Estou a pensar na intolerância, estigmatização, violência que habita os dias que correm. Tenho estado a pensar, à minha maneira sobre tudo isto. Os textos são grandes mas , pensei em resumi-los.
Aqui vai a primeira parte.
Sobre a Facebookização do nosso quotidiano, o mimetismo que me apoquenta
(primeira parte)
É óbvio que estamos em crise. Este é um momento decisivo sobre questões existenciais, económicas, políticas e culturais, em Moçambique. Parece ficar claro que nada será como dantes.
Tudo isso suscita uma amálgama de sentimentos que, por seu turno, presumo, resultam de uma conjugação de factores, evidenciados em diferentes campos, como sejam a economia, a política, e a cultura que, tipicamente vivem de paredes meias.
Tais evidências servem de leitmotiv para as movimentações de massas que assistimos, nestas reivindicações.
Por um lado, estas manifestações são reveladoras do exercício de cidadania, no sentido em que as pessoas pensam e agem sob o impulso da sua auto-reflexividade. Quer dizer, os sujeitos nelas envolvidos pensam para si, por si, e sobre si próprios como pessoas que estabelecem relação de causa e efeito em relação ao que se passa nas suas vidas.
Por outro lado, estas manifestações (fases), ater-me-ei a elas na segunda parte, também revelam a podridão da nossa sociedade, do nosso Estado e a exaustão das comunidades/sociedade civil sobre o nosso panorama económico político social e cultural.
Ao escrever esta peça ocorre-me um texto do meu colega João Colaço, escrito em 1998 sob o título “Mentalidade chapa 100 na cidade de Maputo”. O estudo mapeia o fenómeno“chapa 100”, dando conta das suas nuances, o pacto social a ele subjacente, e a implícita “aceitação” das disfunções que a realidade “chapa 100” representa: Roubos, assédio sexual, desmandos, arrogância, incivilidade, e o dilema dos utentes. Querendo, como não, o chapa 100 é a única alternativa para se fazerem transportar. Pela sua magnitude recomendo o trabalho. O artigo foi publicado na colecção, Estudos Moçambicanos, número especial, de 1998, editado pelo falecido professor Carlos Serra. Pode ser uma boa base para o entendimento do que se está a passar hoje em Moçambique, tendo como metáfora a mentalidade chapa 100, bem descrita por Colaço.
Estas manifestações corporizam uma acção em prol duma causa reivindicativa, o que justifica o direito à indignação, tal como, ainda que sabendo o que representa o “chapa 100”, as pessoas, impotentes e sem alternativa, continuam a usá-lo. Aliás, a realidade mudou de figurino, fomos mais longe, pela negativa, agora há os “my love”, pessoas transportadas em carrinhas de caixa aberta, onde “o amor” acontece espontaneamente, ao sabor dos solavancos produzidos pelos buracos das nossas estradas.
Por isso, e por outro lado, essa mesma atitude de cidadania resvala para o vandalismo e a incivilidade, sabido que civilidade é o respeito pelo outro e seus pertences, e convívio são entre os membros da sociedade. Mas, e particularmente nestas manifestações, nem sempre assim acontece, tal como nos “chapa 100” ou nos “my love”.
Não posso deixar de reconhecer algumas explicações possíveis que podem ser tidas como justificação para o que temos visto, este movimento arruaceiro de repercussões imprevisíveis. Resulta agravante o facto de que tais atitudes estimulam o preceituado, que não gosto muito, do sociólogo alemão, Max Weber, segundo o qual, “o Estado é a instituição que detém o monopólio da violência”. Não gosto porque a acepção nos leva ao extremo, o Estado mostra a sua musculatura, nem sempre da melhor forma.
Portanto, somos confrontados com uma aporia: violência de parte a parte, do Estado e dos manifestantes.
Ao Estado se lhe imputa excesso de zelo e de força. Aos manifestantes atribui-se-lhes a falta de civilidade e vandalismo na sua acção, uma espécie de extensão, a todo o país, da mentalidade chapa 100, com uma incidência particular nas cidades do Maputo e Matola.
