Andar devagar
Esta manhã tive uma reunião estimulante com colegas alemães a quem me juntei para elaborar um programa de pesquisa sobre alguns dos conceitos que fizeram o mundo. A minha contribuição vai ser um estudo sobre o conceito de desenvolvimento que antes se chamou progresso e antes disso civilização. Com a minha agregação em sociologia do desenvolvimento, tenho uma relação especial com esse conceito, sobre o qual tenho reflectido e trabalhado. Uma coisa que me incomoda na maneira como esse conceito é tratado na academia, mas também na prática, é a suposição segundo a qual ele descreveria um ponto de chegada inevitável sendo para isso necessário que se façam certas coisas tidas como infalíveis. Infelizmente, nem a história dos que hoje são desenvolvidos, muito menos a nossa confirmam esta suposição. Ninguém sabe dizer como se chega lá, por isso toda essa indústria intelectual e prática que anda por aí é coisa de impostores.
Há muito lugar-comum que passa por profundidade analítica na abordagem do assunto. (In)Felizmente, Moz dá-me uma excelente oportunidade de reflectir sobre o desafio que o desenvolvimento nos coloca com exemplos concretos. Seria fácil, por exemplo, olhar para Cabo Delgado, para as agressões a jornalistas, intelectuais e activistas como prova do tipo de atitude que não pode levar ao desenvolvimento. Isto é, a intolerância, a má governação e a falta de respeito pela liberdade de expressão e de imprensa podem ser usadas para “explicar” porque Moz estaria a regredir. Dito doutro modo, os nossos governantes não estariam a fazer o que é certo para desenvolverem o País. Não me parece ser o caso. Algumas pessoas que, hoje, condenam o vil ataque ao semanário Canal de Moçambique defendem, quando em civil, regimes como o do Ruanda, líderes como o ditador russo, Putin, sistemas políticos como o cubano, chinês, etc. por acharem que eles produzem resultados. O raciocínio é o seguinte: de que vale a liberdade de expressão sem comida, saúde e educação?
Essa é a lógica do desenvolvimento, mesmo quando os seus promotores defendem a democracia, direitos humanos e liberdades. Olham para isso de forma instrumental. Seja quem for que estiver por detrás dos males que cada vez mais nos assolam no País, essa pessoa pensa que está a trabalhar para o desenvolvimento de Moçambique. Pensa também que quem não vê, nem aprecia isso, é contra o desenvolvimento e, portanto, está contra o desenvolvimento e tem de estar também contra quem faz estas coisas. Entender o que se passa em Moçambique passa por, primeiro, entender a moral perversa da lógica do desenvolvimento e, segundo, resistir à tentação de reduzir as coisas às más intenções das pessoas. Nyusi não quer que Cabo Delgado, que o assassinato do Matavele, que o atentado contra o semanário, etc. aconteçam. Eu acredito que ele esteja contra e que se sinta mal quando isso acontece. O problema é a sua relação com quem faz isso por achar, por exemplo, que cada uma dessas acções sirva para levar adiante o projecto de desenvolver o País. Há muito tempo que venho dizendo isto, por exemplo, desde o conjunto de textos sobre “o poder da Frelimo”. Quando impera a lógica do desenvolvimento, mesmo o desvio de dinheiro público para fins individuais pode ser justificado pela necessidade de desenvolver o País fortalecendo o partido no governo (ou os seus membros) já que só eles é que sabem como levar o País até lá.
A concentração na famosa agenda do desenvolvimento (com discursos inúteis sobre a corrupção e boa governação – infelizmente macaqueados pelas OSC – luta contra a pobreza, etc.) é para mim o que explica as coisas más que acontecem. Impede o governo e a própria sociedade de prestarem mais atenção ao que realmente importa quando se constroi um País, nomeadamente a protecção da dignidade humana através da promoção da cidadania. A agenda do desenvolvimento obriga-nos a correr e nessa corrida a dignidade que é tão essencial à nossa vida passa a ser um mero “nice to have” (bom para ter, mas não absolutamente necessário) que pode ser sacrificada sempre que o interesse “maior” do desenvolvimento se impuser. Pouco importa se não há nenhuma garantia de que chegaremos lá. Nem pode haver, pois cada situação é fonte de várias outras situações de difícil previsão. É por isso que mais do que apostar numa ideia de desenvolvimento baseada na ilusão do controlo (ceteris paribus), a aposta em Moz devia ser na criação de condições para que possamos dar outro passo sabendo, naturalmente, que cada passo dado abre infinitas possibilidades. Estas condições não são materiais. São políticas e têm como alvo principal a protecção da dignidade de cada um de nós.
