sábado, 4 de agosto de 2012

Não escrever a história a partir dos restos do apartheid! (Repetição)

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Para melhor compreender a "guerra" com o Malawi:
Mbuzini
Não escrever a história a partir dos restos do apartheid!
Por Paul Fauvet*
Duvidar sobre a versão oficial de acontecimentos dum passado recente pode ser uma atitude saudável para um jorna­lista. Mas o artigo sobre a tragédia de Mbuzini de Luís Nhachote (nas páginas centrais do Savana de 21.10.05) rejeita a versão “oficial” moçam­bicana, só para abraçar a versão oficial do regime do “apartheid”!
É espantoso que não só Nhachote, mas, também, o jornal Zambeze e mesmo a televisão STV declaram que o livro do propagandista pró-Renamo João Cabrita, com o título “A Morte de Samora Machel”, é alguma coisa nova, espectacular, nunca vista antes.
A obra de Cardoso e Mbu­zini
Na realidade, Cabrita simplesmente re-edita as alegações de 1986/87 do regime então vigente em Pretória. Essas alegações, incluindo o suposto plano para invadir o Malawi, tiveram na altura a resposta das autoridades e da imprensa moçambicanas.
E Luís Nhachote deve saber que o jornalista que mais escreveu sobre Mbuzini foi o nosso colega Carlos Cardoso, na altura director da AIM.
Em vez de escutar fontes moçambicanas, em vez de ler, por exemplo, os artigos que Cardoso escreveu em 1986/87, Nhachote preferiu fazer a sua história a partir da lata de lixo do apartheid.
Para os seus artigos sobre Mbuzini Cardoso gan­hou o prémio sobre o jorna­lismo investigativo da Orga­nização Nacional de Jorna­listas (ONJ). É pena que nos dias de hoje esses artigos tenham caído no esqueci­mento.
É indicativo da baixa qualidade do livro de Cabrita que Carlos Cardoso e a AIM não sejam citados como fontes — embora sejam, de longe, as fontes mais impor­tantes devido à sua tese de que o desastre foi provocado pelos militares do apartheid.
Para preencher essa lacuna, nada melhor que voltar ao ano distante de 1986, voltar ao trabalho de Cardoso. Na recente bio­grafia de Cardoso, da minha autoria, conjuntamente com Marcelo Mosse, nos capí­tulos sobre Mbuzini, consta o seguinte:
“A primeira indicação de que poderia ter sido uma sabotagem electrónica veio de onde menos se esperava. Sérgio Vieira recorda que, quando chegou a Koma­tipoort, a caminho de Mbuzini, a 20 de Outubro, o Comis­sário Johann Coetzee, da Polícia sul-africana, depois de apresentar condolências, soltou esta informação: ‘Mi­nis­tro, sabe o que diz a minha tripulação? Tem de se procurar um emissor de radio por ali’. E apontou na direcção das montanhas. Assim, os pilotos de heli­cóptero da polícia, menos de 24 horas após o de­sastre, acreditavam que o Tupolev tinha sido induzido a sair da rota por um rádio-farol pirata....”
As manobras sul-africa­nas
A 21 de Outubro recebi uma chamada do escritório da UPI (agência noticiosa americana) de Joanes­burgo. O correspondente da UPI achava que a AIM devia saber que ele tinha recebido uma chamada anónima de um homem identificando-se como ofi­cial da força aérea sul-africana que alegava saber que a Força Aérea sul-africana tinha colocado um falso rádio-farol algures na região da fronteira e que isso causara a queda do avião.
Fernando Lima ligou dos Estados Unidos. Disse que um oficial da força aérea americana afirmava que isso era possível, usando equipamento elec­trónico em terra, de modo a desviar um avião da sua rota es­tando o piloto con­vencido que seguia a rota certa.
Este oficial disse que conhecia bem o Tupolev 134 e sabia que os militares sul-africanos tinham a tec­no­logia para interferir no sistema de navegação do Tupolev. Usando esta tec­nologia podiam criar uma falsa rota que podia induzir o piloto em erro.
Assim, diferentes fon­tes, a milhares de quiló­metros de distância, tinham tido a mesma suspeita de que não se tratava de um simples caso de erro do piloto, mas que o avião tinha sido deliberadamente atraí­do para fora da sua rota.