Uma justificação possível, que parece ser plausível, provém do campo económico. A retracção da economia, a depauperização de muitos segmentos da sociedade, particularmente o dos mais desfavorecidos, e a falta de oportunidades para a maioria da população, com especial incidência nos mais jovens e nas mulheres, é tida como uma variável explicativa a ter em conta.
No campo político a explicação da crise, ganha contornos de realidade, a partir da noção de situação revolucionária definida por Lenin: “Quando os de cima, não podem continuar a mandar segundo a velha forma e, os de baixo, não podem, e nem querem ser mandados segundo a velha forma, dá-se a situação revolucionária”. Penso que este prisma acolhe o grito de guerra dos manifestantes: “anamalala!”, que quer dizer, na língua Emakua, mais ou menos o seguinte: acabou-se, chega, basta!
Em decorrência do papel central da cultura na estruturação das sociedades, e assumindo que as tecnologias e as representações que por seu intermédio podem ser partilhadas, é elucidativa a proeminência que as plataformas digitais assumem, cada vez mais, ainda que na prática se resuma a um mimetismo, entre os seus utentes, muitas vezes, movidos pelo fascínio maquínico dos telemóveis, e a procura de likes, de glória, ou do reconhecimento e remuneração social nessas mesmas redes, e, por via disso, na vida real. É, por isso, de todo relevante, pensarmos na força do facebook, e outras plataformas, que encontram nos mais jovens, um campo fértil, uma receptividade, e crédito, sobre o que se publica nessas plataformas, ainda que, tipicamente, salvas as devidas excepções, seja no plano do senso comum, para quem, “ o que parece é.”É assim que funciona a espectacularidade das plataformas digitais, com os influencers a serem acolhidos pelos mais incautos (há quem os chame de idioters).
No segmento dos utentes dessas plataformas encontramos camadas de pessoas com problemas de carestia de vida, de impotência perante os desafios do dia-a-dia e falta de perspectiva de futuro. Acresce-se a isso o déficit de sentido crítico, pecado que imputo ao nosso sistema de ensino aos diferentes níveis.
Assumo que estas plataformas, as redes de informação, são o “fast food” de que vivem as nossas gerações mais novas. O FCBK, o WTSP, o TWITTER, o INSTAGRAM, etc, etc, constituem um espaço de socialização, de encontro de ideias, posicionamentos, ainda que em formato remoto e virtual. Essa é a parte boa da coisa, o fluxo de ideias, de símbolos, de opiniões.
A bem ou a mal, há um encontro, um debate na esfera pública, reitero, virtual e remotamente. O que dificulta a coisa é a heterogeneidade do público que usa as plataformas. Ainda assim, vai acontecendo a troca de pontos ou interrogações de vista se assim posso dizer. Já foi pior e presumo que há-de ser melhor, assim é este “maravilhoso mundo novo.”
Mas nem tudo é maravilhoso neste mundo novo, e aqui vem a parte menos boa da questão. É que as tais plataformas também são redutoras da realidade social. Elas reduzem a realidade social à tiktokização, facebookização, whatsapização e instagramização dessa mesma realidade. Este fenómeno tem uma grande repercussão na camada dos “navegadores mais incautos”, particularmente na dos mais jovens, que passam a assumir que o mar da vida é cor-de-rosa. Em resultado do que visualizam, os jovens aspiram imitar as festas, ter os carros, os luxos, as mansões que são ostentadas nas poses facebokianas. É justo sonhar com o prometido futuro melhor. Mas também é justo saber que tudo isso não acontece com uma varinha mágica.
Há que reconhecer que estamos confrontados com o fenómeno do mimetismo sem fronteiras, transnacional, que instiga e favorece o senso comum, para quem, como vimos, o que parece é. O que legitima esse senso, também vimos, é o número de likes e visualizações. Esta situação promove a realidade virtual a uma realidade tida por verosímil. Ora tal assunção pode levar a que uma mentira tantas vezes repetida se transforme em verdade.
Por outro lado, estamos perante uma espécie do fenómeno social da bolha cognitiva, onde, “um grupo enorme de indivíduos, se abre a um pensamento homogéneo, no qual só se reconhecem e valorizam ideias que confirmam suas próprias crenças, enquanto rejeitam ou ignoram opiniões e factos que as desafiam.” Isso é tanto aplicável aos representantes do Estado, aos partidos políticos, particularmente para a Frelimo, meu partido, que se fechou em si mesma, e aos manifestantes, que só aceitam a sua versão dos factos, contra tudo e todos.
