quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sugestões para a primeira remodelação



A remodelação é tão previsível quanto o “ámen” na igreja. Vai acontecer. Daqui a um mês, um semestre ou dois anos, ninguém pode saber ao certo. Vai acontecer por várias razões. Para acelerar o passo; para responder melhor aos anseios do povo; para incutir novas dinâmicas. A lista é interminável. Há um baú qualquer lá na Ponta Vermelha onde as razões estão bem guardadas. As que não vão ser mencionadas são às que têm a ver com a política real e com a vulnerabilidade daquele que tem muito poder. Refiro-me às exigências da inclusão, ou mais precisamente – já que inclusão no nosso caso se refere aos outros partidos – à acomodação de descontentes nas próprias fileiras. Alas descontentes; militantes frustrados; frações aliendas. Prontos, a mistura explosiva de sempre que depois se reflecte no tamanho do governo. Adeus combate ao despesismo, bem-vindo governo realístico.

Eis a minha sugestão para esse momento crucial. Que se invente um Ministério para a Inovação e Criatividade. Vai competir com o da Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Técnico Profissional (cujo nome, fazendo justiça à erudição dos seus timoneiros, é em si já uma redação), com o do Trabalho, Emprego e Segurança Social (ainda estou a tentar perceber a profundidade filosófica da distinção entre trabalho e emprego) e com o da Educação e Desenvolvimento Humano (o desenvolvimento humano deixa-me com dúvidas: está para regressar o “homem novo”?). Esse novo Ministério vai ter como função aprender da sabedoria do povo, o novo patrão. Vai reverter uma tradição milenar no nosso país que consiste na crença segundo a qual a função de quem está no poder é de ensinar as populações. Sim, ensinar, não importa o quê. Educar o povo. Este é um dos maiores equívocos dos nossos tempos, e não é apenas moçambicano. A crença universal é de que o pobre e socialmente desfavorecido, por natureza, trabalha pouco, não tem criatividade e nunca inova. Está a mercê do acaso. Em contrapartida, o bem-sucedido – algo que se traduz no bem-estar material – é empreendedor, inovador e trabalhador. É, como disse, um dos maiores equívocos nacionais. Até mesmo pessoa cujos pais eram analfabetos, investiram na sua formação, consentiram sacrifícios para que tivesse vida melhor, chegado ao topo muda e começa a ver ignorância por todo o lado.

Para já – e estou apenas a conjeturar – mais de 95% daqueles que estão bem (que perfazem talvez menos de 7% da população moçambicana, senão mesmo menos ainda) são empregados, isto é trabalham para outros, de preferência para o Estado. A esmagadora maioria do povo vive do autoemprego, isto é cada um dos desgraçados que a gente vê aí na rua é seu próprio patrão. Aprendeu a profissão sozinho ou com outros pobres, mobilizou os recursos para o seu negócio sozinho, fez os estudos de viabilidade contando com as suas próprias forças, assumiu os riscos sozinho e vai lutando com o cotidiano sozinho. É uma situação bem diferente daqueles que pensam que têm algo a ensinar aos pobres. Formaram-se, na sua maioria, com subvenções do Estado (para depois, quando não conseguem vender a sua mão de obra, reclamar que essa formação não presta para nada); criatividade para essas pessoas significa mobilizar influências para arrumar um emprego no Estado e inovação consiste em ajustar a sua visão do mundo ao discurso universal dominante, sobretudo o discurso do desenvolvimento que transforma os pobres em problema por resolver. Aquela do Nyussi dizer que o povo é patrão é característica e não deve ter surpreendido à população. Esse pessoal só sabe pedir emprego, isto é andar à procura de patrão, não tem nenhum sentido de empreendedorismo. Mas quer vir ensinar o povo…

