sábado, 4 de agosto de 2012

Acidente de Mbuzini

Sérgio Vieira não é fonte credível *
                                                          João M. Cabrita

O papel de Sérgio Vieira tem sido o de encobrir os verdadeiros responsáveis pelo acidente de Mbuzini. Em conluio com a Embaixada da União Soviética em Maputo, tratou de ocultar das comissões de inquérito nacional e internacional uma testemunha chave – o mecânico de bordo que havia sobrevivido ao acidente – e depois tentou extrair, com recurso à intimidação, depoimentos de uma outra testemunha chave que fossem coincidentes com a cabala montada por círculos influentes em Moscovo e Maputo a qual visava provar, através de órgãos de comunicação social subservientes, a existência de um VOR falso.

Na recente entrevista que Sérgio Vieira concedeu à STV, ficou uma vez mais demonstrado que o papel do antigo ministro da segurança moçambicano, no âmbito de Mbuzini, tem como objectivo fundamental encobrir os verdadeiros responsáveis pelo acidente de aviação em que perdeu a vida o Presidente Samora Machel. Não obstante a sua condição de membro da Comissão Nacional de Inquérito, Sérgio Vieira revelou um profundo desconhecimento das circunstâncias do fatídico acontecimento, para além de ter baralhado situações e distorcido factos, o que, à partida, o impede de evocar o princípio jurídico de prova circunstancial, e faz dele uma fonte não credível. As teses infundadas por ele defendidas, a incongruência dos seus pontos de vista, a insustentabilidade dos seus argumentos e a forma atabalhoada como trata de questões de aviação (veja-se, a título de exemplo, o ter atribuído à IATA responsabilidades que são da esfera de competências da ICAO) levam observadores atentos a concluir que as ilações por ele tiradas a respeito de telefonemas recebidos de missões diplomáticas acreditadas em Maputo, poucos dias antes do funeral de Samora Machel, mais não são do que meras especulações, vindas de quem não é capaz de destrinçar entre o plausível e o inverosímil.
A determinada altura da entrevista, Sérgio Vieira afirma que “na caixa de voz de cabine, não a dos motores, que é feita na África do Sul, está registado onde é que estamos. “Estamos fora da rota?” e o navegador responde: “não”.
A leitura do gravador de cabine (o CVR, mas que Sérgio Vieira designa de “caixa de voz de cabine”) não foi feita na África do Sul. Conforme o acordado entre as três partes (Moçambique, África do Sul e União Soviética), a leitura do CVR teve lugar em Zurique, Suíça. E a outra componente das caixas negras, o Gravador de Dados Técnicos do Voo (DFDR, que Vieira descreve como “caixa dos motores”...), foi aberta e analisada em Moscovo. Da transcrição do conteúdo do CVR não constam as palavras que Sérgio Vieira atribui aos tripulantes, obviamente numa tentativa de dar consistência à sua teoria sobre um “aparelho muito mais complexo que estava a ser testado e podia dar informações falsas de radar e de rota”. É a velha tese do “VOR falso”, agora apresentada com roupagens diferentes.
 
A tese do VOR falso foi de tal modo inconsistente que a União Soviética até tentou fabricar provas para demonstrar a sua existência. Os peritos soviéticos que vieram a Maputo no âmbito das investigações, pretendiam que o Comandante Sá Marques, do voo TM 103 das LAM, admitisse que o Boeing-737 por ele pilotado e que seguia da Beira em direcção a Maputo quando o Tupolev sofreu o acidente, também havia sido desviado da rota por acção do famigerado VOR falso. O Comandante Sá Marques negou terminantemente que a sua aeronave tivesse sido desviada da rota, pois esteve sempre sintonizada no VOR de Maputo, inclusivamente quando recebeu ordens da Torre de Controlo do aeroporto da capital moçambicana para regressar à Beira poucos minutos depois do despenhamento do Tupolev. A recusa do Comandante Sá Marques em alinhar na cabala soviética, que visava desculpabilizar os pilotos do Tupolev, lançou por terra toda a encenação montada em torno do VOR falso, o que não foi do agrado do então ministro da segurança moçambicano. Quase que de imediato, este tratou de enviar agentes do Snasp à residência do piloto das LAM, num acto ostensivamente intimidatório, o que levaria o Comandante Sá Marques a optar por deixar Moçambique.
 
