quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O desafio de Cabo Delgado





Elisio Macamo
14s ·



O desafio de Cabo Delgado

Tinha prometido que o texto de ontem seria o último a reflectir sobre a governação. Quebro a promessa por causa dum artigo assinado por Joseph Hanlon e Anastasya Eliseeva que levanta questões importantes de governação, mas também por causa da exortação feita por Guebuza na palestra de ontem sobre a importância do conhecimento baseado na pesquisa. Segundo os autores, a violência em Cabo Delgado não tem muito a ver com o Estado Islâmico. É uma guerra civil alimentada pela pobreza e desigualdade dentro dum contexto político em que as elites políticas nacionais estão apostadas em se apropriarem das riquezas nacionais para seu próprio benefício.

Acho a análise bastante pobre. Eu próprio já havia, há semanas, recorrido à ideia do Estado Islâmico como franquia para alertar para a necessidade de não se perder muito tempo e energia com estudos circulares sobre a pertinência da religião como variável que pudesse explicar a violência. Nisso, portanto, estamos de acordo. Já não concordo com os autores quando reduzem a violência totalmente à corrupção da elite política como se fosse possível estabelecer sem nenhuma dificuldade uma linha recta entre pobreza e desigualdade, dum lado, e violência. Este é um problema analítico que tem a sua origem em dois equívocos metodológicos.

O primeiro equívoco parece-me prática assente na análise social feita de forma artesanal. O pesquisador tira uma conclusão qualquer e depois junta informação que a confirma. O artigo em questão tem como base de argumentação escandalos financeiros conhecidos, suposições sobre a conduta das eleições, palpites sobre os níveis de descontentamento da população, casos coniserados semelhantes noutros países, etc. A colação desses casos todos torna plausível a conclusão tirada antes do estudo. Ao invés de usar a informação para pôr a conclusão à prova, o pesquisador usa os elementos dessa informação que podem ajudar a sustentar a sua conclusão. Chega a ser desonesto. O segundo equívoco, também recorrente na análise social artesanal, é a fraca sensibilidade para a relação que conceitos têm com a realidade. Conceitos são caixas negras. Eles encerram várias coisas dentro de si de tal modo que o recurso a um conceito para explicar seja o que for pode ser vago e não dizer absolutamente nada.

Por exemplo, quando alguém diz que a pobreza e a desigualdade alimentam a violência, ele propõe-nos três conceitos densos – pobreza, desigualdade e violência – que num primeiro momento escondem, mais do que revelam, informação. A pobreza é relativa, absoluta, situacional, geracional, rural, urbana, etc. Que tipo exacto de pobreza é responsável pela violência e como é que isso ocorre? Suponho que a relação entre pobreza e violência seja mediada pela radicalização de jovens. Ok, que tipo de jovens se radicalizam ao ponto de pegar em armas? Porque outros jovens igualmente pobres não se radicalizam, ou quando se radicalizam, não chegam ao ponto de pegar em armas? Ademais, qual é a relação exacta entre a pobreza, dum lado, e a corrupção das elites políticas? A teoria que enquadra esta análise tem que partir do princípio de que a pobreza gera violência. Porque é que, por enquanto, só há violência em Cabo Delgado? Acima de tudo, para que é necessária a corrupção das elites políticas para explicar a violência sabido que é que é possível ser pobre mesmo sem corrupção das elites políticas?

A relação que estabeleço entre governação e valorização do conhecimento baseado na pesquisa baseia-se nestas poucas perguntas que acabo de formular. Tenho acompanhado, atento, vários escritos, webinares e comentários sobre Cabo Delgado. Não sou especialista da área, nem do tema, mas aprendi metodologia e dou muito valor a ela. Há cada vez menos contribuições que me convencem. Cada especialista agarra-se à sua conclusão e junta dados para a proteger. Guebuza falava num outro contexto, mas tem razão. Temos que valorizar o conhecimento baseado na pesquisa. Isso significa que muitos têm de aprender a avaliar a produção científica para não ficarem reféns da análise social artesanal. Só num sentido metafórico é que podemos falar de “guerra civil” em Cabo Delgado. A violência que assola partes da província é sintomática duma constelação particular de factores sociais, culturais, económicos e políticos que têm como pano de fundo a fragilidade do processo de consolidação da autoridade estatal em países como os nossos. Análises 4X4 que simplificam as coisas com recurso à corrupção das elites políticas desviam a nossa atenção do essencial. Nada disto quer dizer que o aproveitamento individual que pessoas bem situadas no poder político fazem dos recursos não seja um problema. Nem que a pobreza ou desigualdade não sejam problemas. Tudo isso é problema, mas até a gente entender como se articulam para produzir o tipo de violência que produzem vai uma grande distância. Vai ser necessário trabalho científico mais sério do que tem havido.

