Literalmente o peixe morre porque abre a boca para comer a isca e fica no anzol preso e, depois, é tirado fora da água e morto. Aqui, o difusamente conhecido adágio popular – “pela boca morre o peixe” - é utilizado para indicar o que poderá ser a futura sorte do líder da Renamo, Afonso Dhlakama, para impedir a materialização ou a difusão das suas propostas alternativas - “governo de gestão” ou proclamação da “República autónoma de Norte-Centro de Moçambique” – que visam remediar o antagonismo gerado pelo andamento do processo das Eleições Gerais de 15 de Outubro de 2014.
A seguir às duas frustradas (ou, por enquanto, pouco producentes) agendas do partido no governo, ambas mirantes a atenuar os ânimos de protesto contra o golpe de estado eleitoral, nomeadamente a tentativa de aliciar Afonso Dhlakama com a instituição do estatuto de "Líder de Oposição” do partido mais votado, e a tentativa de seduzir os não empossados deputados eleitos pela Renamo com os ganhos financeiros e as mordomias reservadas aos deputados, o partido no poder lançou, nos últimos dias, uma propaganda que visa manipular a opinião pública, de modo a faze-la aceitar a futura sorte de Dhlakama.
Evidentes sinais do advento da hora de contra-ataque (não necessariamente miliar) à figura de Dhlakama e ao seu partido são manifestados pelos mais recentes posicionamentos assumidas pelos “prestigiados” juristas/analistas políticos que desfilam nas principais antenas televisivas e radiofônicas do País para comentar sobre o significado político do sucesso (em termos de aderência popular) do ininterrupto périplo do líder da Renamo pelas províncias do centro e norte do País, a seguir à proclamação e validação dos resultados das eleições de 15 de Outubro.
No quadro desta preparação do contra-ataque, os acima mencionados juristas e analistas políticos se esforçam e se desdobram para demonstrar a ilegalidade, a inconstitucionalidade, a inconveniência e a periculosidade do comportamento de Dhlakama e dos deputados eleitos pela Renamo que se recusam a tomar posse nas respectivas assembleias. Todos são unânimes em afirmar, com célebres argumentos, que a Constituição da República de Moçambique não prevê nem o “governo de gestão” nem a divisão do País ou a sua regionalização. Todavia, os mesmos ilustres juristas/analistas políticos não explicam ao nosso povo se a nossa Constituição prevê ou não que o incumbente (o partido no governo) utilize a sua vantagem institucional para pilotar as instituições públicas como a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Conselho Constitucional (CC), para viciar os resultados das eleições a seu favor, ou para proclamar resultados eleitorais desprovistos dos respectivos editais comprovativos.
De facto, colocando os seus juristas e analistas políticos a debater a inconstitucionalidade do comportamento assumido por Dhlakama e pelos deputados eleitos pela Renamo, depois do anúncio e validação dos resultados das eleições de 15 de Outubro, separado das causas que estiveram na origem desse tal comportamento, o partido no poder procura criar na opinião pública dos moçambicanos a imagem duma Renamo correspondente a um grupo de anárquicos cujo único objectivo é desestabilizar o País.
Os ditos iluminados juristas/analistas políticos insistem a defender, com unhas e dentes, que os deputados eleitos pela Renamo deviam tomar posse porque o fórum legal e constitucionalmente instituído, onde as várias forças políticas discutem, de direito, as questões inerentes à nação é a Assembleia da República (AR). É difícil, porém, perceber como é que os ilustres juristas e analistas políticos moçambicanos não conseguem ver que a afirmação segundo a qual a AR é o mais idóneo e mais legitimado fórum para discutir questões políticas nacionais pressupõe que esta (a AR), por sua vez, tenha sido legitimamente constituída. É difícil também perceber como é que os nossos analistas políticos reconciliam o facto que a Renamo repudia os resultados eleitorais através dos quais foi constituída a AR e o apelo que se faz insistentemente à mesma Renamo para confiar a resolução do seu protesto às mãos do mesmo órgão que afirma não reconhecer a sua legitimidade.
Para os acima referidos prestigiados juristas/analistas políticos a segunda alternativa de Dhlakama de criar a República autônoma de Centro-Norte de Moçambique é considerada ilegal, atentatória à unidade nacional e inconstitucional. Suspeito que estes argumentos estejam emprenhados de uma larga subestimação dos conhecimentos do líder da Renamo sobre as leis moçambicanas. Só os ilustres juristas/analistas políticos não conseguem perceber que a proposta anticonstitucional de Dhlakama é uma reação ao acto anticonstitucional da CNE de declarar vencedor das eleições de 15 de Outubro de 2014 o partido Frelimo e o seu candidato Filipe Nyusi, sem apresentar os editais comprovativos da tal vitória, ou/e uma reacção ao anticonstitucional acto do CC de validar um processo eleitoral manchado por graves irregularidade. Não percebo como é que os ditos prestigiados juristas/analistas políticos fazem as suas aparições nas antenas televisivas e radiofónicas para sentenciar a ilegalidade e inconstitucionalidade das atitudes de Dhlakama e não consideram também ilegal e inconstitucional o comportamento de todos aqueles que proclamaram e validaram uma vitória eleitoral do qual não se pode produzir provas evidentes.
Convido os prestigiados juristas/analistas políticos como Rodrigo Rocha e António Boene a honrar os títulos a eles conferidos, não limitando-se só a demonstrar a inconstitucionalidade do comportamento da Renamo, mas também provando com argumentos academicamente coerentes que a Frelimo foi o justo vencedor das Eleições Gerais de 2014 e, portanto, está legitimado a fazer o uso da força para impedir qualquer acção ou discurso que atenta contra a lei. Caso o partido no poder ou os seus exponentes não consigam dar provas convincentes da própria legitimação do uso da força contra a pessoa de Dhlakama, então estaremos diante de uma luta entre dois usurpadores, e nenhum deles pode, legitimamente, evocar a lei para justificar o seu uso da força para derrubar o adversário.
