Elisio Macamo
8 de junho de 2021 ·
Celso Coreia e o caminho
O Ministro da Agricultura deu uma licção excelente de seriedade política. Ele participou num programa radiofónico durante o qual respondeu às críticas que são feitas ao seu trabalho e, em particular, ao programa SUSTENTA. Ele revelou conhecimento e consciência dessas críticas, mas não só. Revelou também que tem reflectido sobre isso e que se serve das críticas para tentar melhorar o seu trabalho.
Surpreendeu-me pela positiva, sobretudo quando penso nas reacções agressivas e até mal-educadas de pessoas que pensam vir em sua defesa quando alguém se pronuncia criticamente sobre o SUSTENTA. Muito salutar esta atitude do Ministro que, diga-se, também contrasta vivamente com o seu chefe que reage a críticas com insinuações.
O Ministro reagiu a uma das críticas que eu tenho feito. Eu tenho dito que o SUSTENTA definiu mal o problema. O programa parte do princípio de que existe um problema de produtividade agrícola que um programa de criação, reforço e promoção de cadeias de valor que ajude os camponeses (ele fala de 4 milhões de famílias) a elevarem a sua produtividade pode resolver.
Eu aventei a hipótese – porque não fiz nenhum estudo, apenas leituras – segundo a qual o problema seria de emprego rural, não de produtividade agrícola. Dito doutro modo, as pessoas não são camponesas por opção, mas sim por falta de opção. Logo, a solução não pode consistir em ajudar as pessoas a serem melhores camponesas. Esta é apenas uma crítica que eu tenho feito. Tenho outras duas, mas por enquanto não são relevantes para o que estou a fazer neste post.
Ora, a resposta do Ministro foi boa, mas do ponto de vista lógico, circular. Foi boa porque ele enfrentou-a directamente dizendo que tem consciência do problema do emprego. A questão, contudo, é que para criar emprego é preciso aumentar a produtividade agrícola. Ao longo da reflexão, ele foi mais preciso dizendo que, no fundo, o problema é o da pobreza de famílias rurais que vivem com muito pouco, e que com este programa têm possibilidades de aumentaram, por exemplo, o número de refeições diárias.
Digo que esta resposta é circular porque ele transforma o problema que ele definiu – a produtividade agrícola – na sua própria solução. Na verdade, a sua posição é de que o problema é a pobreza que vai ser resolvido através do aumento da produtividade.
Esta nuance argumentativa altera muita coisa, mas vou levantar apenas duas objecções. Primeiro, se a produtividade agrícola é o mecanismo através do qual ele quer resolver o problema da pobreza, coloca-se a questão de saber porque é absolutamente necessário aumentar a produtividade agrícola da massa de camponeses (e de forma não diferenciada)? Porque não fazer simplesmente transferências de comida para os necessitados e concentrar a atenção naqueles que realmente vão fazer a diferença na produção agrícola (portanto, médios e grandes agricultores)? Ou ele está a usar esse discurso para fazer essa outra coisa de forma escondida?
Segundo, se o problema é a pobreza rural, então, o desafio é inter-sectorial, logo, algo que não se reduz a um programa ministerial, mas sim a um programa inter-ministerial. Uma coisa é montar um programa num Ministério e esperar que os outros façam isto mais aquilo, outra coisa é montar um programa do governo que ataca o problema da pobreza rural de forma coerente e concertada. Aqui levanta-se a questão da articulação da acção governativa, um grande desafio em Moz.
Hoje estava a explicar a um sobrinho porque a resposta do Ministro me parece insatisfatória. Fiz isso com um exemplo simples. Na periferia de Maputo, muita gente vive do comércio informal. O que o Município deve fazer para abordar esta situação? Bom, precisa de começar por determinar o problema. Se usar a lógica do Ministério da Agricultura, pode dizer que a pobreza nos bairros faz com que as pessoas não tirem rendimento suficiente do comércio informal. Sendo assim, iria decidir montar um programa para ajudar os vendedores informais a fazerem melhor o seu comércio.
Faria sentido isso? Claro que não! E porquê? Porque o problema é outro. As pessoas fazem o comércio informal por falta de alternativas. Melhorar a actividade precária que eles fazem por falta de opção não vai ajudar as pessoas a saírem da pobreza. É perder tempo e recursos. Por isso mantenho a minha crítica à forma como o SUSTENTA definiu o problema.
Mesmo assim, o Ministro está de parabéns pela sua urbanidade, coisa rara, sobretudo neste governo e nos seus simpatizantes oficiosos. Era tão bom que as coisas melhorassem neste sentido para o bem de todos nós. Há tanta coisa que teria sido diferente – para o melhor – se houvesse o hábito de tomar decisões políticas com base na deliberação.