O que o novo Ministério – após a primeira remodelação, claro – iria aprender da sabedoria popular seriam essencialmente duas coisas: que dinheiro fácil aniquila a motivação e que informação desnecessária empobrece a qualidade de decisões. Só essas duas coisas. O Prémio Nobel de Economia, Amartya Sen, fez um reparo interessante a propósito da designação “abaixo do nível de sobrevivência”. Ele perguntou se todos aqueles que vivem abaixo dessa linha (normalmente 1 dólar por dia) deixaram de viver. Claro que não. Mas como é que vivem, então? Pois, de várias outras coisas, incluindo da solidariedade, justamente aquilo que é difícil de monetarizar. Na verdade, se há alguma coisa que precariza a vida das populações é a crescente monetarização de cada vez mais aspectos da sua vida social. Malta nós, que anda aqui pelo Facebook, e aprendeu a viver bem à custa de terceiros, aprendeu que só o que tem valor monetário é que importa – recebe, por exemplo, per diem para participar num encontro, ou ajudas de custo para ir fazer o seu trabalho nas províncias – sacrifica a longo prazo a qualidade social na sua vida. É preciso ser pago para ajudar o outro, essa é que é a mentalidade. Este é o efeito nocivo do dinheiro fácil. É dinheiro fácil todo o dinheiro que não pode ser justificado a partir do desempenho económico do país. Enquanto o país não tiver um orçamento soberano toda a regalia que um funcionário público recebe – na verdade, mesmo o próprio salário – é injustificável e, portanto, dinheiro fácil. O mesmo se aplica às ONGs. Enquanto forem dinheiros de fora farão parte da categoria “dinheiro fácil”. E conforme disse mais acima, dinheiro fácil corrompe no sentido moral do termo. Empobrece as relações sociais ao mesmo tempo que produz os piores instintos animais em nós. A coisa é tão grave que mesmo lutar contra a corrupção é uma profissão, o que significa, nos meus termos aqui, que a pessoa é corrompida no mesmo momento em que tenta acabar com a corrupção!

A segunda coisa, nomeadamente a informação desnecessária, é um bocado complicada. Em poucas palavras: muitos de nós pensamos que a qualidade duma decisão depende do maior número de informação. Quanto maior for a quantidade de informação, melhor decidiremos. Acho que isto é um equívoco. Estou neste momento à procura dum apartamento. Vi um que me agrada e tinha intenção de o pegar; mas agora cometi a asneira de comparar, consultar páginas da internet, ler dicas sobre o que ter em conta, etc., e já estou indeciso. O que vai acabar acontecendo é que mantenha a minha decisão inicial (depois de ter perdido tempo) ou mudar para uma coisa que mais tarde me vai desagradar completamente. É o mesmo com decisões governamentais. Há consultores que elaboram estratégias, há relatórios disto mais daquilo, há seminários, conselhos consultivos, reuniões, mais relatórios, mas, invariavelmente, toma-se a decisão que menos tem a ver com o assunto.

Com os pobres isto não acontece. Não têm muito por onde escolher, por isso vão directo ao que conta. Não ficam horas e horas a consumir informação desnecessária, tipo nós aqui no “Facebook” que somos constantemente bombardeados com informação inútil. Há gente que reproduz noticiário da CNN, BBC, jornal Notícias, etc. aqui e até com o mesmo título. Há gente que dá dicas sobre quantas vezes tomar banho por semana, resultado de jogos de futebol, novo governo de Moçambique, etc. Informação que ninguém precisa (eu não preciso tanto mais que evito ao máximo ler jornal ou ver noticiário na televisão) e que, precisando, pode ser adquirida com facilidade nos dias de hoje. O pobre, em contrapartida, tem informação de qualidade. Onde é que a polícia municipal está a controlar hoje? Quem na repartição tal aceita suborno? Quanto? E prontos, vai à vida.


Isto liberta a iniciativa criadora e o espírito de inovação. Um exemplo ímpar disto foi no ano passado quando as autoridades fronteiriças sul-africanas passaram a exigir certos montantes para que um moçambicano viajasse para lá. 3000 randes se não me engano. Imediatamente surgiu um negócio de gente que “emprestava” dum lado da fronteira e ia buscar do outro lado. Isto é empreendedorismo avant la lettre… e é moçambicano. Nyussi conhece o patrão.

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