Uma outra  prova da não existência de nenhum VOR falso é a de que o avião, após ter efectuado a volta prematura à direita, deixou de estar sob a influência desse aparelho, pois o co-piloto havia mudado a frequência do VOR para a frequência do ILS (Sistema de Aterragem por Instrumentos). Além do mais, nos últimos minutos do voo ficou registada no CVR esta troca de palavras entre o navegador e o comandante, provando que o avião não se encontrava sob a acção de nenhum VOR:

NAVEGADOR: Não há para onde ir, não há NDB [Radiofarol Não-Direccional], não há nada.
COMANDANTE: Nem NDBs, nem ILS.
 
Se os grandes defensores da teoria do VOR falso, incluindo Sérgio Vieira, estivessem tão cientes da sua existência, ele próprio não teria, em conluio com a Embaixada Soviética em Maputo, tratado de ocultar das comissões de inquérito nacional e internacional uma testemunha chave – o mecânico de bordo que havia sobrevivido ao acidente – permitindo antes que ele comparecesse perante ambas a fim de esclarecer essa e várias outras questões.
 
O VOR é instrumento que indica o azimute, isto é, uma direcção no plano horizontal. O sinal emitido por um VOR por si só não pode fornecer as informações em função das quais se poderá tentar uma descida, quer por instrumentos ou ao abrigo das Regras de um Voo Visual. O avião desceu por decisão do piloto, e fê-lo em desobediência das instruções dadas pela Torre de Controlo de Maputo e em desrespeito do aviso sonoro do GPWS. As instruções da Torre de Controlo também ficaram gravadas e são bem explícitas: quando atingissem os 3,000 pés de altitude, os pilotos deveriam parar com a descida até avistar as luzes da pista.
 
Momento em que se procedia à abertura do CVR do Tupolev presidencial em Zurique. Do lado esquerdo, em primeiro plano, um membro da Comissão Nacional de Inquérito moçambicana. (Foto: Des Lynch)
 
Quando solicitado a comentar pelo entrevistador da STV o facto dos tripulantes estarem entretidos em conversas banais e com a encomenda de cerveja, Sérgio Vieira tenta em vão minimizar essas graves faltas do comandante e dos restantes membros da tripulação, saindo-se com um argumento que demonstra ser ele a pessoa menos recomendada para integrar comissões de inquérito mandatadas para investigar desastres de aviação: “Se encomendaram cervejas, a autópsia não demonstrou terem bebido cerveja.”

Mas a questão que se põe não é se os tripulantes beberam ou deixaram de beber cerveja, mas sim o facto de ao se ocuparem de questões como a encomenda de bebidas, não cumpriram com os procedimentos obrigatórios, nomeadamente a verificação das listas de descida e de aproximação à pista. É o que na gíria da aviação se designa de cross-checking, ou contra-prova, em que o comandante da aeronave pede a cada tripulante que proceda à leitura, em voz alta,  de todos os instrumentos de bordo, incluindo as frequências dos receptores VOR, e verifique o funcionamento de outros aparelhos precisamente para garantir a segurança da aeronave nos derradeiros e cruciais momentos do voo.

Nada disto foi efectuado no fatídico voo de 19 de Outubro de 1986, em violação dos regulamentos elementares de aviação. Se o comandante se ocupava da encomenda e distribuição de cervejas e Coca-Cola entre os restantes membros da tripulação, o co-piloto escutava, através do rádio de alta-frequência de bordo, uma estação emissora soviética que transmitia um boletim de notícias seguido de um programa musical. Para além das bebidas, o comandante comentava sobre os dotes físicos de uma das hospedeiras de bordo. Tudo isso ficou gravado no tal aparelho a que Sérgio Vieira chama de “caixa de voz de cabine”.

Sérgio Vieira também se referiu às horas de voo dos tripulantes, tendo dito “que todos eles, menos um, tinham cerca de 40 mil horas de voo.” E acrescenta: “O que tinha menos andava à volta de 8 mil horas.”