Ser Chefe de Estado em Moz é isto. Não é inaugurar hospitais, escolas, aterros sanitários, etc. Isso é “nice to have”. O essencial, o absolutamente necessário, é a criação de condições para que em tudo o que fazemos salvaguardemos a nossa dignidade através da promoção da cidadania. Na verdade, é aqui onde a gente vê a miséria da nossa cultura política. Todos querem resolver os problemas materiais do povo, mas dum modo geral olham para a dignidade e a cidadania como obstáculos. Podem não dizer isso, mas na prática é assim. Quem detém o poder hoje é o Presidente Nyusi e, por isso, podemos ver como ele está a claudicar. Só que ele claudica onde outros também claudicaram e iriam claudicar se tivessem a oportunidade. Desde o seu primeiro mandato que ele se tem furtado a esta agenda, mas tudo na melhor das intenções porque ele está preocupado com o desenvolvimento...
Quando assumiu o poder em 2015 definiu a paz como uma das suas prioridades e, para esse efeito, fez o que achou necessário, isto é negociar com a Renamo. Só que aquele conflito não se resumia a isso. Era um conflito cujo pano de fundo era o respeito pelas instituições, a inclusão política e a distribuição de oportunidades. Isso exigia a participação de todos e a protecção de qualquer solução que garantisse maior promoção da cidadania. O que ele fez? Colocou Secretários de Estado para contrariar a vontade do povo e hoje para além de gerir o problema que ainda não terminou tem que gerir o novo problema de SE e Governador. A polícia nacional, através dos seus agentes, envolveu-se em crimes hediondos. Nem uma palavra dele sobre isso, nem uma única iniciativa que revele preocupação com uma melhor polícia e necessidade de depuração de fileiras. De Cabo Delgado nem falo, com a agravante de que ultimamente, ao invés de focalizar as atenções no problema, procura por bodes expiatórios, tipo Bispo de Pemba ou aquela ideia fantástica de que são pessoas que querem explorar as nossas riquezas... Mais uma vez, a agenda do desenvolvimento pesa mais do que a agenda da promoção da cidadania.
Repito, não é por maldade ou intenção de “destruir” o País. Tudo isto acontece na melhor das intenções. A agenda do desenvolvimento cega. Os problemas que nascem do nosso esforço de desenvolver são simplesmente ignorados naquela de que, com o desenvolvimento, eles serão resolvidos. É um equívoco. Essa agenda obriga-nos a correr quando devíamos interiorizar a ideia de que devagar se vai longe. Apostamos na técnica e não na política porque queremos resultados (materiais) rápidos. Os seus companheiros partidários não o podem ajudar porque também estão reféns desta lógica do desenvolvimento. É aí onde se manifesta aquele medo de errar que descrevi há dias. O desenvolvimento requer um governo infalível. Um governo infalível, por definição, não erra. Se erra, não errou, os críticos é que não sabem bem ver ou estão contra. E, por isso, investe-se mais na procura de críticos e sua “neutralização”.
Nem tudo está perdido. Já três personalidades de peso se pronunciaram sobre isto: Oscar Monteiro, Rui Baltazar e, recentemente, Lourenço do Rosário. Não deviam fazer isto de forma isolada. Devia ser uma acção conjunta de resgate da Frelimo duma lógica de poder perniciosa. Pode parecer desonesto dizer isto, mas não é este o tipo de País que corresponde aos valores que motivam os membros e simpatizantes da Frelimo. Mas mesmo que o governo não tenha nada a ver com o atentado contra o semanário, ele acontece porque existe um ambiente político que protege os bandidos. O silêncio persistente do Presidente faz parte desse ambiente político. Mas, prontos, eu entendo. Ele está ocupado a desenvolver o País. Cabo Delgado que arda, jornais que desapareçam, activistas que sejam mortos por agentes policiais, enfim, os que sobrarem vão desfrutar o desenvolvimento...
As piores coisas foram feitas em nome desenvolvimento.
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