Assim posta a questão, e numa escala maior, estamos perante aquilo a que o meu professor Carlos Serra chamou de crenças anómicas de massas: conjuntos estruturados ou em vias de estruturação de conjuntos cognitivos e de representações e de valores que, em contexto de crise social (desinstitucionalização, desregramento generalizado e indiferenciação social) são inter-subjectivamente partilhados.
É assim que de partilha em partilha, são produzidas posteriores relações co-presenciais para a acção prática das massas, na via pública, nas comunidades, nas fronteiras, etc. Ajuntamo-nos, e agimos tal como é preceituado na psicologia social, que nos lembra que o comportamento colectivo é o comportamento de um grupo de pessoas em que cada indivíduo é influenciado, de forma consciente ou inconsciente, pelos outros membros do grupo. Desta forma a acção colectiva chega a atingir índices de desvario não poucas vezes colérico. Transformamo-nos num sujeito colectivo, um actor amorfo e inorgânico movido por uma racionalidade por vezes contraproducente, de índole duvidosa, ainda que haja autores morais a quem pode ser imputada a totalidade da acção. Aqui cabem as fakenews.
Ao analisarmos o fenómeno, somos confrontados com o paradoxo de Simpson, o paradoxo da amalgamação ou de reversão, um fenómeno adstrito ao saber estatístico portanto, do mundo das probabilidades, em que uma tendência aparece em diversos grupos de dados, mas desaparece ou reverte quando esses grupos são combinados.
O paradoxo pode ser resolvido quando relações causais são abordadas apropriadamente na modelagem estatística. Ele é usado para tentar informar o público não especialista sobre os enganos causados por aplicação errónea da estatística. Por exemplo, pegar em vinte e três por cento da amostra, dum universo não representativo, como é o caso das cidades do Maputo e Matola e extrapolar o resultado das eleições a todo Moçambique. Sei que os meus colegas que pensam diferentemente, de mim, os que podem, aqui dirão que não fui bom na disciplina de matemática e estatística para as ciências sociais. Todavia, se estão recordados, apresentei numa das aulas de estatística, com o professor Wim, um livro cujo título é Inumeracy, que explica bem essa coisa.
Mas esse não é o meu ponto central aqui, e, por isso, paro por aqui. Na segunda parte deste texto, falarei de guerras, sua definição, a minha experiência numa, e proponho a hipótese segundo a qual as lives que galvanizam este estado de sítio são uma declaração de guerra. E aqui, há uma correlação positiva entre as redes virtuais e o que se está a passar em Moçambique.
(continua)
Todas as reações:
109Ricardo Santos, Ivan Amade e a 107 outras pessoas36 comentários
16 partilhas
Gosto
Comentar
Enviar
Partilhar
Mais relevantes
- Gosto
- Responder
Kassimi Ginabay respondeu
·
2 respostas
Samuel Simango
Filimone Meigo, como sempre os teus textos são densos próprios de um pensador. Estou lendo ainda
- Gosto
- Responder
Jossefa Cumaio
É impossível não degustar deste e de outros escritos seus senhor Professor Filimone Manuel Meigos.
Sentadinho aguardando a segunda parte.......
Que Deus abençoe Moçambique.
- Gosto
- Responder
Joanguete Celestino
Prof. Meigo! Que tal sairmos do conforto do Facebook para um debate presencial ? Ha uma circulação de ideias brilhantes, que são soluções para a crise em que estamos mergulhados.
- Gosto
- Responder
Francisco Guita Jr
Ora muito bem, manoMone! Daí que urja uma gestão de expectativas, no que diz respeito à “varinha mágica”! Abraço.
- Gosto
- Responder
Emidio Oliveira
Parte 1 muito bem colocada, Muzaya! A tua análise sobre a 'podridão da nossa sociedade, do nosso Estado e a exaustão das comunidades/sociedade civil perante o nosso panorama económico, político, social e cultural' é uma fotografia perspicaz e inquietante por ser tão clara. Num contexto como este, estou muito apreensivo sobre onde iremos buscar habilidade e sensibilidade para chegar a consenso nacional urgente, "antes que agente morra", roubado do título do Nuno Quadros, para 'pôr a conversa em dia' e avançar rumo a quotidianos mais dignos e esperançosos que todos aspiramos. (Continua... a seguir à parte 2 :)). Abraço.