O Governo sul-africano sem dúvida que se com­portou como alguém que tinha algo a esconder. A dada altura, Pik Botha anunciou que havia álcool nos corpos dos membros da tripulação soviética. Tecnicamente, a afirmação era correcta, uma vez que o álcool é um dos sub­pro­dutos da decomposição dos corpos. Mas o que Botha queria sugerir é que o avião se despenhara porque os pilotos estavam bêbados....
Mas a manobra de di­versão mais efectiva foi a súbita divulgação de um documento alegadamente retirado do local do de­sastre. Pik Botha convocou uma conferência de im­prensa, afirmando que o documento era a prova de uma conspiração de Mo­çambique e do Zimbabwe para derrubar o governo do Malawi.
Quando as notícias desta conferência de im­prensa chegaram à AIM, Cardoso telefonou imedia­tamente a Teodato Hun­guana (o então ministro de informação). Esta era a primeira vez que Hunguana ouvia falar das afirmações de Botha.
“É uma tentativa grosseira de transformar a vítima em réu, fazer do agredido agres­sor, fazer do invadido invasor, apresentar o desestabilizado como desestabilizador”, ex­cla­mou para Cardoso. Não tinha a menor ideia sobre se o documento apresentado vinha ou não do avião e declarou: “Alertámos a comu­nidade internacional para um facto extremamente grave – a África do Sul está a fazer tudo para impedir o normal procedimento da investi­gação às causas da morte do Presidente Samora Machel”.
Pouco depois as palavras de Hunguana percorriam o mundo através de um des­pacho da AIM. Hunguana recordou este incidente como um dos exemplos do profis­sionalismo de Cardoso: a pronta reacção de Cardoso à conferência de imprensa “ajudou a neutralizar os planos da África do Sul”.
Investigações da AIM
De facto, em cada estágio a AIM estava em cima da notícia, e Pretória concluiu que não podia fazer decla­rações sem a resposta de Maputo...
Uma das áreas-chave investigada pela AIM foi o sistema de radar sul-africano. Porque a pergunta óbvia era: porque é que não foi usado o sistema de controlo aéreo para avisar o piloto que o Tupolev estava fora da rota e em risco de entrar no espaço aéreo sul-africano? Os sul- -africanos menosprezaram isto dizendo que o avião estava a voar a tão baixa altitude que saiu dos moni­tores do radar e os con­troladores aéreos assumiram portanto que tinha aterrado em Maputo.
Pik Botha afirmou a 1 de Novembro que o Tupolev “simplesmente desapareceu dos monitores. Ninguém em controlo do radar podia ou teria imaginado que hou­vesse alguma coisa anormal nisso”. Botha pintou um qua­dro que dava o sistema de radar como primitivo ou ineficiente, moni­torado por pessoal desatento. Mas uma investigaçãozinha da AIM, usando fontes sul-africanas publicadas, de­monstrou que Pik Botha estava a mentir. Mais de dez anos antes, a África do Sul tinha resolvido o problema de “aviões desaparecidos” dos monitores do radar. Em Mariepskop, junto das mon­tanhas do Drakensberg, foi montado um sistema de aviso concebido para alertar sobre “aviões hostis apro­ximando--se da África do Sul”.
O regime do apartheid vangloriou-se disso. O “Star” de Joanesburgo, em Feve­reiro de 1975, escreveu sobre este sistema que “pode detectar a maior parte dos movimentos numa vasta circunferência entre o oeste do Botswana, o norte da Rodésia, o sul de Moçam­bique e o leste do Natal. Calculadores de altitude são posicionados perto e podem calcular a altura de qualquer aeronave detectada pelo scaner. Este material era transmitido por computador ao quartel-general do sis­tema de defesa radar sul-africano, em Devon, que avaliava se a aeronave que se aproximava era amiga ou inimiga.
Em 1982, o sistema sofisticou-se com a aqui­sição do sistema de radar computorizado Plessey AR-3D. A própria empresa Plessey publicitou que o sistema dá “um quadro completo da situação no ar ao pessoal do comando central”.
Um quadro completo, não um quadro parcial, donde um objecto do tama­nho do Tupolev-134 podia desa­parecer miste­riosamente.
Além disso, em Março de 1985, uma nova rede de radar de baixa altitude foi tornada operacional ao longo da fronteira com Moçam­bique. Pik Botha tinha-se vangloriado do novo sistema e as suas palavras podiam encontrar-se na imprensa sul-africana da altura, 19 meses apenas antes do desastre de Mbuzini....
