segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Figurino do ano


Mantenho as minhas figuras do ano passado: Carlos Serra e a Lambda. Faço-o por três razões. Merecem. São persistentes. E o seu exemplo é instructivo. Carlos Serra é um exemplo impressionante de dedicação a uma causa cívica. Por essa causa, ele até aceitou o desafio de trabalhar para o governo, cujo resultado é a influência salutar que ele está a ter sobre o ministro do ambiente. É vendo cidadania activa como a que é praticada por Carlos Serra que nos damos conta de algumas das coisas que não estão bem na nossa política. Por exemplo, nenhum partido organizado (Frelimo, Renamo, MDM) se juntou a Carlos Serra para fazer o que ele faz. Nem sei se alguma vez qualquer das organizações juvenis desse partido se envolveram em acções do tipo promovido por ele. A Lambda, por outro lado, interessa-me como exemplo por chamar a nossa atenção a tudo quanto de errado existe na concepção da democracia. A minha questão aqui não é se alguém está de acordo, ou não, com a condição defendida por essa organização. O que interessa é se em nome do respeito pela diferença estamos preparados para não só praticarmos, mas também defendermos a tolerância, princípio basilar da democracia liberal. As mais recentes declarações do ministro do pelouro revelam quão distantes estamos disso e isso, para mim, ajuda também a explicar a crise política que o país vive.
Não é que a democracia precise de democratas para poder ser possível. Não existe democrata nato, acho. A democracia emerge e consolida-se na prática. É um jogo de cintura entre o poder que cada um de nós tem de impedir os outros de gozarem a sua liberdade e o comedimento necessário para que cada um de nós seja capaz de alcançar os seus objectivos sem ter de usar a violência. A democracia cultiva-se. Cultiva-se numa postura argumentativa que se interessa por princípios, põe-nos a descoberto e defende-os na esfera pública. A facilidade com que muitos de nós se embrulham no cobertor da democracia para protegerem as suas próprias tendências intolerantes e autoritárias documenta, em certa medida, a aversão que muitos têm de cultivar o seu sentido democrático. É muito mais cômodo reclamar-se democrata – e usar isso como arma de arremesso contra os adversários políticos – do que trabalhar em si próprio. Isto faz com que, na realidade, sejamos figurinos do nosso próprio processo democrático. Sentimo-nos mais à vontade reclamando o que os políticos fazem – sobretudo os políticos que não pertencem ao grupo que apoiamos – e ignoramos de forma consequente o nosso contributo para a mediocridade que condenamos.
Gostaria de dar um exemplo dessa postura reflectindo sobre um texto recente da autoria de Machado da Graça que foi publicado no semanário Savana. O autor dessa peça é dono duma das melhores prosas jornalísticas que existem no país. Mesmo quando não concordo com o que ele escreve fico sempre fascinado pela facilidade que ele tem com a língua escrita. No texto em questão com o título “orgulhoso de quê?” Machado da Graça critica o discurso do “estado da nação” proferido pelo Chefe do Estado. Nesse discurso, Nyusi disse sentir-se orgulhoso pelo trabalho feito, apesar de não estar satisfeito com o estado da nação. Essa afirmação surpreendeu o analista do Savana pelo facto de que nos dois assuntos de importância capital para o país, nomeadamente crise política e crise económica, Moçambique estaria pior, segundo o articulista, do que antes de Nyusi assumir o poder. Como argumentos a favor dessa leitura crítica Machado da Graça fala basicamente, em relação à paz, do início auspicioso com encontros entre o Presidente e o líder da Renamo (os quais, segundo o articulista, criaram no líder da Renamo a confiança de que com Nyusi fosse “possível conversar seriamente”) que foram torpedeados pelo grupo parlamentar e pelas acções armadas contra o líder da Renamo. Em relação à economia o argumento é de que Nyusi não está a tomar as medidas que seriam necessárias para conter a crise criada pelo apetite voraz do seu predecessor em encher os seus próprios bolsos a partir do erário público, nem a procurar penalizá-lo por isso.
