12/05/2010
Texto publicado pelo jornalista Boaventura Mucipo no jornal moçambicano "O País" (30.04.2010):
"Segundo o autor, nas vésperas de voar de vez com Samora Machel, o Tupolev-134A, levando a bordo Graça Machel, então primeira-dama, teve dois incidentes graves, em Cabo delgado Samora Machel veio a morrer quase dois dias depois no mesmo avião.
A queda do avião presidencial que vitimou o primeiro Chefe de Estado de Moçambique, Samora Machel, deveu-se exclusivamente à negligência da tripulação, conclui um livro lançado ontem na capital portuguesa, Lisboa, com o título “Samora Machel: Atentado ou Acidente”.
Da autoria do jornalista e historiador português José Milhazes, o livro relata que a tripulação soviética, que levava Samora Machel a Maputo saído da Zâmbia, cometeu “violação de todas as normas possíveis”, desde a “falta de plano de voo”, não reabastecimento do avião ao “excesso de carga”.
“A julgar pelas gravações das conversas, a tripulação não conseguiu compreender por que é que as lâmpadas de emergência dos depósitos de combustíveis tinham uma cor fora do comum. Mas a tripulação não tinha a bordo o livro de instruções de voo que era obrigatório e não prestou atenção ao piscar das lâmpadas”, esclarece o documento, citando o jornal de bordo que se conservou parcialmente e as gravações das “caixas negras”.
O livro, publicado sob chancela da Alêtheia Editores, explica também que a tripulação calculava que estava a viajar a uma altura de 11 300 metros , quando o operador de rádio, sem acordar com o comandante, comunicou ao controlador de tráfego aéreo que a altura era de 10 650 metros .
Mas isto não foi o pior. “Faltavam 10 minutos de voo até ao radiofarol quando o piloto, novamente sem concordância do comandante, alterou os parâmetros do voo no piloto automático. Os pilotos não se preocuparam sequer com o facto de à direita do aeroporto de Maputo haver uns montes. Eles decidiram que, tal como habitualmente, devido à guerra, a iluminação da pista estava desligada”.
Com autorização do comandante, a tripulação pisou o acelerador a fundo no sentido de aterrar o avião e “até ao choque com o monte faltavam 15 segundos”. Samora Machel e uma comitiva de mais de 30 pessoas perdiam assim a vida a 19 de Outubro de 1986.
“Eles foram fantasticamente desleixados em tudo. Eles consideravam que sabiam de tudo melhor que os aparelhos. Consideravam que os aparelhos mentiam, mas enganaram-se”. Foi assim como reagiu o principal construtor do Tupolev-134A, Leonid Seliakov, integrado na comissão de investigação, segundo conta o livro de Milhazes.
Mas o que terá distraído a tripulação para tamanha negligência? O livro encontra uma razão infantil. “No dia da viagem, a tripulação teria recebido um presente: Coca-Cola, de que havia muita falta em Moçambique e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E, durante todo o voo, não conseguiram determinar se dividiam as latas em partes iguais ou em conformidade com o cargo”, explica o livro, citando fontes que investigaram a fundo as causas do acidente.
O mistério em relação ao acidente de Mbuzine tem alimentado muita especulação, com o dedo acusador a apontar como prováveis responsáveis pela queda do avião a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS -, agora Rússia, e a África do Sul. O autor de “Samora Machel: Atentado ou Acidente” desmente qualquer das hipóteses.
URSS
De acordo com a obra de 125 páginas, a União Soviética não podia admitir a tese de erro de tripulação, porquanto estrangulava a sua reputação face ao capitalismo que lhe vinha roubando terreno: “Era preciso, e imediatamente, salvar a reputação da aviação soviética”.
A África do Sul passou a ser o principal bode expiatório de Moscovo, pesando sobre si a responsabilidade pela morte de Samora Machel.
Lembre-se que Samora Machel morreu num contexto em que não estava claro o rumo que o país pretendia seguir, se socialista ou capitalista. Tratava-se de um período difícil, de Guerra Fria, ou seja, disputa entre a União Soviética e o Ocidente.
Quando foi formada a equipa de investigação, as partes (moçambicana, sul-africana e soviética) chegaram a consenso de que as conclusões definitivas sobre as causas do acidente deviam ser feitas em Maputo ou na África do Sul.