Também em Março de 1985, toda a fronteira do Transvaal ocidental foi de­clarada um “espaço aéreo especialmente restrito” e Malan (ministro de Defesa sul-africano) anunciou que “todas as ajudas tecno­lógicas possíveis estão a ser usadas para garantir a sua eficácia”. Para obter auto­rização para entrar nesta área restrita, os pilotos deviam contactar o quartel-general da força aérea. Mas o Tupolev entrou directa­mente na área restrita e não houve nenhuma ten­tativa para o dissuadir disso.
Em Novembro de 1986, Botha tinha convenien­te­mente esquecido as suas tiradas anteriores sobre as capacidades do radar da África do Sul...
Uma vez saído o relatório factual (da comissão de inquérito tripartida), a coo­peração da África do Sul na investigação do desastre terminou. Pretória tinha feito o mínimo requerido pelas normas da ICAO. Passou então a rejeitar os pedidos de Moçambique para uma investigação do VOR que o avião tinha seguido.
A controversa Comis­são Margo
Em vez disso, os sul-africanos organizaram a sua própria audição pública sobre o acidente, dirigida pelo juiz Cecil Margo, que conseguiu ter êxito em des­viar as críticas ao governo.
A Comissão Margo nem remotamente foi imparcial. De fontes em Pretória Car­doso soube que um dos seus membros era também admi­nistrador da COMAIR, uma companhia aérea usada como frente pelas forças armadas sul-africanas para o reabastecimento da Re­na­mo e da Unita.
Mas, apesar de nem Moçambique nem a URSS estarem representados na Comissão Margo, surgiam de vez em quando per­guntas inconvenientes da parte dos advogados sul-africanos. Foi assim que perguntaram a Pik Botha porquê teria ele feito falsas acusações de que a tri­pulação do Tupolev estava embriagada. Margo inter­veio para impedir mais inter­rogatórios desta natu­reza.
Como se previa, a co­mis­­são de inquérito Margo atirou as culpas para a tripulação soviética e tanto as auto­ridades moçam­bicanas como as soviéticas rejeitaram as conclusões. O relatório Mar­go saiu a 9 de Julho de 1987, mas Armando Guebuza (na altura ministro dos Trans­portes e Comu­nica­ções) reiterou que o trabalho da comissão inter­nacional de inquérito estava longe de ter terminado. “Só se pode chegar a conclu­sões depois de todos os factos terem sido inves­tigados”, disse, “e parti­cularmente este novo ele­mento vital – onde estava este VOR, era uma arma­dilha ou não? Mas os sul- africanos, na sua maneira arrogante e intransigente do costume, continuaram com o seu próprio inquérito e mandaram-nos o relató­rio”...
Nos finais de Junho de 1987, Magnus Malan de­clarou que não toleraria “a exportação da revolução” não só no sentido de suble­vação violenta, mas, tam­bém, na forma de propa­ganda anti-apartheid. Num artigo de 30 de Junho, Cardoso escreveu: “Esta é a primeira vez que um diri­gente do regime do apar­theid tenta tão aber­tamente impor a jornalistas e políticos nos estados da linha da frente o mesmo nível de censura que impõe aos jornalistas dentro da própria África do Sul”.
A propaganda da SABC e o seguidismo cabritista
A 9 de Julho a SABC celebrava a conclusão do inquérito Margo com um ataque à AIM e a Carlos Cardoso em particular. Éra­mos todos descritos como “agentes soviéticos”.
“Pouco depois do de­sastre, os doutrinadores soviéticos começaram a conceber e efectivar uma intrincada estratégia de desinformação”, clamava a SABC. “Moscovo cooptava a assistência de agentes so­viéticos de influência dentro das agências do governo de Moçambique. Os meios de comunicação de Mo­çambi­que participaram em pleno nesta campanha e serviram para dar ímpeto à operação inteira”.
“Dias antes da morte de Machel, Carlos Cardoso, o director do instrumento de propaganda da Frelimo, AIM, um marxista ortodoxo, es­peculou que a África do Sul ia possivelmente retaliar pela explosão da mina que matou seis soldados sul-africanos. Num artigo, Car­doso decla­rou explicitamente que o Presidente Machel era um alvo provável de uma ten­tativa de assassínio”. Neste ponto a peça da SABC mostrava a fotografia de Cardoso no ecrã.
“Cardoso emergiu mais tarde como figura-chave na estratégia de desinformação soviética”, continuava a SABC. “Na sua capacidade de director da AIM, ele esteve na origem de uma grande percentagem da produção total de desin­formação”...