O Município de Maputo, por exemplo, vai se envolver num gigantesco programa de transporte público de alta tecnologia sem nenhum debate público. O fiasco que Cabo Delgado é, mas também a própria “Paz Definitiva”, não teriam sido diferentes se tivesse havido mais atenção à necessidade de envolver a sociedade na deliberação?
Sobre Cabo Delgado, estava a ler há cerca de 4 semanas a acta da reunião duma “Think-Tank” tanzaniana realizada no ano passado para reflectir o problema de Cabo Delgado. Envolveu membros do governo, universitários, diplomatas, etc. que dissecaram de forma impressionante o problema até ficar claro que o nosso governo não sabe o que está a fazer lá. Uma vergonha para qualquer moçambicano que tenha respeito por si próprio.
Celso Coreia podia ter reagido à crítica acusando os críticos de não quererem o sucesso do programa, ou de estarem contra os camponeses, ou contra o governo sviku txakala-txakala. Podia até mostrado fotos coloridas de campos de girassol ou passado vídeos promocionais do programa.
Mas não o fez. Enfrentou a crítica de peito aberto e abriu a porta para o diálogo. Eu até me envergonho de, por vezes, ter sido desnecessariamente duro na crítica. Não obstante, acho que ele continua equivocado. Mas esse é o caminho. O da deliberação, quero dizer.
Kuphaya Editora ·
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16 de novembro de 2021 ·
SOCIÓLOGO OU CARDEAL?
Elísio Macamo é, fundamentalmente, um sociólogo que lendo a sociedade moçambicana, sobretudo, oscila entre a matéria e a metáfora desembainhada de sentidos onde, sem nos apercebermos, podemos crer que o «my love» pode se tornar um metro-de-superfície que liga Xai-Xai – Pemba, via Dondo. Na verdade, os textos de Macamo que oscilam entre o desejo de dissertar sobre o problema e não, necessariamente, trazer soluções (elemento que deprecia, em alguns casos…
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Elisio Macamo
29 de janeiro de 2014 ·
O problema da leitura
Tenho viajado muito de comboio nos últimos tempos. Quando é assim, compro livros nas livrarias das estações para me entreter durante a viagem. Na semana passada, contra o meu próprio instinto, comprei o livro de Daron Acemoglu e James A. Robinson com o título “Why Nations Fail – The origins of power, prosperity and poverty” (porque certas nações não são bem sucedidas – as origens do poder, prosperidade e da pobreza, tradução literal minha). Vi muita gente a comentar positivamente o livro pelo Facebook fora e já ouvira e lera várias referências por aí. Inspirando-me em vários artigos da autoria desses dois que já lera não ficava lá muito convencido pelos comentários positivos que ia ouvindo. Após ler o prefácio confirmei todos os meus receios: o livro é uma pura perca de tempo. Bom, não exactamente isso. Não é o livro que é uma pura perca de tempo; é o seu argumento. Só que, prontos, agora estou condenado a ler até ao fim para tirar proveito dos 15 Euros que ofereci à editora... Senti-me, literalmente, como o homem que ao ouvir o ardina a gritar “grande burla, compre o jornal para ver como 100 pessoas foram burladas por um único indivíduo!”, comprou um exemplar do mesmo ardina só para o ouvir, logo de seguida, gritar “grande burla, 101 pessoas burladas, compre o jornal para ver como...”. Literalmente.
O prefácio não podia começar da pior maneira. Logo no primeiro parágrafo anuncia-se um projecto monumental: explicar as diferenças de rendimento e padrão de vida entre países ricos como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha, dum lado, e países pobres como os que se encontram na África subsahariana, América central e Ásia austral, do outro. Francamente! Comparar Estados Unidos e Moçambique? Reino Unido e Lesoto? Alemanha e Senegal? É claro que uma comparação desta natureza só pode ser feita à custa duma redução grotesca da complexidade dos assuntos. Só se propõe um projecto desta natureza quem tem uma explicação simples – estilo “fobaifo” (4X4) – para tudo. E, surpresa, no segundo parágrafo vem a explicação. Os autores falam dos protestos no Egipto – acho que agora devem estar a morder a língua – que eles dizem serem motivados pela pobreza e dirigidos contra a corrupção e ineficiência do estado e voltam a colocar as questões que o seu livro vai explicar: porque é que o Egipto é muito mais pobre do que os EUA? O que impede os egípcios de se tornarem mais prósperos? Será que a pobreza do Egipto é imutável, ou pode ser erradicada? Estas são as perguntas profundas colocadas no livro. E a resposta não tarda: Estado corrupto e ineficiente. Ah, pois!
