Diz-se que uma vez Fidel Castro disse que se tivesse que fazer a revolução cubana outra vez fá-la-ia com 10 ou 15 pessoas ao invés das 82 pessoas com quem ela a fez. Para ele, fé e plano de acção é tudo quanto é necessário para o sucesso numa empreitada dessas.Esta convicção de Fidel Castro é interessante pelo que ela diz sobre o papel motivador de “símbolos dominantes” (estou a utilizar terminologia antropológica usada por Victor Turner na sua descrição dos rituais dos povos Ndembu, na Zambia). A “revolução” é o símbolo dominante do pensamento de Fidel Castro. A sua realização não depende de números, mas sim de coesão consubstanciada na fé e num plano de acção (Al Capone juntava a pistola a isso...). Acho que é mais ou menos assim que se traduz um manifesto em acção. O ponto de partida é o símbolo dominante que se pode extrair da caracterização que se faz do país.
O símbolo dominante que deduzo do manifesto do MDM é a exclusão. Recordem-se que tínhamos dito que este partido formula o problema de Moçambique com recurso à ideia de que tem “donos”. Resolver o problema de Moçambique, portanto, tem que consistir na eliminação da exclusão, razão pela qual o partido proclama o “Moçambique para todos” no seu manifesto. Escrevi que o manifesto está redigido de forma medíocre, mas o plano de acção que o MDM propõe, ainda que muito complexo, tem uma certa coerência. Ele assenta na limitação dos poderes do Chefe de Estado, numa maior autonomia da Assembleia da República, dos órgãos de justiça e das autarquias. É claro que o MDM fala também de objectivos sociais, económicos e culturais, mas creio que esses são subsidiários. O essencial é a inclusão (com a eliminação da exclusão promovida pelos “donos de Moçambique”). Penso que uma crítica que se pode fazer a este plano de acção é a que diz respeito ao facto de o MDM ter descrito um problema que é, no fundo, a visão dum partido minoritário e com forte tendência de se apresentar como vítima. Um MDM no poder não seria mais minoritário. Pior ainda se ganhasse as presidenciais. Teria a mesma urgência em limitar os poderes do Chefe do Estado e do próprio Estado central? Duvido.
O manifesto da Frelimo é mais difícil de ler no que diz respeito ao plano de acção. Se estiver correcto na minha ideia segundo a qual haveria uma caracterização narcisa do país, diria que o símbolo dominante do manifesto da Frelimo seria o “patriotismo”. O seu manifesto tem a lista mais longa de coisas por fazer, todas elas documentando uma atitude paternalista em relação à sociedade e que consiste em disponibilizar bens e serviços ao povo. Mas a mensagem essencial parece ser a que diz que a prossecução desses objectivos só será bem sucedida se houver unidade de propósitos, o que me parece outra maneira de declarar a Frelimo como uma grande igreja com espaço para todos no seu interior. A fragilidade deste plano de acção está no facto de ele descurar o que Fidel Castro tinha visto com muita perspicácia, nomeadamente que números podem ser menos importantes do que a fé e plano de acção. Um dos maiores problemas que a Frelimo enfrentou nos últimos anos foi o das lutas internas pela definição da alma do partido. A proposta que o manifesto faz retira a política da sociedade – reduzindo a oposição ao papel de caixa de ressonância de ressentimentos – e remete-a para o interior do partido onde os arranjos e compromissos espontâneos podem aprofundar ainda mais a tendência de partidarização do Estado. É uma situação difícil. O papel dominante que a Frelimo tem no xadrez político moçambicano torna-a refém duma concepção monopolista do poder, uma concepção que articula o sucesso dos seus planos de acção com uma adesão total ao seu programa e faz de todos que não comungam dos mesmos objectivos inimigos, isto é, inimigos do povo... Há um pouco de mitologia grega neste tipo de Frelimo. É a deusa Deméter, a deusa da fertilidade e do matrimónio, a responsável pela produção alimentar (a maçaroca!) que perdeu a sua filha a Hadis (deus do abismo infernal grego) e que de cinco em cinco anos realiza os famosos festivais dos mistérios de Elêusis (as eleições!) para se celebrar a si própria (o tambor!).
Embora me tenha parecido que a Renamo tenha tido a melhor caracterização do problema de Moçambique (do ponto de vista estrictamente político e eleitoral) por ser simples e directa, ela criou para si própria os maiores problemas de operacionalização. O símbolo dominante é o próprio problema, nomeadamente a partidarização do Estado. A solução é a ... despartidarização, o que levanta o problema de se saber se essa despartidarização se faz por decreto – o manifesto sugere que se possa fazer isto com recurso a um conjunto de medidas que conferem maior autonomia à justiça e ao parlamento – e se for assim como é que a própria Renamo vai controlar os seus próprios apetites uma vez no poder. O seu compromisso com uma ética de fins que justificam os meios não parece se compadecer do tipo de plano de acção com o qual a Renamo se vincula com este manifesto. Daí, talvez, a falta de consequência na apresentação do que vai ser necessário fazer, nomeadamente uma mistura de populismo e autoritarismo. É assim, por exemplo, que ela declara que vai proibir a exportação de recursos não transformados, o que soa bonito, mas completamente alheio à realidade económica.
O que se nota quando se lê os manifestos na perspectiva de saber quais são os planos de acção preconizados é um problema estrutural do sistema político moçambicano. Ele ainda está em formação e, consequentemente, toda a proposta de governação que se faz consiste essencialmente ainda na definição desse sistema. Penso ser daí que resulta a tendência de se ser vago e abstracto na formulação dos planos de governação. Embora se trate de coisas diferentes, a discussão eleitoral nos países mais avançados parece mais racional e substancial pelo simples facto de ter algo concreto em comum, nomeadamente o sistema tributário (nos EUA) ou a segurança social (na Europa ocidental). Formular um programa de governo nesses países significa essencialmente ter alguma coisa a dizer em relação a essas duas coisas (por exemplo) sob pena de se tornar supérfluo na discussão pública. Não é que não haja em Moçambique algo concreto em comum. Por exemplo, a gestão do auxílio externo (e da relação com os doadores) parece-me ser uma dessas coisas, sabido que é que o nosso país continua ainda muito dependente disso. A mim pessoalmente interessaria bastante saber o que se pensa fazer para gerir estes fundos e, a médio ou longo prazo, prescindir deles.
No fundo, os manifestos remetem-nos para esta questão difícil: com quantas pessoas se faz a mudança (ou se mantém o status quo)? Isto é, até que ponto propõem planos de acção susceptíveis de serem seguidos mesmo por pessoas que têm uma outra caracterização do problema do país? O debate eleitoral pode ser instructivo ao nível deste tipo de pergunta.
N.B. Mais uma vez: a discussão flui melhor se quem discute tiver lido os manifestos. Em postagens anteriores, o Manuel J. P. Sumbana disponibilizou “links” para os três manifestos.
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