Quando um homem se afasta dos caminhos
trilhados, ataca os males estabelecidos, fala da revolução, crêem que ele é
louco. Como se o testemunho do Evangelho não fosse loucura, como se o cristão
não fosse capaz de um grande esforço construtor, como se não fôssemos fortes na
nossa fraqueza. Faltam-nos muitos loucos desses, fortes, constantes, animados
por uma fé invencível.
Um apostolado organizado requer em primeiro
lugar um homem entregue a Deus, uma alma apostólica, completamente tomada pelo
desejo de comunicar Deus, de fazer conhecer Cristo; almas capazes de abnegação,
de esquecimento de si mesmas, com espírito de conquista.A organização racional
do apostolado exige, precisamente, que o supra-racional esteja em primeiro
lugar. Que seja um santo! Em definitivo, não vai apoiar-se nos meios de sua ação
humana, mas em Deus. O resto virá depois: que trabalhe não como guerrilheiro,
mas como membro do Corpo Místico, em união com todos os outros, aproveitando-se
de todos os meios para que Cristo possa crescer nos outros, mas que primeiro a
chama esteja muito viva nele.
O homem tem dentro de si sua luz e sua força.
Não é o eco de um livro, a cópia de um outro, o escravo de um grupo. Julga as
coisas mesmas; quer espontaneamente, não à força; submete-se sem esforço ao
real, ao objeto, e ninguém é mais livre do que ele. Se se caminha mais devagar
que os acontecimentos; se se vêem as coisas mais pequeninas do que são; se se
prescindem dos meios indispensáveis, fracassa-se. E não pode ser-nos indiferente
fracassar, porque meu fracasso o é para a Igreja e para a humanidade. Deus não
me fez para que busque o fracasso. Quando esgotei todos os meios, então tenho
direito a consolar-me e a apelar à resignação. Muitos trabalham para ocupar-se;
poucos para construir; satisfazem-se porque fizeram um esforço. Isso não basta.
É preciso amar eficazmente.
Santo Alberto Hurtado
nov. 1947
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Acontece que há histórias, velhas como o mundo, que continuam iluminantes. E em horas de encruzilhada como são as que vivemos, reposicionam-nos perante a tarefa essencial, que não é apenas a da reconstrução dos mercados, mas a do Ser Humano, a de nós próprios.
Penso na história dramática de Caim e Abel. Ali é-nos dito que o projecto ético (no caso, o da fraternidade) não se matura como mero dado natural, nem é uma imposição do sangue, pois este inclusive se pode voltar contra o seu igual. Os irmãos podem matar-se. A fraternidade continua ao alcance do homem, no entanto, mas como uma decisão.
É curioso o diálogo que Deus tem com Caim no capítulo 4 do Livro do Génesis: “Porque estás zangado e de rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto, se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas tu deves/podes (timshel) dominá-lo”.
O belíssimo romance de John Steinbeck, “A Leste do Paraíso”, pega nesta palavra que Deus dirige a Caim e desenvolve uma pesquisa talmúdica sobre o seu sentido. O verbo hebraico timshel é traduzido nas Bíblias mais correntes por “Tu deves”, mas Steinbeck, partindo de algumas versões rabínicas, propõe que se leia “Tu podes”. E expõe esta ideia em algumas páginas intensíssimas. Ao homem em confronto com o Mal, transtornado a ponto de eliminar o seu próprio irmão, Deus não diz: “vou retirar-te a liberdade, vou condicionar-te para que isso não mais aconteça”. Antes afirma “Tu podes vencer o Mal”.
O Mal aparece como um desafio a vencer, e não como uma inexorável fatalidade. Não somos colocados perante uma moral automática e peremptória, mas no interior dinâmico de uma moral narrativa. O Bem e o Mal constituem decisões éticas. Perguntamo-nos: ‘como pode o desgostado Caim não matar Abel, se despeitado lhe dedica uma inveja mortífera, se todos os seus direitos de filho mais velho acabam por ser relativizados por uma preferência aparentemente caprichosa de Deus?’ Tudo lhe dá razão, é verdade, mas a razão de Caim não constitui um direito de eliminar o irmão, porque Deus lhe diz uma palavra inesperada: «Tu podes (timshel) dominar o mal»."
José Tolentino Mendonça
In Página 1, 07.05.2009
© SNPC | 11.05.09