Devem ser poucos os que se lembram deste livrinho lá dos tempos da Frelimo gloriosa. Já nem me lembro quantas páginas tinha (deviam ser por aí 40...), mas era leitura obrigatória, sobretudo durante as chamadas reciclagens, quando como chefes de turma, militantes com funções nas organizações democráticas de massas fazíamos o chamado treino político militar. O livrinho era da autoria do departamento de trabalho ideológico e tinha como função classificar pessoas e acções, justificar o presente – acima de tudo a necessidade da transformação socialista de Moçambique – condenar tudo quanto representasse a nemesis desse projecto e, claro, também silenciar vozes. Nesse sentido, “como age o inimigo” não era diferente da formulação duma política no sentido em que praticamente codificava normas e valores sociais e articulava princípios fundamentais da organização social. Em certa medida, um manifesto que se preze precisa também de algo como o que “como age o inimigo” fazia. Vou ler os três manifestos nessa óptica e ver no que dá.
O inimigo da Renamo está claro. É a partidarização do Estado. Como é que ele age? Ele não respeita o pluralismo político, não é politicamente tolerante e é contra a reconciliação nacional. Ele não dá autonomia à Assembleia da República, promove uma administração pública partidarizada, estimula a partidarização da participação e gestão do Estado em empresas públicas, não faz uma distinção clara entre cargos de confiança política e cargos de competência técnica. A partidarização do Estado coloca as Forças Armadas não ao serviço do Estado, mas sim ao serviço duma força política com a de função de manter o medo, insegurança e perseguição de opositores políticos. É hostil a Forças de Defesa apartidárias e republicanas. Portanto, para a Renamo o problema de Moçambique reside nesta partidarização. Do ponto de vista político e de estratégia eleitoral, considero excelente esta definição do problema. O problema é que não é uma posição que é defendida com coerência ao longo do manifesto, o que torna menos contundentes os golpes políticos que poderiam ser desferidos com este argumento. Objectivamente falando, contudo, acho a definição problemática por cometerem o mesmo erro que muitos analistas cometem quando confundem os excessos dum partido dominante com a lógica de actuação dum partido no poder. A partidarização do Estado – que existe – parece-me mais sintoma do que causa dos problemas do país. Um programa de governo que incida sobre isso, sem debelar o mal na sua origem, tem poucas possibilidades de sucesso em minha opinião.
Acho que o parágrafo que se segue vai me dar direito a um “shit-storm”. É que no capítulo “como age o inimigo” a maior decepção para mim foi o manifesto do MDM. A Renamo não teve tempo para se concentrar nestas coisas e mesmo assim foi capaz de formular um problema claro e coerente. Algo me diz que o MDM, de tanto por onde pegar, acabou querendo pegar tudo e, no processo, perdeu-se um bocado. Ele também tem o seu inimigo e esse inimigo é o que ele chama de “donos de Moçambique”. Esse inimigo age através da arrogância, do autoritarismo, do belicismo e nos torna reféns do passado. Creio que se trata da caracterização da Frelimo na perspectiva do MDM, mas inclui também a Renamo ainda que de forma menos directa. De todos os partidos envolvidos na contenda eleitoral, o MDM é o que melhores argumentos reunia para produzir um manifesto coerente. O seu argumento mais forte não era tanto a diabolização dos seus adversários – que isso eles fazem melhor entre si – mas sim a ocupação do espaço que os outros deixaram nascer. Ao definir os “donos de Moçambique” como o seu inimigo, o que justifica a adopção do slógan “Moçambique para todos” – um óptimo slógan, diga-se de passagem – o manifesto faz uma campanha concertada contra o aparelho do Estado, justamente o lugar onde se encontram, ou ao qual aspiram potenciais eleitores do MDM. As coisas não funcionam em Moçambique por causa desse estado centralizado e burocratizado apesar de tanto dinheiro do auxílio ao desenvolvimento, apesar dos recursos, etc. É verdade que o manifesto vai dizendo que a culpa é dos governantes que vão ficando cada vez mais ricos, mas tudo isto se perde numa apresentação que me parece desastrosa do perfil do partido. Em certo sentido, o inimigo acabamos sendo todos nós.
Agora preciso de pôr as cartas na mesa. As minhas simpatias políticas são pela Frelimo. É bom, portanto, que se leia este parágrafo com isso em mente. Qual é o inimigo da Frelimo no seu manifesto? Só através da extrapolação é que é possível identificar esse inimigo. Na verdade, o manifesto da Frelimo nem se preocupa com isso. É um manifesto narciso que se banha na sua própria glória. Trata-se, porém, dum narcisismo que lembra, com arrepios, os tempos da Frelimo gloriosa. A Frelimo é quem conhece melhor a vontade do povo; a unidade nacional confunde-se com a Frelimo de tal maneira que o inimigo da Frelimo é todo aquele que se opõe à unidade nacional – o que em mãos sem controlo pode significar também que uma vez que a Frelimo é que conhece melhor a vontade do povo todo aquele que não é da Frelimo (não anda aí o cartaz “quem não é da Frelimo, o problema é dele”?) é inimigo de Moçambique. É talvez por causa deste narcisismo que o manifesto produz uma visão quase autoritária do Estado, cuja função é de “organizar a população” ou garantir que as autarquias façam cumprir a política do governo “ao nível local”. A impressão com que se fica, portanto, ao ler o manifesto da Frelimo é de que o problema de Moçambique consistiria na fraca coesão em torno da Frelimo, algo um pouco problemático que reflecte a sua condição de partido dominante.
Eis, então, a forma como os manifestos se apresentam como comentários retóricos que condenam e justificam. A condenação é mais forte da parte da Renamo e do MDM em virtude de serem da oposição e precisarem dum bode expiatório. Do lado da Frelimo pesa mais a justificação pelo facto de se tratar do partido no poder. Cada um dos manifestos produz caracterizações politicamente hábeis do problema de Moçambique que, à excepção do manifesto da Frelimo, não são elaboradas de forma coerente e consequente. Em circunstâncias normais, o eleitor teria que escolher entre estas caracterizações. Ou melhor, vai se identificar com determinado partido o eleitor que achar plausível uma determinada caracterização. Ao nível do debate eleitoral de fundo estas caracterizações poderiam estar no centro das atenções, pois são elas que enformam (ou deviam enformar) os planos de acção definidos nos manifestos bem como os apelos à adesão que estes últimos fazem.
O inimigo dos moçambicanos, sucintamente, é a partidarização do Estado, são os “donos de Moçambique”, é quem está contra a unidade nacional. É só escolher agora.
N.B. Só dá discutir este “post” depois de ler os manifestos. Opinar sem conhecimento de base é complicado tanto mais que aqui apresento a minha leitura desses documentos.
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