A isto seguiu-se, dias mais tarde, uma carta formal ao governo enviada por Colin Patterson, chefe da mis­são comercial sul-afri­cana em Maputo, protes­tando contra os artigos de Cardoso. Hunguana mos­trou a carta a Cardoso.
Patterson escreveu: “Con­­­­sidero decepcionante que Moçambique tenha se­guido tão servilmente a linha de Moscovo sobre Mbuzini. O que torna o assunto mais triste é que Moscovo conhece a verdade e tenta defender a sua reputação e posição em África, ao passo que Mo­çambique aparente­mente permite que o empurrem para assumir um ponto de vista totalmente desmentido pela evidência e as con­clusões de peritos mundiais, para promover a sua própria inexplicável campanha de difamação contra a África do Sul”.
Segue-se a ameaça ve­lada: “Deste modo, la­mento dizê-lo, Moçambique já foi perigosamente longe na via da desconfiança e sus­peição, no que diz res­peito ao povo e governo da África do Sul”.
À distância de 15 anos, as invectivas da SABC e de Patterson sobre a conspi­ração soviética dão vontade de rir. Mas na altura pare­ciam carregadas de amea­ça.
Finalmente, a questão de sucessão. A ideia de que Chissano “golpeou” Mar­celino dos Santos só pode convencer alguém que não estava em Moçambique (Cabrita) ou era jovem demais para recordar o ambiente daquela altura (Nhachote). Na realidade, Chissano era o sucessor evidente. Eu me lembro bem de discussões infor­mais entre jornalistas, anos antes de Mbuzini: ninguém duvidava: Chissano seria o próximo presidente. Assim, a decisão rápida da Fre­limo depois da morte de Samora de eleger Chissano presidente não tomou ninguém de surpresa (em Maputo pelo menos, em­bora talvez não nas hostes de apartheid).
Falcões de ontem e de hoje
Como Mbuzini contribuiu para a paz
Por Luís Nhachote
O nosso colega media­FAX (edição de 24 de Ou­tubro) noticiou que proe­minentes figuras políticas nacionais afectas ao partido Frelimo puseram em causa o livro do inves­tigador moçam­bicano João Cabrita – “A Morte de Samora Machel”, no tocante à versão do autor sobre a forma como perdeu a vida o fundador da República Popular de Moçambique e também sobre o alegado plano de guerra que visava a invasão da República do Malawi, deposição do presi­dente Banda e instalação de um novo regime no país vizinho.
O veterano e histórico da Frelimo Marcelino dos Santos disse ao mediaFAX que “quem é moçambicano não duvida que Machel foi morto pelo apartheid”.
O conceituado escritor e intelectual Luís Bernardo Honwana, tal como Sérgio Vieira, na sua qualidade de co-fundador do Centro de Documentação Samora Ma­chel, também desmentiu que Samora tivesse morrido numa missão de guerra.
Ambos insistem que o primeiro presidente moçam­bicano morreu no cumpri­mento de uma missão de paz. Minutas de uma reunião realizada no dia 16 de Outu­bro, três dias antes da morte de Samora Machel, na posse do SAVANA, ilustram que este morreu em missão de guerra.
O que diz o livro de Cabrita
O livro de Cabrita, de facto, faz referência e cita documentos sobre um plano militar que terá sido fabricado por Moçambique e pelo Zimbabwe para o derrube do regime do Presidente Kamu­zu Banda, da República do Malawi, tido então como retaguarda da RENAMO-Resistência Nacional Mo­çam­bicana.
Desenvolvendo a sua tese sobre o aproveitamento político do desastre de Mbu­zini, Cabrita trás dados novos afirmando que houve um aproveitamento “genera­lizado”, quer por parte dos Estados da então Linha da Frente e da sua aliada e extinta União Soviética comu­nista, quer da própria África do Sul, quer ainda dos partidos da oposição que se viriam a estabelecer em Moçambique depois de 1992 quando é assinado o Acordo Geral de Paz em Roma.
O autor de “A Morte de Samora Machel” escreve a dado passo: “A própria África do Sul, como que numa tentativa de desviar as aten­ções do seu alegado envol­vimento na morte de Samora Machel, fez uso de um documento da Presi­dência da República moçambicana descoberto entre os des­troços do Tupolev em Mbu­zini, o qual dava conta de um plano concebido pelos Go­ver­nos de Moçambique e do Zimbabwe para se invadir o Malawi e depor o regime de Kamuzu Banda.”
