arma em punho e gatilho desengatado. Vem de nós mesmo, da nossa postura cívica que se enrola em contradições quando se trata de defender os princípios que fundamentam uma ordem política democrática. É sintomático que quando se trata dum assunto menos político, mas nem por isso irrelevante como documento do nosso compromisso com esses princípios (por exemplo, o direito constitucional de associação), muitos que se julgam inimigos políticos de repente se reencontram na mesma trincheira intolerante baseada num discurso moralista. Se queremos verdadeiramente honrar a memória dum intelectual íntegro que Gilles Cistac parece ter sido devemos parar de procurar por bodes expiatórios e começarmos a prestar maior atenção a nossa própria postura intelectual. A questão não é de nos comprometermos com uma suposta “verdade” – porque isso simplesmente nos remete de novo à polarização política que tanto mal nos faz – mas sim prestarmos mais atenção à discussão dos méritos das questões apresentadas sob o pano de fundo dum compromisso com a promoção dos princípios que sustentam a nossa liberdade. São esses princípios, e não o apoio ou rejeição do que a Frelimo ou a Renamo fazem, que dariam coerência à nossa indignação. Nunca será tarde para aprendermos isto e nem nunca devíamos esperar por acontecimentos como este para recobrarmos a consciência.
Sem comentários:
Enviar um comentário