Tal como prometera, aqui vai a segunda e última parte do texto. Não publicarei mais textos desta natureza, para não me sentir pressionado. Lê-los-ão em livro, numa melhor oportunidade. Se der, de quando em quando, fá-lo-ei! kkkkkkkkkk
Da minha aversão às guerras
( segunda parte)
Por Filimone Meigos
Cresci a ouvir notícias de guerras, das quais cito de memória algumas: Biafra, Congo, Vietname, Luta de Libertação Nacional, guerra dos matsangas (16 anos) e Cabo Delgado (em curso, como é do nosso conhecimento). Incluo neste rol de guerras, esta das fases, porque é anunciada em belicosas lives, quais declarações de guerra. Não é sem razão que as arrolo na tipologia das guerras.
As guerras são decisões extremas que, à manu militari, visam fazer política por outros meios, sempre em nome do povo, com a razão na ponta dum fuzil. No entanto, já dizia o velho Sun Tsun:“o verdadeiro objectivo da guerra é a paz.”
É sabido que nas guerras as honras e a glória são devidas aos generais e às tropas que comandam, isto é, soldados, sargentos, oficiais subalternos e superiores.
Ao que tudo indica hoje parece começar a haver um novo generalato constituído por generais civis, gente cuja actuação nos faz lembrar outra máxima do Sun Tzu: “toda a guerra é baseada em enganos”.
Não sei como escaloná-los mas, nesse novo generalato parece haver apenas dois níveis: generais e um enorme exército inorgânico constituído pelo lumpen proletariado, gente que não tem nada a perder, sendo que a única coisa que possuem é a sua disponível força de trabalho para o que der e vier.
Seja como for, tanto uns como outros, os generais tratam de guerra, essa arte de aniquilar as forças vivas e não vivas do inimigo, ocupar terreno, expandi-lo e defendê-lo.
Militar que fui, e a aferir pelo seu modus operandi, posso afirmar que qualquer uma das fases que as lives anunciam configura uma guerrilha urbana, seja no plano do discurso ou nos actos e atitudes.
Ainda que accionadas por uma arma não letal, as plataformas de comunicação, as virtuais redes sociais a que fiz referência no post anterior, as famosas lives são letais e as guerras não são bem-vindas. Em Moçambique já as tivemos de sobra. Este é o meu ponto, mas vamos por partes.
Em bom rigor, as lives funcionam numa lógica facebookiana. Elas vendem soluções oníricas, sonhos legítimos para franjas da população já de si depauperadas, descontentes e indignadas. Cá está, sempre na lógica do mimetismo facebookiano.
É também verdade que para muitos, as lives funcionam como um bálsamo, essa pomada que adia a dor e nos faz continuar a jogar. Todavia, a impressão com que fico é que, sob efeito balsâmico, quando retemperamos a força anímica, até marcamos golos na nossa própria baliza. Galvanizados, e em nome duma pretensa revolução, “nós o povo”paralisamos os portos, os caminhos-de-ferro, as rodovias, os aeroportos, as fronteiras, saqueamos lojas, fábricas, e todas as artérias que bombeiam sangue no corpo da nossa já frágil economia. É encorajada a vandalização de bens públicos e privados, a rotulação e estigmatização de pessoas e instituições. Indiciamos ladrões e enterramo-los vivos, com toda a alegoria dos funerais, incluindo a rega, um simulacro completamente novo na nossa tradição. Mas cá está, os antropólogos da causa, e seus apaniguados, dirão que as tradições são reinventadas e citarão Hobsbawn no seu célebre “a reinvenção das tradições”. Assim nos fintamos na grande área das nossas reivindicações e ficamos fora do jogo da prosperidade.
Tenho para mim que tudo isso são excessos, e defendo por isso que é preciso controlar e dominá-los. Um pouco na senda de Kant que nos diz que temos que dominar a dominação. Seja a da prerrogativa do Estado usar do monopólio da violência, ou a do excesso dos manifestantes que tudo partem e reduzem o nosso país a cinzas, qualquer uma das lógicas se me afigura repugnante.
Da guerra ela própria
Como diria o saudoso coronel Sigaúque, “guerra é guerra, não é como um casaco que, quando está frio usamos, e quando está calor, tiramos”.
Participei numa e vivenciei outras tantas. Do que me sobra dessas lembranças retenho a lição de que eu e muitos jovens fomos actores participantes activos dessa coisa chamada guerra. Fizemo-la em nome do povo. Jovens que éramos, dum lado e doutro do conflito, lutámos ambos em nome do povo.