Machado da Graça termina o seu texto da seguinte maneira: “Portanto, neste período de festas, com fome e a caminho de uma nova guerra, não posso deixar de perguntar: Orgulhosos de quê?!!!”. No site onde li o texto vem um comentário típico de gente que teria feito Machado da Graça corar de vergonha nos tempos em que a sua opinião reproduzia o discurso oficial: “Orgulhoso de liderar um dos países mais pobres do mundo apesar das riquezas naturais. Orgulhoso de ser o capo de uma organização mafiosa chamada Frelimo. Orgulhoso de ser o responsável directo das atropelias sistemáticas da sua polícia corrupta e incompetente. Orgulhoso da incapacidade militar do seu exército frente aos "madalas" da Renamo. Orgulhoso da Ematum e da sua captura fantástica de 70 toneladas!! Orgulhoso das enormes riquezas acumuladas pelo seu padrinho Armandinho! Orgulhoso de ser quem realmente é. Um burro presumido e ainda por cima sem nenhuma iniciativa valedora. Um zero à esquerda. Orgulhoso!!!! Pois é“.
Curiosamente, ou não, esse comentário é um resumo fiel da qualidade argumentativa do texto. Há três problemas na análise, problemas que revelam parte do que anda mal entre nós. O primeiro tem a ver com a tendência excessiva de reduzir os problemas do país a uma única pessoa. A análise de Machado da Graça vive da redução da crise política e económica à incapacidade de Nyusi. Afinal, ele é o chefe do país e do partido que o dirige. Como é que não consegue impor-se? Eu aceito que o líder da Renamo ou do MDM venham a público reduzir os problemas do país ao seu adversário. Mas dum analista, ainda mais “independente”, espero maior discernimento, sob pena de a coberto da “análise” promover o contrário daquilo que devia orientar essa análise. Refiro-me aqui à promoção do autoritarismo. A dificuldade da paz em Moçambique não reside no facto de Nyusi ser fraco. Reside no facto de ele ter de tomar as decisões que deve tomar num contexto marcado por vários interesses, alguns dos quais são de certeza contraditórios. Qualquer paz que se alcance em Moçambique não será a paz como nós a idealizamos. Será a paz possível. E paz possível é aquela que se consegue através da acomodação desses interesses diversos. Este problema não é só de Nyusi. É também de Dhlakama que tem também os seus interesses por conciliar no seio do seu partido. O Mablinga Shikhani tem chamado a isto de “fulanização”, se não estou em erro.
O segundo problema decorre do primeiro. Alguma da análise política que se faz no país, sobretudo a partir de certos sectores de opinião, depende muito de teorias de conspiração. O principal recurso analítico é sempre a pergunta: a quem beneficia esta situação? A resposta consiste invariavelmente na procura de todos os elementos que confirmem o palpite que se tem sobre quem beneficia. A grande figura argumentativa do texto de Machado da Graça é uma força obscura que atrapalha a paz e cujo enriquecimento foi responsável pela crise económica. Neste contexto interpretativo tudo encaixa. Até Sérgio Vieira, sim, o mesmo que foi recentemente celebrado por ter criticado essa mesma Frelimo que é criticada pelo jornal Savana, é chamado a terreiro para documentar a desonestidade de Nyusi. Sérgio Vieira, recorde-se, havia sugerido a “savimbização” como solução. Como é da Frelimo e o que ele disse encaixa na teoria de conspiração do articulista, então pode ser usado como prova.