De acordo com o Relatório Factual do acidente, compilado e assinado por peritos moçambicanos, sul-africanos e soviéticos, nenhum dos tripulantes possuía nada que se parecesse com as “40,000 horas” de voo avançadas por Sérgio Vieira. De acordo com o referido relatório, as horas de voo dos tripulantes do Tupolev presidencial estavam distribuídas da seguinte forma:
Tupolev 134-A   C9-CAA
Tripulantes 
Horas
de Voo
Comandante
13056 
Co-piloto
3790
Navegador
12948
Operador de Rádio
14370 
Mecânico de Bordo
6203 
 
A facilidade com que Sérgio Vieira lança números ao acaso, já havia ficado demonstrada num artigo de opinião por ele assinado no semanário Domingo, edição de 29 de Junho de 2003, em que afirmou: “Qualquer dos tripulantes beneficiava de uma folha brilhante, o comandante com mais de duas dezenas de milhar de horas de voo.”

A aparente dificuldade de Sérgio Vieira em lidar com questões aritméticas ficou ainda patente na entrevista concedida ao canal STV, no decurso da qual afirmou que “o comandante, por qualquer razão, levanta o avião, entra no território sul-africano e cerca de 200 /300 metros bate com a cauda numa montanha e o avião cai num barranco.”

Ao contrário do que afirma Sérgio Vieira, o avião apenas entrou 150 metros no território sul-africano. Em nenhum momento da descida, o comandante “levanta o avião”, segundo alega Sérgio Vieira, e muito menos ao entrar no espaço aéreo sul-africano, não obstante o sinal de aviso dado pelo Sistema de Aviso de Proximidade do Solo (GPWS) e que foi escutado no interior da cabine de comandos durante 32 segundos. O desrespeito pelo sinal do GPWS por parte de quem comandava a aeronave foi uma das principais causas do desastre e não o “aparelho muito mais complexo que estava a ser testado e podia dar informações falsas de radar e de rota”, segundo especula Vieira. Na realidade, e conforme as três partes deixaram explícito no Relatório Factual, todos os instrumentos de bordo funcionaram normalmente, não tendo sofrido qualquer interferência externa.

De referir que no momento da colisão o trem de aterragem do Tupolev ainda se encontrava recolhido, indicativo de que o avião não estava em configuração de aterragem, o que reforça ainda mais a necessidade de uma resposta imediata ao sinal de alarme do GPWS. Os regulamentos do Tupolev 134-A, são bastante precisos quanto aos procedimentos a seguir na eventualidade do GPWS ser activado:

Se o aviso do GPWS soar com a aeronave em voo plano ou a descer sobre colinas ou terreno montanhoso, a tripulação deve tomar as seguintes medidas:

Fazer a aeronave subir com uma aceleração decisiva de entre 1,25 a 1,7 nós, mantendo o avião em posição de subida entre 20 a 30 segundos e com os motores a trabalhar a uma potência idêntica à da descolagem.

AVISO: Se o tipo de terreno da área sobrevoada for desconhecido, os
membros da tripulação devem proceder de acordo com as recomendações para voos sobre colinas ou terreno montanhoso.

A imagem mostra que o trem de aterragem do Tupolev presidencial ainda se encontrava recolhido no momento da colisão. (Foto: Des Lynch)

E quanto ao avião ter “batido com a cauda numa montanha” e ter “caído num barranco” não coincide com o que na realidade se passou no momento da colisão. De acordo com o Relatório Factual, o primeiro impacto do avião ocorreu quando a ponta da asa esquerda da aeronave bateu no ramo da única árvore existente a cerca de 100 metros da fronteira entre Moçambique e a África do Sul. Com uma inclinação de 1° e 20’, a asa esquerda do Tupolev actuou depois como se fosse uma lâmina, que ia cortando os arbustos rasteiros de micaia que se encontravam a seguir à referida árvore. O primeiro contacto sólido com o terreno, verificou-se igualmente com a ponta da asa esquerda, o que foi confirmado pelo facto do vidro de cor encarnada da luz de navegação ter ficado enterrado no solo. Na zona do impacto, o terreno entrava em declive sobre uma colina, o que permitiu atenuar o impacto da colisão, fazendo com que a aeronave deslizasse momentaneamente, o que explica a existência de sobreviventes. Se, como alega Sérgio Vieira, a cauda do avião tivesse colidido primeiro, os que sobreviveram ao desastre teriam provavelmente morrido no impacto dado que todos eles seguiam na parte traseira do Tupolev