Na verdade, a resposta é mais sofisticada. Os autores usam um truque retórico baixo que consiste em caricaturar todos os outros esforços de compreensão dos problemas de países como o Egipto. Assim, eles escrevem que o saber convencional privilegia três tipos de explicação: o Egipto é vítima da sua geografia (o deserto...), fraquezas culturais (islão...) e a má assessoria dispensada aos líderes políticos. Contrapõem a este saber convencional o do egípcio normal que fala a partir da rua e que diz que o problema é da corrupção. E solidarizam-se com ele. Sim, dizem os autores, o Egipto é pobre (ou pior ainda: é mais pobre do que...) porque tem sido governado por uma elite mesquinha mais preocupada em fazer o seu próprio ninho. O Reino Unido e os Estados Unidos tornaram-se ricos porque os seus povos derrubaram as elites que controlavam o poder e criaram uma sociedade com uma distribuição mais abrangente de direitos políticos, onde o governo é responsável perante os cidadãos e o povo tem acesso a oportunidades económicas. É claro, não há nada de errado nesta sucessão de frases a não ser o facto de ser mesmo uma sucessão de frases. Só que deixa também um sabor amargo, pelo menos na minha boca (e não é que esteja a comer o livro, embora vontade não me faltasse...).
O livro foi nomeado para um prémio de grande prestígio: Financial Times e Goldman Sachs Business Book of the Year. E há ainda quem tenha dificuldades em entender porque andamos todos tão perplexos em relação ao estado económico do mundo... com este tipo de saber merecemos mesmo melhor? Já estou a ler o primeiro capítulo – que começa com um exemplo completamente inapropriado e que, curiosamente, contradiz a tese principal do livro. Mas não vou entrar nisso agora. Interessa-me destacar alguns aspectos da tese do livro que me parecem pertinentes para o caso moçambicano. É que o tipo de argumentação – que até deve explicar a enorme atracção que o livro exerce sobre alguns de nós – é característico da forma como também abordamos os problemas do país. Aplicada a Moçambique, a tese do livro seria a seguinte: Moçambique é mais pobre do que a Alemanha (EUA e Reino Unido) porque o seu estado é corrupto e ineficiente e é controlado por elites políticas que estão mais preocupadas em fazer o seu próprio ninho do que cuidar do povo. Quem, em Moçambique, não concordaria intuitiva e instintivamente com este verdicto?
O teste mais simples duma explicação, isto é a verificação da sua plausibilidade, é imaginar a ausência dos factores que causam o problema. Vamos a isso: se em Moçambique o estado não fosse corrupto e ineficiente, nem houvesse elites mais preocupadas consigo próprias, o país seria tão rico quanto a Alemanha (ou coisa parecida). Ah! Dois problemas logo: primeiro, a explicação parece circular: Moçambique é pobre porque Moçambique é pobre; a Alemanha é rica porque a Alemanha é rica. Estou a partir do princípio de que é possível imaginar a corrupção e a ineficiência do estado (incluíndo o egoísmo das elites) como atributos da pobreza dum país. Porque não? Mas, segundo: como fazer para que o estado não seja corrupto e ineficiente e que as elites se preocupem com o povo? Resposta: deixando de ser corrupto e ineficiente e preocupando-se com o povo. Voltámos à estaca zero. O segundo reparo destaca a importância de identificar o que precisa de ser explicado. Neste caso, não é a pobreza ou riqueza que precisam de ser explicadas (o erro que todos nós cometemos por atribuirmos ao mundo uma causalidade que é expressão dos nossos valores). O que precisa de ser explicado é o que produz a corrupção e a ineficiência bem como as condições em que esses “males” podem se tornar num problema social ou político. Nem mesmo quando reduzimos a tese de Acemoglu e Robinson ao seu denominador comum, isto é, às instituições e sua importância, não saimos da circularidade. Não sei como é possível ler coisas desta natureza e não se sentir insultado na sua inteligência. Um mistério!