O terceiro problema na análise é o que dá o título a este texto. Somos apenas figurinos. O primeiro figurino é o próprio líder da Renamo. Ele não tem nenhuma responsabilidade nesta crise, o problema é todo de Nyusi e de seus comparsas. Tenho vários problemas com esta postura analítica, dois dos quais vou partilhar aqui. Primeiro, uma “análise” que só olha para um lado da equação não pode, por regra, ser boa análise. É perca de tempo. Não é possível falar da crise política em Moçambique sem também olhar para o comportamento da Renamo, sua postura política, sua “democracia” interna, seu entendimento de legalidade, etc. Não é possível. E um “analista” que faz isso, isto é que ignora este outro lado da equação, é simplesmente ridículo.
Segundo, pessoalmente tenho muita dificuldade em aceitar como intelectualmente são todo o indivíduo que acredita honestamente que o líder da Renamo é a solução para os nossos problemas. Com isto não quero nem sugerir que tenhamos o melhor governo do mundo, muito menos que as reivindicações que a Renamo faz sejam ilegítimas e desprovidas de sentido. O único que estou a dizer é que perco logo o respeito por todo o indivíduo que considera que o líder da Renamo é a solução para os nossos problemas. Só isso. Isso é regressar a 1975, a universidade feita em 10 anos de luta, ao autoritarismo disfarçado de vontade do povo. Agora, um texto que analisa a crise política tem que ter espaço para também identificar a responsabilidade do líder da Renamo sob pena de ser incompleta, tendenciosa e perniciosa.
O segundo figurino é o próprio jornal Savana. A sua eleição de figura de ano 2014 faz parte do contexto de instabilidade que Machado da Graça gostaria que Nyusi resolvesse sozinho. Essa escolha também atiçou o fogo que Nyusi sozinho tem que apagar. Portanto, para além de ter de lidar com a sua própria “ala radical”, para usar a dicção do articulista, Nyusi teve que lidar com a euforia e fogosidade provocadas pela decisão de certos jornalistas. Isto é, o jornal Savana, e não só por causa dessa decisão mal aconselhada, é parte do problema que Machado da Graça acha que Nyusi sozinho tem que resolver. Não é plateia.
Chegado a este ponto, volto à ideia inicial que sustenta o texto. A cultura da democracia consiste na identificação e promoção de princípios. Participar no debate político é fazer isso. Fazer análise política não é apenas procurar por bodes expiatórios. Analisar é articular fenómenos políticos com princípios que definem a democracia. Uma análise desprovida disto não é digna desse nome. O texto de Machado da Graça é, infelizmente, exemplo típico disso. Bem lido, ele é (a) a defesa do autoritarismo – Nyusi tem que usar o seu poder para se impor – (b) dos fins que justificam os meios – quem tem razão pode se permitir tudo – e (c) da apatia activa – eu não faço nada, os outros é que nos lixam a vida. O princípio do estado de direito que poderia muito bem sustentar a análise feita pelo articulista e permitiria até uma melhor discussão destes assuntos está completamente ausente da “análise”. Entre o tiro ao alvo simples e a dor de reflectir seriamente, o articulista preferiu a primeira opção. “Orgulhoso de quê?” é a pergunta que todo o “analista” devia fazer a si próprio após terminar uma “análise” desta natureza. E para que fique registado: mesmo nos termos do próprio texto de Machado da Graça o Presidente tem razão de se sentir orgulhoso: afinal, apesar dessas forças invisíveis do mal que o manietam, Moçambique ainda existe e ele continua no poleiro…
E o ano termina como começou. Continuamos na miséria da análise. E teria sido tão fácil criticar Nyusi e dessa maneira contribuir verdadeiramente para o debate. Era só perguntar qual é o seu plano de paz e reflectir essa questão. Só isso. Mas o tiro ao alvo é mais fácil. Só que num país onde um (único) cidadão se destaca como tal e a luta pelo direito à diferença não é reconhecida como algo que diz respeito a todos nós não se pode esperar muito

Renamo acusa Dom Dinis Sengulane de rezar pela morte de Afonso Dhlakama

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Dinis sengulane
O diálogo político entre o Governo e o partido Renamo permanece um processo com “muitas palavras e poucas obras” no que respeita ao fim da crise político-militar, que há três anos tira o sossego dos moçambicanos e arrasta o país para a incerteza. Após os mediadores nacionais terem reaparecido publicamente e rompido um silêncio de meses e exigido, em resposta aos pronunciamentos depreciativos e desabonatórios contra si pela Renamo, que líder desta formação política, Afonso Dhlakama, “escreva a dizer que não precisa” mais deles nas conversações, o maior partido da oposição acusa-lhes de terem faltado à verdade ao omitirem que Dom Dinis Sengulane orou para que os atacantes de Afonso Dhlakama conseguissem matá-lo.
