sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O debate como espectáculo

 Elisio Macamo

O preço de pensar em voz alta (3)

Pensar, como tenho estado a dizer, tornou-se um acto visível. Não no sentido de iluminar o espaço público, mas no de ocupá-lo como se fosse um palco. As ideias passaram a disputar o mesmo lugar simbólico que a música, o desporto ou a política de bastidores, isto é, servem para entreter. A reflexão, que deveria ser um exercício de discernimento, converteu-se em performance. E o debate, que deveria ajudar a organizar o pensamento colectivo, transformou-se num espectáculo. Em Moz, como aliás em quase todo o mundo, essa transformação é particularmente visível. A política já não se discute para compreender. Discute-se para distorcer. As ideias são recebidas como golos ou murros. Os “debates” nas redes sociais, nos programas de TV ou nas conversas de esquina tornaram-se arenas de emoção. É a victória da plateia sobre o público.
A lógica do espectáculo implica uma mudança mais profunda que consiste na substituição da substância pela aparência. Já não importa tanto o que se diz, mas sim a forma como se diz. A clareza do argumento cede lugar à teatralidade da frase. A força do raciocínio é medida pelo número de aplausos, não pela coerência. Essa inversão tem efeitos devastadores. Faz com que as pessoas percam o hábito, se é que o tinham, de ouvir com atenção, desvaloriza a contradição e recompensa quem fala mais alto. O ruído vence a razão porque é mais excitante. Um exemplo recente ajuda a compreender este fenómeno. Após a minha crítica à entrevista do engenheiro Venâncio Mondlane, e uma reacção crítica ao mesmo, surgiu um texto que descreveu a coisa como “um ringue de retórica e sapiência”, comparando-o a uma rivalidade entre artistas ou jogadores. O autor, com boas intenções, elogiava ambos os lados, mas o que o seu texto revelava era a confusão estrutural que domina o nosso espaço público e que consiste em ler uma discussão de ideias como um duelo de egos.
Essa leitura estética e emocional não é trivial. Ela expressa uma profunda crise de discernimento. Ao equiparar dois textos apenas pela elegância da escrita ou pela intensidade do tom, apaga-se a diferença fundamental entre crítica e reacção e entre argumentar e opinar. O público transforma-se em espectador de um combate simbólico, não em participante de uma conversa racional. O debate deixa de ser instrumento de aprendizagem e passa a ser espectáculo de vaidades. É por isso que o elogio à “bravura” de quem responde, ou à “eloquência” de quem replica, soa tão oco. O que deveria ser um exercício de pensamento colectivo torna-se narrativa moral, uma espécie de confronto entre heróis e vilões. O resultado é um empobrecimento estrutural da cultura intelectual, pois a forma sobrevive, mas a substância desaparece.
Este fenómeno não nasce da maldade. Nasce da fragilidade das instituições de discernimento. Quando as universidades, os jornais e as associações culturais deixam de exercer o papel de mediadores do pensamento (seleccionando, avaliando, explicando), o debate migra para os espaços onde a velocidade vale mais do que o rigor, portanto, para as redes sociais. Aqui, o que conta não é a ideia, mas a visibilidade. A lógica do espectáculo recompensa a reacção rápida, a ironia fácil e o ataque pessoal, tudo o que produz reacção. E a reacção, não o raciocínio, é o novo critério de sucesso. Neste contexto, o populismo moral floresce. Não é apenas uma estratégia política, mas também uma consequência cultural. Ele oferece às pessoas a satisfação de sentir sem a exigência de compreender. Ao reduzir a política à moral, transforma o debate numa liturgia do bem contra o mal. O populista é, nesse sentido, um artista do espectáculo, aquele que domina a emoção, simplifica a realidade e encena a redenção. O intelectual crítico, ao contrário, é um corpo estranho nesse teatro porque fala de estrutura, de contexto e de causalidade. É lento quando o espectáculo exige rapidez.
Mas o que parece fraqueza é, na verdade, a sua força. Num ambiente saturado de ruído, a serenidade pode ser um acto de resistência. Continuar a argumentar quando todos gritam é a forma actual da coragem. Não porque o intelectual tenha razão garantida, mas porque insiste que a razão ainda importa. Há, contudo, um risco. Quando o debate é dominado pelo espectáculo, até a crítica corre o risco de ser convertida em entretenimento. O próprio esforço de pensar pode ser absorvido pela lógica da visibilidade. Isso acontece quando textos sérios são lidos como “episódios” e quando o público se prepara para “a próxima temporada” de uma disputa de ideias. O pensamento torna-se série e o intelectual, personagem. É o triunfo do consumo sobre o conteúdo.
O desafio é recuperar o sentido público da reflexão. Isso não significa retirar o prazer do debate, porque pensar também pode ser bonito e vibrante, mas devolver-lhe o seu propósito, que é compreender o mundo para o melhorar, se possível. A palavra pública precisaria de voltar a ter densidade. O que está em jogo não é apenas a qualidade da conversa, mas também a saúde da cidadania como tenho vindo a dizer há anos ao definir o papel das ciências sociais como sendo o de melhorar a qualidade do debate na esfera pública. Sem debate racional, não há política. Há apenas ruído e fé. Pensar em voz alta, neste contexto, é recusar-se a ser personagem do espectáculo. É insistir que o debate é um serviço. É lembrar que o público não é audiência, que pode fazer parte duma comunidade de pensamento. O preço de pensar em voz alta é elevado porque, hoje, pensar é o contrário de entreter.
Mas é por isso mesmo que vale a pena pagar esse preço.
Marcos Sinate
Aprecio o debate de ideias sem ataques ad hominem. Neste texto, desmascara-se um texto, e não a pessoa que o escreveu. É precisamente isso que nos é difícil e cria confusão na esfera do debate em Moz.
Moises Celestino Matavele Matavele
É impressionante como o Professor Elísio Macamo analisa os assuntos de forma desapaixonada! Só temos que aprender! Obrigado por estas lições gratuitas!

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