Infelizmente, este tipo de raciocínio encontra muito espaço no nosso meio. Percebe-se porquê, mas não deixa de ser um problema. É problema porque encoraja uma postura crítica muito superficial. É fácil receber palmadinhas nas costas por dizer coisas como “afinal porque preferiram fazer guerra ao invés de dialogar logo?”, “esse Concelho Constitucional só tem dorminhocos”, “porque o governo não faz nada contra os raptos?”, etc. Estas constatações “fobaifo” não são diferentes do argumento principal deste livro, pois partilham com ele a tendência de livrar um problema de tudo quanto faz dele um problema para depois exclamar que a solução é evidente. A pobreza de Moçambique tem muitas vertentes, ramificações, causas estruturais, etc. que me parece impossível reduzi-la à história das instituições. E não só. As nossas constatações “fobaifo” inspiram-se numa ideia de história que glorifica a trajectória duma parte da humanidade sem seriamente analisar até que ponto a nossa pobreza pode também ser funcional à reprodução da riqueza dos outros (isto é coisa que os marxistas já disseram, e com razão). E não só. O sucesso dos outros não me parece estar bem explicado, creio haver aqui um tipo de explicação que eu gostaria de chamar de “relato heroico”, assim um pouco ao estilo da versão oficial da história da luta pela independência nacional promovida pela Frelimo. Como tudo terminou com a proclamação da independência pela Frelimo os seus líderes passaram a acreditar que isso confirmava que eles tinham feito tudo bem no passado. O sucesso económico do Ocidente é visto por autores como Acemoglu e Robinson como a confirmação de decisões correctas no passado. É o problema da indução tão criticado por Bertrand Russell e que, transportado para as nossas paragens, ao invés de nos ajudar a entender a nossa realidade gera confusão e frustrações. É como ter de aturar um vizinho que ganhou na lotaria, ou herdou riqueza, a querer me dizer como gerir os meus assuntos.
O problema da leitura é muito sério, sobretudo quando leio coisas à procura de frases que me confortem nas minhas constatações “fobaifo”!
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Gabriel Serafim Muthisse
11 de dezembro de 2020 ·
Mais abaixo partilho um texto de Elisio Macamo. Enquanto o lia, lembrei-me de um personagem da minha infância, Pavlik Morozov, um pioneiro glorificado pelo Estado soviético por ter denunciado a sua própria família. A delação, um acto ignóbil, mais ainda quando recai sobre membros da família, pode ser arma útil na luta contra fenômenos sociais, como a corrupção? A luta contra a corrupção, contra os reacionários, contra os inimigos do povo, contra os que atrasam o progresso da nação, pressupõe, necessariamente, socavar os fundamentos da lealdade familiar? Seria lícito, seria honroso, delatar meu irmão por eu não entender como pôde construir uma casa decente, contrariando uma história secular de pobreza? Este é, talvez, um debate que vale a pena fazer.
Debate a fazer, sem embargo das considerações que Elisio vem fazendo, há décadas, em torno da temática da corrupção.
Eis o texto do Elísio:
"Dia internacional do inútil
Uma vez por ano, não sei desde há quanto tempo, os nossos governantes, e muitos outros no mundo inteiro, perdem um dia de trabalho com uma das maiores burlas intelectuais em matéria de desenvolvimento. É a ideia de que a corrupção constitui um dos maiores desafios e, quiçá, obstáculos para o desenvolvimento. É um caso típico de como um equívoco partilhado pela maioria pode ganhar o estatuto de verdade. Transformou-se numa indústria gigantesca que alimenta exércitos nacionais e internacionais de parasitas que lutam pela transparência e integridade, criou oportunidades de pesquisa para investigadores que confundem moralismo com análise e, o que me parece pior, transformou a democracia numa cultura de suspeita e de denúncia, minando desse modo, os seus próprios alicerces. Dia 9 de dezembro, dia internacional da luta contra a corrupção...
Os equívocos partilhados pela maioria têm uma morfologia própria. Primeiro, eles não se impõem por serem logicamente válidos. Impõem-se pelo seu apelo moralista que entorpece o raciocínio de gente sensata. A gente ri-se hoje quando pensa, por exemplo, na Inquisição e na caça às bruxas. Ou no comércio de escravos e nos excessos do colonialismo. O que tornou essas coisas todas possíveis não foi apenas a maldade de quem as praticou. Foi a convicção de estar a praticar um bem partilhado pela maioria. Equívocos partilhados são uma das manifestaçoes mais nefastas da tirania da maioria.
Segundo, equívocos partilhados partem do princípio de que uma pergunta que hoje se responde desta maneira, amanhã, se colocada de novo, vai ter a mesma resposta. Parece intuitivamente correcto, mas é arriscado. Perguntas são sempre a descrição incompleta dum problema que não entendemos. As respostas vão ser, necessariamente, uma reacção ao que sabemos, não ao que não sabemos. Amanhã, se soubermos mais sobre o problema, podemos vir a ter uma outra resposta. Não faz muito tempo que a resposta à pergunta sobre se negros, com oportunidades, podem provar ser tão inteligentes quanto os outros era um “não” categórico. A descrição do negro que se tinha nessa altura era incompleta e baseada em preconceitos (que, infelizmente, ainda não desapareceram completamente). Hoje, com o que sabemos, temos uma outra resposta.