“Gostaríamos de, contrariamente ao que se propala, afirmarmos e reiterarmos que a nossa chamada para essa missão [resgate de Dhlakama] foi para testemunhar (…) a retirada do presidente da Renamo das matas, cabendo às partes, estou a falar da Renamo e do Governo, toda a coordenação e operacionalização. As alegações de conivência e maus-tratos que nos são atribuídos não representam a verdade, muito menos os valores e responsabilidades que aceitamos durante todo este processo”, disseram os observadores e a resposta não tardou.

No seu boletim oficial, a “Perdiz”, o partido liderado por Dhlakama diz, através do seu porta-voz António Muchanga, que “em Gorongosa, no local onde encontrámos o presidente Dhlakama, ele [Dom Dinis Sengulane] orou para o atacante do presidente Dhlakama. O Reverendo Anastácio Chembeze e o Sheik Abibo ignoraram esse facto que religiosamente é relevante. Omitiram as declarações do Dr. Lourenço do Rosário no jornal Savana, onde este encorajava os generais da Renamo a abandonarem o líder Dhlakama”.
De acordo com António Muchanga, Dom Dinis Sengulane não só orou para o “atacante matador, como também no fim-de-semana seguinte esteve em Xai-Xai, na Igreja Anglicana, onde se pronunciou publicamente sobre o desarmamento da Renamo, pelo que não constituem verdade as declarações segundo as quais eles andaram no silêncio por dois meses. Aliás, esta preocupação deles foi manifestada no encontro de há um mês e meio no Hotel Cardoso, onde o porta-voz foi Dom Dinis e Sheik Abibo (…)”.
Com o seu silêncio demasiado e propositado, os mediadores da tensão político-militar criaram condições para especulações do tipo são cúmplices do Executivo, em particular num pretenso plano de eliminar Dhlakama, facto que ganhou maior consistência quando eles estiveram presentes no cerco da casa deste líder e desarme dos seus seguranças, a 09 de Outubro, na cidade da Beira. Todavia, os visados alegam que foram “colhidos de surpresa”.
Para a Renamo, lê-se na sua publicação semanal, “lamentavelmente, os nossos clérigos não dizem o que o Padre Couto disse no encontro do Hotel Cardoso, pelo que o nosso apelo é cada pessoa assumir as suas responsabilidades. (…) A verdade é uma eles já não são mediadores do diálogo entre o Governo e a Renamo. Se o problema deles é a carta [de demissão formal], a mesma pessoa que os endereçou a carta [em 2014] vai o fazer”.
Recorde-se de que toda esta gritaria surge em consequência da conferência de imprensa da última segunda-feira (21), na qual a “Perdiz” defendeu que os mediadores nacionais, entre eles Dom Dinis Sengulane, Anastácio Chembeze, Lourenço do Rosário e Padre Couto, devem ser substituídos porque não cumpriram a sua missão de fazer com que o Executivo e Renamo alcançassem a paz, supostamente porque “eram aprendizes, não tinham experiência e o processo foi dar naquela vergonha que todos vimos”.
No mesmo encontro, o maior partido da oposição propôs que se indicasse o Presidente sul-africano, Jacob Zuma, e a Igreja Católica Romana como observadores das conversações, ora encalhadas.
@VERDADE - 27.12.2015

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