O primeiro ponto de impacto foi a extremidade da asa esquerda do avião, a qual cortou um ramo a esta árvore, a cerca de 100 m da fronteira com Moçambique. (Foto: Des Lynch)
O tipo de terreno contra o qual o Tupolev presidencial colidiu era uma colina, cujo declive permitiu que o avião deslizasse momentaneamente até se desintegrar.O avião não caiu em nenhum barranco pois este, como a imagem ilustra, não existia. (Foto: Des Lynch

Surpreendentemente, e contrariando o que peritos moçambicanos confirmaram num parecer que consta do relatório da Comissão de Inquérito, Sérgio Vieira, ao tratar da questão do combustível da aeronave, afirmou na entrevista, que “tentou-se acusar que o avião não tinha combustível suficiente, mas viu-se que tinha combustível suficiente”. De facto, conforme vem claramente enunciado no Relatório Factual, o avião não dispunha de combustível suficiente para o voo de regresso a Maputo. Na eventualidade de ter de abortar uma aterragem em Maputo, o avião não conseguiria alcançar o aeroporto alternante, que era a Beira. E aqui, o erro da tripulação foi não ter cumprido com os regulamentos de aviação que determinam que uma aeronave deve dispor de combustível suficiente para poder alcançar o aeroporto de destino, e dirigir-se deste ao aeroporto alternante, e ainda 45 minutos adicionais em voo de espera sobre o aeroporto alternante. Se, na noite do dia 19 de Outubro de 1986, o Tupolev presidencial tivesse de desviar a rota para a Beira quando se encontrava desorientado nas proximidades de Maputo, não conseguiria ir muito além do Rio Save – caía, simplesmente, por falta de combustível.

A falta de combustível verificada no voo em que o Presidente Samora Machel perdeu a vida, não foi a primeira que ocorreu em voos pilotados pelo mesmo comandante. Meses antes do desastre de Mbuzini, o Tupolev presidencial efectuou uma aterragem em Maputo com um dos motores parados por insuficiência de combustível.

Ao longo da sua carreira, o piloto do Tupolev presidencial efectuou voos na Europa e em outros países africanos em que as aeronaves sob seu comando não dispunham de combustível suficiente. E isto foi confirmado por ele próprio durante a conversa que manteve com os demais tripulantes do voo de 19 de Outubro de 1986, dentro da cabine de comandos, e que ficou gravada no CVR. A transcrição do CVR, efectuada em Zurique, prova-o.

Semanas antes do acidente de Mbuzini, o Tupolev presidencial, com a primeira-dama moçambicana a bordo, despistou-se ao efectuar uma aterragem no aeroporto de Mocímboa da Praia. No mesmo voo, o piloto abortou por duas vezes a aterragem no aeroporto de Pemba, só conseguindo fazê-lo à terceira tentativa, pese embora o facto de na altura se registar bom tempo em Cabo Delgado. Foi a conjugação destes e outros factores que levou um membro do então Bureau Político do Partido Frelimo a comentar, em privado, que a Sra. D. Graça Machel “sabe perfeitamente que os pilotos só nos causavam problemas”, na sequência das declarações por ela proferidas perante a Comissão da Verdade e Reconciliação sul-africana de que oficiais das FAM haviam colaborado com o apartheid no “assassinato” do Presidente Samora Machel.

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* Agradeço a Des Lynch, investigador que integrou a Comissão de Inquérito sul-africana, o uso do seu manuscrito, não publicado, “Investigating ‘C9-CAA’ – The true events of the investigation into the
aviation accident in which President Samora Machel died”.

ZAMBEZE – Maputo 21 de Agosto de 2008

1 comentário:

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