- Gosto
- Responder
José PC
Boa primo Manuel. Excelente texto. “Estou no Facebook, logo existo” (Leonilda Sanveca parafraseando o penso, logo existo de Descartes). Vamos ter que contar com o teu microscópio sociológico nos próximos tempos difíceis. Por agora aguardando a segunda parte. Aliás, o pior desta “situação revolucionária” (Lenine ou Trotskista?) é que, temos que acrescentar, nem querem ouvir!!! Abraços Moni.
- Gosto
- Responder
Tania Maia
Interessante a abordagem nesta era da *AI* e muitas amizades *virtuais* o Ser Humano é um ser INSACIAVELThank you Tio Mone
- Gosto
- Responder
Kassimi Ginabay
PROF. Meigos, tudo isto que vemos & assistimos tem um Antes e Depois...é um novo pacto social que se reivindica, sem regras mas que a sociologia nos ensina ...tempo corre e parece inadiável um ponto final. A VER VAMOS!
- Gosto
- Responder
Chanjunja Chivaca Chivaca
Pensou e Falou. Parabéns FM
- Gosto
- Responder
Josefa Rupia
Professor Meigos, o seu texto foi longo e com muita cátedra que ultrapassa o meu conhecimento básico de leitor. Mas tenho uma questão, consegue fazer uma análise profunda das manifestações fora dos partidos e dos manifestantes e da propagação de lives e influenciadores? Uma análise de um intelectual da sua categoria e estirpe.
Obrigada
- Gosto
- Responder
Autor
Josefa Rupia não tinha como ser mais apertado, expliquei-me no primeiro texto! Escrevi-o para os meus amigos, de cá , e de lá, que gostam de ler para além dos textos telegráficos kkkkk
- Gosto
- Responder
Josefa Rupia
Filimone Manuel MeigosMeu querido Professor, vou procurar o teu primeiro texto. Um abraço
- Gosto
- Responder
Chico Francisco Ivo
Boa Filimone, só há um caminho e dó uma solução .., temos que salvar Moçambique.,,
- Gosto
- Responder
Tomé Soares Muhira
Lido com sucesso, um livro virá...
Gosto de ler a vossa escrita pena seja esta uma escrita sobre os tempos difíceis que vivemos. Não falha o uso do "leitmotiv"...
- Gosto
- Responder
Manuel Macia
Parabens, caro Meigos!
Excelente e opirtuna reflexao. Como se diz: ..."e a procissao ainda vai no adro...." Mas, se calhar, o Habermas e a sua nocao do "agir comunicativo", mostra tao bem que nao so a democracia substantiva falhou rendidamente como o nosso porto seguro dos seculos - a cultura - perdeu todos os seus alicerces, aquilo que sempre fez de nos, nos mesmos....
Espero ler a parte II, pois como ser humano e social, temos de responder a velha pergunta e, agora?...
- Gosto
- Responder
Filimone Manuel Meigos respondeu
·
2 respostas
Rui Loforte
Tio Mone… aquela conversa sobre o algoritmo
“o algoritmo mostra-te o que queres ver, o que estás predisposto a acreditar e como és socializado a pensar.”
- Gosto
- Responder
Filimone Manuel Meigos respondeu
·
1 resposta
Matola Celestino
São muitas coisas em Moçambique
- Gosto
- Responder
Silva Armando Dunduro
Aguardando a segunda e outras partes.
Abraço
- Gosto
- Responder
Filimone Manuel Meigos respondeu
·
1 resposta
Miguel César Santos
Esperando caro Filimone a segunda parte, com todo interesse
- Gosto
- Responder
Gabriel Pereira respondeu
·
1 resposta
Otília Da Conceição Monteiro De Aquino
Estou -te a ler com muita atenção e interesse. Quando terei a segunda parte?
- Gosto
- Responder
- Gosto
- Responder
- Ver tradução
Sem comentários:
Enviar um comentário
MTQ