Terceiro, equívocos partilhados promovem um entendimento simplista de problemas e são cegos à complexidade que as suas soluções produzem com consequências talvez piores para o tecido social. Por exemplo, a caça às bruxas criou não só um exército de funcionários que passaram a depender da expropriação das suas vítimas como também semeou nas sociedades a suspeita que passou a ser a principal moeda de troca na avaliação das pessoas, independentemente do seu mérito. Esta característica dos equívocos partilhados sufoca a criatividade na reflexão, pois torna moralmente oneroso o exercício de pensar fora de caixa. Quando toda a gente acredita que mulheres são bruxas fica arriscado gritar no meio da multidão que talvez o problema seja outro. Fatalmente arriscado!
Dia 9 de dezembro foi o dia internacional do equívoco partilhado. E como não podia deixar de ser, o nosso pobre Presidente dedicou horas do seu tempo de trabalho para falar numa cerimónia comemorativa do grande dia, desviando, dessa maneira, a sua atenção – de certeza com alívio – de questões mais prementes como, por exemplo, Cabo Delgado e Nyongo. Refém da necessidade de mostrar ao mundo e aos moralistas da sua própria terra que se preocupa com esse grande mal, lá foi ele meter a sua colherada, desta feita apelando para um maior compromisso da família com a luta contra este inimigo e pedindo até que a própria família denuncie “corruptos”.
Não poderia ter sido mais infeliz do que isto. Este apelo à família revela tudo o que está errado nesta luta contra a corrupção. Que nem ele tenha sensibilidade para os perigos deste tipo de abordagem chega a ser surpreendente. Nos últimos dias têm circulado fotos do seu próprio filho ostentando riqueza aparentemente incompatível com o salário do pai. Mas pode ser que as fotos sejam “fake”. E não só. Pode ser que ele tenha ganho a lotaria. Pode ser que ele tenha feito um negócio qualquer que lhe trouxe muito dinheiro. Ser filho do homem mais poderoso do País traz consigo a proximidade com potes de dinheiro. A gente pode torcer o nariz perante isso, pois pode consubstanciar a violação de regras de probidade, mas lá está, qual é exactamente o problema de um familiar de alguém em posição de poder se beneficiar disso?
Se o problema for a violação do princípio de igualdade de oportunidades, então é isso que devemos acautelar, não para impedir que familiares de políticos enriqueçam, mas sim para garantir que esse enriquecimento não seja em detrimento do bem público, nem exclua outros, talvez com melhores projectos, de se enriquecerem. Na nossa mente completamente colonizada pelo discurso moralista da indústria do desenvolvimento, não conseguimos separar estas coisas. É corrupção, corrupção é má, vamos combater. Entretanto, nos países que nos impõem esses padrões morais, sempre foi assim e, em muitos casos, continua a ser assim.
Isto é, em troca do auxílio ao desenvolvimento, criminalizamos as nossas relações sociais. Transformamos aquilo que dá conteúdo à nossa vida social em crime. Ao fazermos isto, transformamos a política em técnica, portanto, retiramos a vida social daquilo que devia fazer a essência da nossa comunidade política, e tornamo-nos vulneráveis à transformação da democracia num sistema autoritário sem alma que depende apenas da judicialização para a sua sobrevivência. É muito perverso.
A extensão dos prazos de prisão preventiva aprovada pelo parlamento não constitui nenhuma aberração do ponto de vista do discurso moralista dominante. Há gente que está detida por “corrupção”, os órgãos do estado não estão à altura de lidar com o assunto dentro dos prazos previstos, mas existe uma forte pressão de fora e de dentro para que os que deviam gozar da presunção de inocência sejam “julgados” e “condenados”, logo, pelo bem maior, isto é, a luta contra a corrupção, tudo o resto que devia fazer de nós uma comunidade política civilizada precisa de ser sacrificado. Não sei porque é que as pessoas se queixam. Este é um dos desfechos lógicos da luta contra a corrupção. Vai ser assim até não restar ninguém. Se os doadores querem realmente nos ajudar, deviam prestar assistência na melhoria dos processos administrativos, não na penalização de pessoas. Isso não é ajuda. É rancor.
Não me farto de dizer. A corrupção como problema de desenvolvimento é uma invenção daqueles que gostariam de explicar a si próprios porque o desenvolvimento não responde necessariamente à lógica simplista de fazer o que é certo para ter o resultado certo. É um dos elementos neocoloniais mais perversos do discurso do desenvolvimento. Aquilo que nos seus países só foi possível controlar com o desenvolvimento é declarado como a causa da ausência do desenvolvimento nos nossos países. E para garantir que a gente não se desenvolva mesmo eles obrigam os nossos governos a concentrar a sua atenção no supérfluo e financiam organizações da sociedade civil que despolitizam a democracia – transformando problemas políticos em problemas técnicos, sobretudo através da judicialização – ao mesmo que desviam rios de fundos que poderiam ter sido melhor aplicados em obras sociais ou na melhoria dos nossos processos burocráticos.