O apelo insistentemente dirigido aos deputados eleitos pela Renamo para que ocupem os seus correspondentes lugares na AR e nas Assembleias Provinciais, por estes serem os fóruns mais apropriados para discutir assuntos políticos que interessam a nação, mostra inequivocamente que o partido no governo está desesperadamente à procura do ponto de chegada de um premeditado programa consistente em colocar os partidos de oposição (principalmente a Renamo) e os seus candidatos à Ponta Vermelha diante de factos consumados. Em outras palavras, para os expoentes da Frelimo e seus analistas políticos, a questão sobre a fraude eleitoral já está encerrada. O dossier eleitoral já está consumado. Aquilo foi apenas uma encenação que não tinha e não devia ter nenhum poder para modificar o que estava já previsto. Agora deve-se regressar ao curso anterior da vida política moçambicana, como se nada tivesse acontecido em Outubro de 2014. De facto, a Frelimo continua a guiar os destinos do País, com uma maioria absoluta, e a Renamo deve simplesmente aceitar de ocupar o seu habitual e reservado lugar de segunda força política, como o MDM se conformou com o seu reservado lugar de terceira força política.
Por conseguinte, não obstante se argumente que os deputados eleitos pela Renamo deviam tomar posse porque o lugar adequado para o diálogo político é na AR, se, efectivamente, eles tomassem os seus lugares nas respectivas assembleias, não era para discutir a questão das irregularidades cometidas no processo eleitoral, mas para prosseguir com a rotina da agenda ordinária da AR ou das Assembleias Provinciais.
Considerando atentamente a situação real de Moçambique pode-se suspeitar que qualquer acto que vise limitar a liberdade de acção ou de expressão ao cidadão Afonso Dhlakama, fundada sobre a acusação de veicular a ideia da divisão do País, embora possa encontrar a cobertura legal, figuraria na história política de Moçambique como uma acção moralmente ilícita. De facto, não de pode considerar moralmente (nem juridicamente) lícito condenar uma pessoa pelo simples facto de ter atribuído um nome a um crime do qual ele não participou. A segunda alternativa de Dhlakama da criação de uma região autónoma nas províncias onde ele saiu vencedor, mais do que ser percebido como uma sua invenção deve ser vista como uma atribuição de um nome a uma realidade empiricamente já existente mas que ainda lhe faltava um apelativo. Nesta ótica, quem, de facto, dividiu o País - embora tenha sempre falado da unidade nacional - não pode ter sido Dhlakama, nem a Renamo. Quem dividiu o País, pelo modo como o governou, é quem o vem governando, desde a independência até ao dia de hoje.
Torna-se cada vez mais evidente que quando a Frelimo herdou o poder político da administração colonial e, juntamente com o poder político também herdou as infraestruturas do Estado e os recursos económicos, o nobre ideal de libertar o povo de todo o tipo de alienações – ideal que nutriu a luta armada e catalisou a cooperação entre os guerrilheiros e as populações - foi substituído pela ambição de apropriar-se do património deixado atrás pelos colonialistas e o controlo dos recursos e caça das oportunidades destinados a aumentar a riqueza privada e a redistribuição pelos membros da própria família ou circuito.
A cidade capital - Maputo - que, por razões de concorrência às ambições territoriais dos Bóeres sul-africanos, tinha recebido uma atenção particular da parte da administração colonial, tornou-se o centro privilegiado da preeminente elite do partido, e o lugar de concentração de todos os projectos de desenvolvimento que permitiriam criar mais emprego e mais oportunidades para os membros da elite e os seus respectivos descendentes. De facto Maputo concentra a riqueza e as oportunidades nacionais, mas o critério para determinar quem tem acesso não é étnico nem tribal. É partidário. Os membros seniores do partido no poder, quer os dos norte como os do sul têm o acesso livre aos recurso.
Habituados às generalizações, já que para a maior parte dos ocidentais qualquer tipo de conflito entre as várias classes políticas africanas tem a sua origem na diversidade étnica-tribal, quando se aborda a questão política moçambicana se recorre, muitas vezes, a este paradigma, descriminando os “manhambanas” (gente do sul), considerados privilegiados e “swingondos” (gente do centro e norte), considerados prejudicados. Na verdade, a divisão que existe entre os moçambicanos não é entre os originários do sul e os do norte, mas sim entre os have e os have not (entre os que têm e os que nada têm).
Este é o facto empírico contido na proposta de Dhlakama de criar a República Centro-Norte de Moçambique, como solução para o diferendo eleitoral. De facto, as multidões que enchem os estádios e as praças públicas para escutar o seu discurso e aplaudir a sua proposta de criar a região autónoma, identificam-se principalmente com os have not e não necessariamente com a região centro ou norte do País. De facto, prova está o facto que, os have originários e residentes no centro e norte do País nunca participam nos comícios de Dhlakama e são os poucos que foram vistos nas imagens quando, por exemplo, a Senhora Helena Taipo foi empossada governadora de Sofala.
Dhlakama - como o peixe - é vítima simplesmente por ter aberto a boca para atribuir um nome àquilo que era já empiricamente existente, mas sem nome. Portanto, continuando a faltar a vontade política e a coragem de reformar a administração pública, que vise restaurar a legalidade e a responsabilização nas instituições políticas, mesmo que se derrube este Dhlakama, poderão ainda nascer muitos outros “dhlakamas” que exigirão a divisão do País.
Alfredo Manhiça
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