O investigador João Cabrita, que em “A morte de Samora Machel” trouxe ao público peças do inquérito ao acidente de Mbuzini – peças essas de que o nosso governo sempre dispôs, mas manteve sempre, inex­pli­cavelmente, em segredo –, a dada altura refere que “o documento (da reunião de 16 de Outubro de 1986) deixa transparecer a relu­tância do então presidente zambiano, Kenneth Kaunda, em apoiar o plano (de Samora), cuja fase inicial incluía o encerramento de todas as fronteiras com o Malawi”.
E acrescenta, voltando a citar o documento, que Machel “pretendia asse­gurar, com carácter de urgência, o desdobramento na província da Zambézia de 1500 homens idos de Maputo e Nacala, assim como a transferência de aviões MiG-17 e helicópteros de combate da Beira para aquela província. Aviões MiG-21 seriam transferidos de Maputo para Beira, de onde operariam.”
As minutas de Maputo
O documento a que nos temos estado a referir são as minutas de um encontro entre delegações de alto nível de Moçambique e do Zimbabwe realizado em Maputo a 16 de Outubro de 1986, portanto 3 dias antes do Tupolev de Samora Machel se despenhar em Mbuzini, na África do Sul, a poucos metros da fronteira moçambicana.
O SAVANA conseguiu obter algumas dessas mi­nutas e de uma leitura atenta do documento se pode constatar o ambiente de grande tensão militar então reinante na zona da África Austral. A linguagem utiliza­da nessa reunião é reve­ladora do agudizar do conflito armado em Moçambique e das posições extremadas que o nosso país, assim como o Zimbabwe pareciam estar dispostos a adoptar para se pôr cobro à insta­bilidade político-militar no nosso País.
Dizia Samora Machel na abertura do encontro de 16 de Outubro de 1986, em Maputo: “A atmosfera da nossa região em relação aos bandidos armados está muito elevada. Parece que pela primeira vez sentiram o perigo que representa o banditismo armado na nossa região.”
Em suma, era uma lin­gua­gem de homens de guerra, temperados na guer­ra, dispostos a continuar a fazer a guerra com o fito de acabar com a guerra. Na sua ordem de ideias, o alcance da paz seria, sem dúvida, o seu objectivo final. Mas o preço em vidas e infra-estruturas teria sido enorme para Moçambique e para a região, mais ainda sem garantias de sucesso, de­preende-se da leitura das minutas de Maputo. A busca da paz com outra estratégia provou-se ser um caminho mais acertado. Hoje todos beneficiamos dela se a lin­guagem belicosa não voltar ao léxico político nacional pela voz de quem parece precisar dela para regressar à ribalta...
Antes do início do en­contro de 16 de Outubro de 1986 (3 dias antes da fata­lidade aeronáutica que pôs termo à vida do primeiro Comandante-em-Chefe das FPLM) que contou com a participação dos ministros de estado da Segurança e da Defesa do Zimbabwe, res­pectivamente Emerson Mu­nangagwa e Ernest Kadan­gure, para além dos co­mandantes do Exército e da Força Aérea de Robert Mugabe, nomeadamente o Ge­ne­ral Rex Nhongo e o Mare­chal Tungamiray, entre ou­tros, o Presidente Samora Machel fez questão de or­denar que o embaixador do Zimbabwe acreditado em Maputo, senhor Mvundura, abandonasse a sala de reu­niões.
As minutas do encontro citam Samora Machel como tendo dito a-propósito: “Os embaixadores são compli­cados. Quando me reúno com o Primeiro-Ministro estão presentes e quando me reuno com os militares querem também” estar presentes. (NB: Robert Mugabe ainda não era presidente, o PR do Zimbabwe era Canan Bana­na)
Referindo-se ao Malawi, o falecido presidente Machel é citado nas minutas a dizer que “neste momento o que nos interessa é o foco do banditismo armado no Ma­lawi. E, neste momento, a África do Sul está a fazer força, a 80 quilómetros daqui, acusando Moçambique de várias coisas, que é para não atacarmos o centro e eles continuarem a fazer do Ma­lawi a sua base.”