É mau desviar fundos públicos. Por isso mesmo, constitui crime. É mau aproveitar um cargo público para tirar benefício pessoal em detrimento do bem público. Por isso mesmo, constitui crime. Mas não é por isso que não nos desenvolvemos. Nem é isso que devemos combater. Não nos desenvolvemos por várias outras razões, muitas delas ligadas às condições estruturais dentro das quais devemos lograr isso (e isso tem muito a ver com a história).
Neste caso particular, não nos desenvolvemos por causa daquilo que torna possível esses actos criminosos. Isso é que precisa de ser abordado (e não necessariamente “combatido”), isto é, devemos resistir à tentação de concentrar os esforços nos efeitos. Isso não nos leva a sítio nenhum. Se um funcionário público desvia dinheiro que teria servido para construir dois hospitais, o problema não é esse desvio. O problema é o que faz com que o nosso sistema político não privilegie a construção de hospitais. Se dissermos que é a corrupção, estamos a ser circulares. É o equivalente de procurar algo perdido onde há luz, não onde perdemos a coisa. Tornar o sistema político mais robusto para permitir que as decisões sejam em prol do bem público é o que devia estar no centro da nossa atenção. E isso leva tempo, não se logra de hoje para amanhã.
Mas, nada. Participamos voluntariamente na colonização da nossa mente porque temos medo de não fazer parte da “maioria moral”. É grave. Temos compatriotas na prisão, e outro injustamente detido na África do Sul, cujo principal crime não foi terem procurado tirar partido pessoal de negócios públicos (sem dúvida crime), mas sim terem sido funcionários dum estado refém do discurso moralista daqueles que pensam que ajudar alguém é responsabiliza-lo pela sua própria vulnerabilidade. O discurso anti-corrupção é tipo alguém andar aí a reclamar com o tuberculoso que o seu problema é estar sempre a tossir e que se não fizer nada contra a tosse nunca vai se curar...
Pouco a pouco, vamos ter novos Mártires da Machava."
Elisio Macamo
13 de janeiro de 2021 ·
Inteligência e intelectualidade
Tirei esta foto em 2019, em Nampula. Não sei se a instituição que funcionava aqui se mudou, ou se morreu ali com o edifício. Mas em todo o lado, no nosso país e noutros países africanos, este tipo de imagem é recorrente. Pessoas inteligentes reagem a estas imagens de formas diferentes. Umas pensam na adequação do tipo de construção às condições climáticas do lugar. Outras procuram saber se as autoridades locais dispunham de recursos para a manutenção. Outras ainda pensam no desleixo das autoridades, na incompetência e mesmo na corrupção.
Pessoas inteligentes têm a capacidade de identificar um problema a partir do que precisa de ser feito para que ele seja resolvido. São pessoas práticas com facilidade na assimilação de conhecimentos. Nenhuma sociedade é viável sem este tipo de pessoas. E, por isso talvez, todas as sociedades têm muita gente inteligente. Nos tempos que correm a inteligência mede-se pela capacidade de assimilação do tipo de conhecimento que é transmitido no ensino moderno. É por isso que o analfabetismo costuma ser visto como um entrave ao desenvolvimento. Hoje em dia, é raro lograr o sucesso material sem formação universitária, pois o conhecimento que as pessoas inteligentes e formadas têm é crucial para qualquer sociedade. É claro que existem casos de pessoas sem isso que mesmo assim singram. Mas são (cada vez mais) raros.
Há uma outra maneira de olhar para a foto. Nela não há nenhuma articulação prática do conhecimento. Há, isso sim, uma reflexão crítica sobre o que a imagem significa no mundo das ideias. Esse mundo é abstracto e, supostamente, fundamenta a nossa existência. Por exemplo, a imagem pode documentar a rejeição africana da modernidade ocidental. Isto dá uma tese de doutoramento, pois isso convida a uma reflexão sobre a própria ideia de África, Moçambique, estado, sociedade(s) africana(s), etc. Essa reflexão pode procurar recuperar conceitos normativos importantes como a dignidade humana, a justiça, a emancipação, a responsabilidade, liderança, a igualdade e muitos outros com percurso na filosofia ou fora dela. O que está por detrás disto é a rejeição dum problema formulado por outros como ponto de partida para a produção do conhecimento. Esta é a postura duma intelectual.