Ainda que em surdina apregoássemos o fim da guerra, ela só viria a cessar 16 anos depois, com o célebre Acordo Geral de Paz assinado em Roma e selado com um icónico abraço entre o nosso então comandante-em-chefe, Joaquim Chissano (Forças Armadas de Moçambique/FPLM) e o comandante dos então “insurrectos”, “bandidos armados”, Afonso Dlakama (Renamo).
Porque a questão não ficou de todo resolvida, houve reedição das hostilidades e, na sequência, a assinatura de outros tantos acordos para a sua cessação. Assim, no consulado de Armando Guebuza foi assinado mais um acordo.
Sendo Nyussi mais novo e mais arreigado ao desporto, e porque a montanha não veio a ele, optou por subir as escarpas da Gorongosa para se encontrar com Dlakama e, num gentleman agreement, acabar com os tiros que tinham recomeçado.
Após a morte de Dlakama, Nyussi e Ossufo Momade viriam a assinar aquilo que ficou conhecido como o acordo definitivo e a implementação do DDR: Desarmamento, Desmobilização e Reintegração.
Se assumo que esta coisa das lives é guerra declarada, a questão que me ponho é quando tudo isto terminará. Será que não nos basta a experiência de guerra que povoa o nosso imaginário colectivo?
Não tenhamos ilusões, o velho Sun Tsun parece estar certo quando nos assevera que, o verdadeiro objectivo da guerra é a paz para o povo.
Ironicamente, em Moçambique, quando falamos de povo há pelo menos três sentidos, ainda que os mesmos tenham em comum essa ganância pela captura e apropriação da “vontade popular”, à manu militari.
Temos a perspectiva de Samora Machel, “viva a Frelimo que une e organiza o povo! (…) O povo no poder!”. Trata-se duma visão de partido único, de partido-Estado.
Temos a visão de Afonso Dlakama, “meu povo está a sofrer, tenho que salvá-lo do comunismo!”. Tanto lutou que até perdeu a vida nas matas onde sempre se refugiara.É uma visão messiânica, a da salvação.
E assinalamos esta terceira acepção que é uma revisitação e resignificação faseada dos ditos, “povo no poder”, “este país é nosso”, artisticamente cunhados na obra do rapper Azagaia que os popularizou neste novo contexto. Também messiânica e nem por isso menos totalitária e fascizante.
Julgo que as três acepções pecam por serem amorfas e arrebatadoras. A última, a das fases, é a mais problemática. Num processo de mimetismo ela consubstancia uma apropriação maligna, quer dizer, as pessoas usam o povo para causar disfuncionalidade para esse mesmo povo.
De experiência vivenciada, nós moçambicanos sabemos que a guerra não nos leva a sítio nenhum. E que, tarde ou cedo, vamos ter que assinar um acordo e teremos que suturar todo o corpo da nossa sociedade. Será que queremos mesmo guerra?
Para terminar conto-vos a parábola do careca. Em 1995, fui ao Egipto em representação da Organização Nacional dos Jornalistas, para participar duma reunião pan-africana de jornalistas. Na ocasião os jornalistas presentes no encontro foram recebidos pelo então presidente da República egípcia, Hosni Mubarak. Bem humorado e fumando um pensativo cigarro, falou-nos da sua vocação pela paz. Criticou o Fundo Monetário Internacional a quem se referiu, na sua sigla em inglês (IMF) como, o International Misery Fund (fundo internacional da miséria). Falou do conflito na região, particularmente da guerra israelo-palestiniana, e disse que estava comprometido com a paz na região, e explicou porquê.
“Eu era nesse ano de 1967, o comandante nacional da força aérea egípcia. Logo no primeiro dia do ataque israelita à nossa base aérea eu nem sequer levantei voo. Das trezentas e noventa aeronaves que possuíamos, trezentas foram postas fora de combate, ainda no solo. Isso fez-me entender que a paz é melhor que a guerra. É por isso que pugno pela intermediação e o fim do conflito israelo-palestino. Em 1967 eu era jovem, usava óculos escuros por estilo. Hoje uso por necessidade, a guerra acabou com a minha vista. Lembro-me que tinha muito cabelo, ao estilo de Muamar Khadaffi. Hoje que o não tenho gosto de recordar um provérbio chinês bastante elucidativo: “A experiência é um pente que te dão quando já estás careca”.
Já estou careca, por isso sou contra a guerra e pugno pela paz.”
Falou e disse. Ficámos em silêncio. Foi-nos oferecido um chá turco, e continuamos todos ensimesmados até nos retirarmos daquela sumptuosa sala presidencial. Moral da estória, ouçam os carecas. Pode ser que a metáfora da careca sirva para a nossa situação. Melhor, a metáfora do cabelo…
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