O plano de guerra de Sa­mora
Virando-se para o General Rex Nhono, o presidente Machel começou por dizer: “Rex, vamos dar tarefa aos políticos. Primeiro-Ministro (Mário Machungo, de Moçam­bique, hoje PCA do BIM) e Emerson consigam que:
1. Malawi aceite que as forças de Moçambique atra­ves­sem Zambézia/Tete/Zam­bézia através do seu território [...] assim como dê auto­rização para tropas zimba­bweanas passem de Tete/Zambézia/Tete.
2. Zimbabwe proponha ao Malawi que utilizemos o porto da Beira... Esta é a parte política e só pode ser feita por gente da segurança e contra-inteligência.
3. Moçambique e o Zimbabwe descubram nova força no Malawi. Banda está gasto. Não deixemos a África do Sul colocar a direcção no Malawi. Não deixemos os ingleses, os americanos, a RFA escolher líderes para o Malawi. Os militares sabem como devem fazer as coisas.
4. Ganhemos o povo inteiro do Malawi. Nas nossas declarações sempre afir­memos que o povo do Malawi é nosso amigo, as auto­ridades é que são más, a sua acção é que prejudica as nossas relações. Ganhemos a maioria. Aqui estamos a seguir a teoria de Mao Tsé Tung: ganhar a maioria, isolar a minoria e aniquilar um por um. Nós podemos também organizar uma frente de libertação do Malawi, equipar e infiltrar no Malawi para liquidar os bandidos lá. Podemos também definir os alvos para essa frente de libertação do Malawi. O melhor combate é transferir a guerra da tua zona para a do inimigo e fazer dela carreira de tiro.”
Kaunda contra a guerra
No prosseguimento da sua alocução na reunião de 16 de Outubro de 1986, o Presidente Samora ordenou que os militares colocassem “todos os meios na Zambézia o mais urgente possível” acrescentando: “Nós fe­chare­mos a fronteira com o Malawi. Sem armas e meios nada podemos fazer. Seria suicí­dio. Se não fazemos isso o Malawi vai continuar a meter bandidos armados. Temos algumas forças especiais para cumprir operações especiais. E temos cerca de 41 MiGs21. A vitória prepara-se. A vitória organiza-se. Exige sangue frio.”
De acordo com Samora Machel, “o Presidente Ken­neth Kaunda não garantiu fechar a fronteira com o Malawi. Fizeram-lhe a per­gunta e não deu resposta satisfatória.”
Tanzânia também era alvo
Ainda segundo Machel, “quando fecharmos a fron­teira devemos ter a certeza de que se o Malawi desviar as suas mercadorias para a Tanzânia nós vamos partir as pontes que o ligam à Tan­zânia. Mas terão de ser pontes que levarão 4 a 5 anos a construir. Se desviar a rota através da Zâmbia, não vamos partir as pontes da Zâmbia, mas partiremos as do Malawi que dão saída para a rota Kasangulo/Botswana e entrar para a África do Sul. Se partirmos as pontes que os levam à Tanzânia e à Zâmbia temos o Malawi nas mãos.”
Virando-se para o vice-ministro da defesa moçam­bicano, Armando Panguene (hoje embaixador nos Esta­dos Unidos da América), e o ministro de estado zimba­bweano para a Defesa, Ka­dan­gure, Samora Machel afirmou:
“Já defini o meu pen­samento. Ponham lá a fun­cionar”.
Ao que Kadangure, de acordo com as minutas, respondeu: “Sim, pode ser feito”.
O antigo presidente mo­çam­bicano informou os seus interlocutores que a 10 de Outubro, isto é, 6 dias antes da reunião de Maputo, ele reunira-se “nesta mesa com moçambicanos, cubanos e soviéticos,” tendo ficado decidido que Sebastião Mar­cos Mabote (então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Moçambique - FAM-FPLM) “devia seguir imediatamente para a Zam­bézia” a fim de “reconhecer o efectivo dos bandidos arma­dos em cada distrito e pre­parar um campo para receber 1.500 homens que sairão de Maputo e de Nacala.”
Segundo as suas próprias palavras, o presidente Machel queria: “transferir os MIGs21 para a Beira e a partir de lá vão operar. Os Migs17 e helicópteros de combate irão para a Zambézia que é perto do Malawi e de todos os distritos que os bandidos armados ocuparam no nosso país.”
E a finalizar, as minutas citam Machel como tendo dito: “Assim vemos friamente a situação. Esta é a nossa estratégia. O ponto é: como participa o Zimbabwe nisto tudo?”
SAVANA – 04.11.2005

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