A diferença entre o inteligente e a intelectual reside aqui mesmo. O inteligente aplica o conhecimento. A intelectual produz o conhecimento. O inteligente resolve problemas familiares. A intelectual formula os problemas para os quais ela acha ser necessária alguma solução. O inteligente é complacente. A intelectual é crítica. O inteligente defende o status quo. A intelectual abraça a mudança. O inteligente não é firme no seu apego à ciência, isto é à produção sistemática de conhecimento; quando o que o conhecimento científico lhe diz não ajuda a encontrar uma solução para o problema em mãos, ele desespera e lança impropérios à ciência. A intelectual é firme porque ela está sempre ciente não só da sua própria falibilidade como também da incerteza como propriedade imanente da vida; já que ela se especializa em transformar respostas em perguntas, quando chega aos limites do conhecimento, ela transforma esse limite num problema por formular.
O quadro que estou a pintar é algo idealizado, mas isso é apenas para tornar as diferenças claras. Teoricamente, as sociedades podem prescindir das intelectuais, pois as coisas práticas da vida podem ser solucionadas facilmente pelos inteligentes. O problema, contudo, é que sociedades que dependem apenas dos inteligentes caminham com segurança para o seu próprio fim. São sociedades complacentes que só são viáveis enquanto a realidade for inteligível. Essa inteligibilidade, contudo, é função do conhecimento pronto-a-vestir, portanto, do conhecimento que tem como base um mundo conhecido. A classe intelectual opera com um conceito quase supersticioso do mundo. Para ela, o verdadeiro mundo não é este que é visível aos nossos olhos, mas o emergente, aquele que se anuncia (e insinua) nas coisas que fazemos, aquele mundo cujas condições de possibilidade não estão naquilo que queremos fazer, mas sim naquilo que pode acontecer depois de fazermos aquilo que queremos fazer.
Tem sido assim no nosso continente. A inteligência partiu do princípio de que com a independência viveríamos felizes para todo o sempre. Bastava para isso criarmos estados-nação. Prevíamos que fosse haver dificuldades devido a tudo o que nos faltava para sermos estados modernos viáveis, mas com ajuda e tudo isso, haveríamos de lograr os desafios. 60 anos depois sabemos que não é assim. A nossa história pós-colonial tem sido a história de lidar com aquilo que a inteligência não vê porque ela dá o mundo por adquirido.
Só que aqui intervém um problema estrutural sério. A inteligência, eufórica, achou poder prescindir da intelectualidade e, por isso, limitou a liberdade académica obrigando, em alguns casos, muitas intelectuais a procurarem outros ares onde pudessem continuar a imaginar outros mundos. E enquanto a inteligência era suficiente para resolver os problemas da independência, ela sentiu-se bem e não lamentou ter asfixiado a intelectualidade. Contudo, com a realidade a mostrar à inteligência os seus próprios limites, e a precisar cada vez mais de quem pense fora da caixa, a inteligência desenvolveu ressentimentos contra a intelectualidade e passou a ver nela uma das razões por detrás das dificuldades.
O anti-intelectualismo não é africano. Ele é humano. É um câncro na sociedade americana e teve o seu ponto mais alto com a caça às bruxas feita pelo Senador Mccarthy no início da década de 1950. E com a eleição de Trump. Noutras partes do mundo, talvez a forma mais trágica que o anti-intelectualismo assumiu foi na China com a revolução cultural. O anti-intelectualismo é a pretensão do conhecimento – no sentido, peço desculpas, de von Hayek – aquela ideia segundo a qual o mundo é familiar, previsível e controlável. É a hubris que leva a Nêmesis. O que o anti-intelectualismo tem de “africano” é um paradoxo. Esse paradoxo consiste no incômodo que os inteligentes sentem por dependerem dum mundo que lhes é hostil, mas a preferência que têm pelo conforto que esse mundo lhes dá. Daí também que gostem muito de teorias de conspiração, pois elas são úteis na manutenção da ilusão de conforto. É o que Kwame A. Appiah chama de “nativismo” e Samir Amin de “provincianismo”.
No fundo, o anti-intelectualismo em África é uma forma de auto-negação. É o que Harriet Tubman, a ex-escrava que libertou escravos, dizia: teria salvo muito mais escravos se eles tivessem sabido que eram escravos. A verdadeira pobreza do nosso continente reside aqui (até tenho medo de dizer isto em voz alta). Nunca nos matamos por ideias porque criamos entraves à sua emergência. Matamo-nos por condições materiais. Para os inteligentes, esta foto documenta um edifício em ruínas. Para as intelectuais o mesmo edifício pode documentar responsabilidade.
São registos diferentes, dificilmente intelegíveis ao conhecimento pronto-a-vestir que nos imbeciliza.