Só que, a dado passo, a União Soviética recua, baseando-se no facto de que, devido à diferença de sistemas políticos, as conclusões tiradas na África do Sul não seriam objectivas.
A África do Sul propôs que as conclusões fossem tiradas por um tribunal constituído por especialistas de aviação, mas a União Soviética recusou-se a participar. Sobre a probabilidade de ter sido o regime de Moscovo a assassinar Samora Machel, o livro do jornalista José Milhazes diz ser improvável, já que aquele bloco socialista não pautava pela eliminação física dos seus inimigos.
Papel da África do Sul
José Milhazes explica, no seu livro, que a África do Sul não tinha razões para abater o avião que transportava Samora Machel, uma vez que o Acordo de Inkomati de não agressão já estava em vigor, estabelecendo o respeito entre ambos os países.
Incidentes com tupolev-134A
Afinal, quase dois dias antes de voar de vez com Samora Ma chel, o avião presidencial tinha tido dois incidentes graves em Pemba e em Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado, quando transportava a antiga primeira-dama, Graça Machel, e não só.
Quem assim explica é o piloto Armando Cró Braz, ou comandante Braz, que dirigiu vários voos com Samora Machel, incluindo uma viagem a Cabo Verde. “Ia a bordo uma delegação da ONU com destino ao norte do país, Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado. Antes disso (o avião) fez duas tentativas de aterragem. Não conseguiu. Pela terceira vez, aterrou e a delegação subiu. Quando chegou à Mocímboa da Praia, o avião saiu da pista de aterragem e toda a gente julgava que tinha havido um grande acidente, mas não morreu ninguém”.
Armando Cró, que esteve à frente da companhia aérea nacional de 1970 a 1981, explica que Graça Machel, a então primeira-dama, se fazia a bordo naquele voo.
Longe da pista, o Tupolev-134A foi rebocado através de tractores e carros militares, segundo conta. “Ora, um avião que tem um problema desses nunca pode voar, sobretudo com o presidente da República”, refere o ex-comandante.
Para Armando Braz, a morte de Samora Machel deriva de um erro “mas não se admite que pilotos experientes cometam aquelas falhas”.
Tese de João Cabrita
A tese de José Milhazes corrobora a que João Cabrita defendeu no seu livro “A Morte de Samora Machel”. Na mesma, o seu autor referia, basicamente, que o avião de Samora Machel caiu por acidente, essencialmente, devido à negligência de tripulação do Tupulev 134. Cabrita cita mesmo no seu livro uma passagem das conclusões do relatório nos seguintes termos: no tocante às causas da queda da aeronave: “... o facto de a tripulação não ter cumprido com os requisitos para uma descida por instrumentos, mas continuou a descer ao abrigo das regras de um voo visual, no escuro e com alguma nebulosidade, isto é, sem ter contacto visual com o solo, abaixo da altitude minimamente segura e da altitude mínima que lhe teria sido atribuída, para além de ter ignorado o sinal de alarme dado pelo GPWS.”
Quanto à volta prematura, os defensores desta tese sustentam que “a mesma foi da iniciativa do navegador que, para tal, recorrer ao sistema Doppler e ao piloto automático, e fê-lo porque o VOR assim o indicava.” Acrescenta depois que “... não há qualquer fundamento na teoria de que a aeronave foi desviada da sua rota por meio de um VOR falso ou qualquer outro aparelho.”
URSS preferia Chissano a Samora Machel
Depois da morte de Samora Machel, continua o livro, a indicação de Joaquim Chissano para os cargos de presidente da Frelimo e da República de Moçambique foi bem recebida em Moscovo.
Os dirigentes soviéticos viram em Chissano um líder mais culto e equilibrado do que o seu antecessor nesses cargos. Na verdade, as qualidades de Joaquim Chissano já tinham sido notadas pelos soviéticos durante a época da guerra contra as tropas portuguesas.
Joaquim Chissano criou também boa imagem em Mikhail Gorbatchov, secretário-geral do partido comunista da União Soviética entre 1985 e 1991. “Ele é um homem erudito, racional, ao contrário de Samora Machel. Chissano é realista e flexível. Samora é mais radical, impulsivo. Chissano é calculista”, disse Gorbatchov a 6 de Agosto de 1987, segundo revela a obra."
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