A situação é curiosa. Há 20 anos que ensaiamos eleições. Há 20 anos que me parece difícil perceber porque ganham uns e perdem outros. Existe, naturalmente, a explicação “ntafahindhlela” (4X4), aquela que, com ou sem razão, responsabiliza a fraude. Mas é assim mesmo. Há 20 anos que não está claro para mim o que leva um moçambicano a dar o seu voto a este ou aquele partido e candidato. Os manifestos deviam esclarecer-me. Li os três principais manifestos, da Frelimo, do MDM e da Renamo. Fiquei algo decepcionado. Não encontrei em nenhum deles a razão que, fora da militância num partido, influenciaria a decisão dum eleitor. Tanto é assim que até a verdadeira discussão na campanha que iniciou no domingo não é sobre os manifestos eleitorais. É sobre quem colou os seus cartazes em lugar errado; é sobre uma sondagem que diz que este vai ser vencedor; é sobre a festa que a própria campanha é. É caso para dizer que com a prática (de fazer campanha eleitoral) mais dependemos da sorte para ganharmos (ou perdermos).
Parecem coisas de Moçambique. Gostaria de lançar um apelo aos amigos do Facebook. Vamos discutir os manifestos eleitorais dos partidos que concorrem. É importante para a saúde da democracia no país. Vamos olhar para os méritos do que nos é proposto. Moçambique merece isso. E é possível. Não se trata de grandes obras de arte política. Do ponto de vista da apresentação de ideias e de profissionalismo o manifesto da Frelimo parece-me muito bem conseguido. Revela muito profissionalismo, embora na substância me pareça pobre por apenas apresentar uma grande lista de compras que se não articula com o facto de a Frelimo estar no poder desde o início de tudo isto e, acima de tudo, por não se fundar numa descrição clara do problema que a sua proposta quinquenal de governo pretende abordar. Nisto o MDM e a Renamo me parecem melhores, embora a apresentação dos seus manifestos seja profissionalmente medíocre. Não são directos, mas tanto o manifesto da Renamo quanto o do MDM apresentam Moçambique como um problema por resolver. Para a Renamo esse problema é a partidarização do Estado, enquanto que para o MDM são muitas coisas, todas elas interessantes, mas apresentadas de forma incoerente e atabalhoada. Retive, porque concordo, a necessidade de limitar os poderes do Chefe de Estado e dar maior autonomia às autarquias (a Renamo também tem uma referência a isto).
Estas diferenças podem reflectir a posição de cada partido em relação ao Estado. A Frelimo está no poder. Pode ser algo incoerente apresentar Moçambique como problema por resolver uma vez que ela há 40 anos que está a resolver esse problema. Acho muito desingenuo da sua parte terminar o seu manifesto com a frase “50 anos – unidos na luta contra a pobreza”. Esse slógan parece-me ter sido mal pensado. A Renamo e o MDM beneficiam do seu estatuto de oposição e têm maiores possibilidades de formularem o problema de Moçambique, sobretudo se essa formulação incluir o partido no poder como parte desse problema. O problema da Renamo é que nas suas acções (incluindo o desastre para onde conduziu o país nos últimos dois anos) tem pautado pelo desprezo à constituição. A legenda que descreve a vida do seu líder como uma história de sacrifício e batalhas vencidas pelo bem-estar do povo parece-me pouco apropriada por transmitir a imagem de alguém intransigente que não olha a meios para alcançar os seus objectivos (por mais inconfessos que possam ser). Já o MDM faz uma coisa muito interessante que consiste em tirar ilações, ainda que incompletas, da sua experiência de governo local para reflectir sobre o que precisa de mudar. O problema é de nunca, tanto quanto eu saiba, ter produzido nenhuma actividade política em torno destes assuntos sendo, por isso, estranho que escolha o momento das eleições para se enrolar nessa bandeira. Faz um uso excessivo (e irritante) do slógan “... para todos” num texto que bem reflectido e apresentado poderia ter sido mais interessante do que ficou. De momento é apenas um amontoado de ideias. Um desabafo: não percebo porque não foi possível entregar este texto a alguém competente na redação para fazer um trabalho editorial sério. Só a mensagem do seu líder logo no início mostra a falta de profissionalismo. Umas vezes é o partido, outras é ele que fala ao povo. Cai muito mal quando depois de se sugerir que é ele a falar apareça uma exortação para que se vote em “Daviz M. Simango”.
Cada um dos manifestos merece uma análise cuidada. Há assuntos cruciais que não merecem a atenção de nenhum dos partidos. Por exemplo, há muitas promessas (o que é natural em tempo de campanha), mas nenhum manifesto oferece ideias concretas sobre como a disponibilização dessas coisas todas será financiada. A Frelimo e o MDM falam do crescimento económico, enquanto que a Renamo fala de tributação e melhores salários. Mas como o aumento de infra-estruturas, de escolas e hospitais, etc. vai ser financiado ninguém diz. E receio que nem seja discutido, tão fascinados estamos todos com quem anda a colar que cartazes onde. É difícil extrair uma filosofia política dos manifestos. A Frelimo fala rapidamente de “socialismo democrático” e o MDM de “social democracia”. A Renamo define-se pelo compromisso com a economia do mercado, mas depois descreve um governo com atribuições que fariam corar de vergonha quem introduziu essa ideia de economia de mercado. Em todos os casos parece que se usam essas coisas como rótulos apenas. Outro aspecto que me parece merecer atenção especial é o facto de nenhum dos manifestos reflectir, digamos, a articulação clara de interesses sociais identificáveis. Neste sentido até parece-me haver poucas diferenças entre os três partidos, o que é preocupante, pois revelaria uma certa pobreza da nossa democracia. Ao que tudo indica, não há alternativas, apenas promessas de fazer o mesmo melhor. A este propósito achei interessante algo que encontrei no manifesto do MDM onde se escreve que se vai transformar “ a luta contra à [sic] pobreza” em “trabalhar para a riqueza” e se remata dizendo que a pobreza não é uma fatalidade e que é possível acabar com ela se se mudar de mentalidade. Lembra palavras de Guebuza pelas quais ele foi crucificado em público por “arrogância”.
Ao contrário da atitude cínica de algumas pessoas que acham que campanha eleitoral é apenas uma farsa acho que vale à pena perder algum tempo a discutir a sua substância. Mal ou bem, essa substância está contida nos manifestos. Vou tentar, nos próximos tempos, estimular alguma discussão de fundo sobre três aspectos que me parecem essenciais na avaliação dum manifesto, nomeadamente (a) como comentários retóricos que condenam ou aprovam, (b) como planos de acção e, finalmente, (c) como convintes à adesão. Há no conjunto destes três aspectos modelos de sociedade escondidos nas entrelinhas do texto cultural que um manifesto na realidade é. Mesmo se o eleitor comum não percebe nada do que lhe é proposto será sobre a viabilidade desses modelos que muitos vão votar no dia 15 de Outubro. Não me parece responsável que a gente se alheie deste tipo de debate só porque políticos são “mentirosos por natureza”. Até porque só com a interpelação crítica é que vamos obrigar a quem se mete na política a se comprometer com o que diz.
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