Mas é por isto tudo que tenho criticado o governo, sobretudo a reluctância do Presidente em falar abertamente sobre Cabo Delgado. Essa reluctância faz parte dum quadro geral de inépcia política na abordagem dos desafios de governação. Enquanto os investigadores se perdem nas suas análises artesanais, o Presidente anda atrás de bodes expiatórios misturados com teorias de conspiração – “não nos querem ver a beneficiar dos nossos recursos” – que manifestam a sua falta de vontade – ou capacidade (?) – em abordar os desafios da governação de forma política. Cabo Delgado mostra as deficiências da nossa estrutura política. E isso vai desde a relação entre FDS e cidadão, passa pelos mecanismos locais de interpelação do poder, mas também de protecção e promoção da cidadania, até à relação entre poder central e poder local. Convocar gente abalizada para reflectir sobre isto e estimular debates na esfera pública sobre os desafios políticos que a província nos coloca é fundamental para a elaboração duma melhor abordagem. Não sei de nenhuma iniciativa do Conselho Nacional de Defesa e Segurança para reunir os vários especialistas que temos para ajudarem a reflectir sobre o assunto. Na Alemanha e na Suíça é assim que se fazem as coisas, mesmo sabendo que essas instituições dispõem elas próprias de gente abalizada.

Embora em minha opinião o governo nao seja directamente responsável pela violência lá em Cabo Delgado, a sua inépcia tem contribuído muito para a escalada. Dói dizer isto, mas tudo indica que o Presidente Nyusi vai legar nao só a violência de Cabo Delgado ao seu sucessor, como também o rastilho que ela representa para o resto do País. O acordo com a Total parece-me o pontapé de saída para a militarização irresponsável dum problema político. Preparemo-nos para o cenário igual ao norte do Mali.




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Reginaldo Mutemba Moz, acorde por favor!
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Paulo Guambe Desisti de ler o artigo do Halon por desconfiar que alguém estava a usar seu nome, pela fragilidade da argumentação que justifique a matriz da violência em Cabo Delgado.
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Paulo Guambe yanıtladı · 3 Yanıt 8s


Régis Rembeleki Nada a acrescentar. Varios cientistas sociais estão a rasgar os certificados.
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Régis Rembeleki yanıtladı · 2 Yanıt 7s


Ismail Mahomed Felismente o pais ja tem gente formada com descernimento, capacidade de analise e interpretacao dos factos, coisa que alguns analistas ainda nao perceberam que Moz de hoje ja nao e o mesmo de 1975, onde qialquer extrangeiro escrevia ou falava qualquer baboseira nos orgaos de comunicacao social e esta e esta logo se transformava em verdade absoluta. Esta gente esta a procura de formas de dar alguma hegiene na actuacao desses bandos, quer lhes prestar alguma acessoria de modo a nos passar uma mensagem de alguma causa justa por detras das atrocidades que estao sendo cometidas, foi assim no passado e parece que eatamos de volta ao mesmo cenario, ja dizia o presidente Chissano numa das suas varias entrevista que " ...A vida is uma espiral e agente volta sempre ao ponto de partida so que numa posicao mais acima..." nao me admira que daqui a mais alguns meses seremos brindados por uma conferencia de impensa com os lideres do grupo a declarar e apresentar os motivos da sua saga assassina que nao estara muito longe daquilo que esses analista de ocasiao apresentam, aguardemos...
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Elisio Macamo yanıtladı · 1 Yanıt 9s


Dinis Tivane Sou capaz de não estar a concordar com este post. Primeiro por trazer Guebuza, quando o próprio dono do post já diz que Guebuza, fez o pronunciamento que fez num outro contexto e não no desta análise metodológica que critica o texto desses dois autores e suas "(in)fundadas" conclusões.

Segundo porque acho que a sociologia não é a única ferramenta para explicar fenômenos político-sociais, económico-sociais e também culturo-siciais. Não vou me alargar a justificar isso, pois quero trazer alguns pontos que me fazem pensar que Joseph Halon não está tão longe daquilo que pode ser a "verdade":
1. Em Março deste ano, foi criada a ADIN - Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte, com uma vocação muito concreta. Veja bem, está mencionado NORTE.
2. É no norte aonde estão os maiores contratos ou concessões ligados aos recursos minerais, gás e afins.
3. É no norte aonde há maior índice de pobreza. Pode ir, consultar a publicação POBREZA E BEM ESTAR EM MOÇAMBIQUE e comparar o preço por grama do arroz ou farinha e verá que no norte os preços são altíssimos.
4. É no norte aonde temos uma maior franja de população de religião islâmica.
5. Estrategicamente, é em Cabo Delgado aonde se pode começar uma guerra também, por factor localização (fronteira com Tanzânia que também tem uma grande população islâmica).
6. Moçambique está no top 10 dos países mais pobres do mundo segundo o Índice de Desenvolvimento Humano.
7. e 8. Nem preciso de destacar como estamos em termos de corrupção e justiça (que justifica ou faz compreender o índice de impunidade que graça o nosso País).

Como vê, não é muito difícil chegar às conclusões que eles chegaram. Prof. Macamo uma vez falou sobre a importância das EVIDÊNCIAS nas análises ou estudos e, sinceramente, não sei como estas evidências lhe escaparam.

Não estou a dizer que estejam absolutamente certos, porém não acredito que estejam longe da verdade.
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