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Elisio Macamo
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Bernardo Bambo
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A Opinião de Elísio Macamo | MBC TV #MBCTV #MBC #mbcmozambique #opiniao #pprofessorelisiomacamo
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Constantino Pedro Marrengula
1 de maio de 2021 ·
Texto do Prof Elisio Macamo, que me dá lágrimas
Dignidade
Já não me lembro em que ano foi, se em 1972 ou 73. Para os mais novos: isso foi no tempo colonial. Acompanhei o meu pai à esquadra da polícia em Xai-Xai. Íamos pedir a soltura dum primo que na noite anterior tinha sido detido por ter andado indocumentado à noite. O polícia que atendeu o meu pai foi o tristemente famoso “Kwekwere”, o terror da população indígena na cidade. Este encontro foi talvez o momento que mais me formou como pessoa.
O tipo humilhou o meu pai. Mandou-nos embora apontando o caminho com o pé. O meu pai era um homem muito orgulhoso, com muita auto-estima e que, por causa disso, teve sempre problemas com as autoridades. Em casa, vi-o sempre como o senhor de tudo, de si, de todos nós e do seu orgulho. Na esquadra, vi-o a ser humilhado. E vi a impotência nos seus olhos. Foi como se o estivesse a ver nú. Até hoje, quando penso nesse episódio sinto raiva e calafrios.
Quando digo que esse momento foi marcante para a minha personalidade quero dizer que foi ali que eu aprendi a importância de ser respeitado como pessoa. A forma como “Kwekwere” nos tratou foi o exemplo do que é não ter valor, não ser pessoa, não merecer respeito. Não precisei de ler nenhum livro de ética, nenhuma bíblia, nem mesmo de ler Marx pela primeira vez (para parafrasear um dos nossos papagaios) para perceber que a coisa mais importante que existe na vida para além dela própria é o valor intrínseco que ela nos confere. Antes mesmo de comer, beber, dançar ou fazer amor, o que há de mais importante na vida é o valor que ela confere a cada um de nós.
Mesmo se não consigo ser consequente no dia a dia, a minha maior preocupação quando me relaciono com qualquer que seja a pessoa, não importa o que essa pessoa é, se é mais ou menos estudada do que eu, se tem mais ou menos meios materiais do que eu, se é isto ou aquilo, enfim, a minha preocupação, dizia, é tentar o melhor que posso respeitar essa pessoa na sua dignidade como pessoa, tratá-la como eu gostaria que ela me tratasse se eu estivesse na sua situação. Por causa disso, apraz-me dizer, mantenho relações excelentes com todo o tipo de gente.
Não significa que eu não possa não estar de acordo com alguém, nem que eu não possa ser agressivo. Significa apenas que quando analiso as minhas relações e, por extensão, quando analiso a vida social, tenho sempre a preocupação de saber o que isso significa para a dignidade humana, algo para mim inalienável. Não tenho vergonha de confessar que muitas vezes quando vejo relatos do sofrimento humano deito lágrimas.
Quando vejo fotos que mostram pessoas em situação de pobreza e vejo o desespero nos seus olhos, sinto pontadas no coração. Os últimos anos de violência em Cabo Delgado, as imagens e vídeos de gente em fuga, de gente que não sabe da sorte de seus familiares, de gente que de um dia para outro se viu obrigada a abandonar tudo, têm sido duros para mim. Por causa disso, até nem consigo ver. Não é a fome que essas pessoas passam, nem mesmo a falta de tecto que me preocupam. É a sua degradação como seres humanos, a privação de dignidade tão essencial para que elas próprias se respeitem.
É isto que me incomoda em relação a Cabo Delgado. É ver pessoas privadas da sua dignidade e ver a indiferença das autoridades. Há um idoso lá de Cabo Delgado que tentou dar uma licção disto ao Presidente da República. O Presidente prometia-lhe ajuda material e o idoso dizia, corajosamente e com uma dignidade impressionante, que não era isso que ele queria. Ele queria a paz, e do resto ele próprio cuidaria. O Presidente afastou-se. Não entendeu. E nem tem como que entender porque ele representa um poder estatal que nunca entendeu a importância que as pessoas dão à sua dignidade.
A nossa cultura política assenta na ideia de que pessoas são animais com necessidades materiais. Basta satisfazer isso, está tudo bem. É por isso que em resposta à crise que o poder político não soube gerir, o poder pensa que conseguindo fundos onde quer que seja para dar comida, tecto e, talvez, emprego às pessoas tudo vai estar bem. E ainda espera gratidão. O poder não se vê na obrigação de dialogar com as pessoas, de lhes mostrar que mais do que a sua situação material lhe preocupa o facto de ele não ter podido garantir a segurança que o próprio poder se comprometeu a dar (e não deu, nem explicou porque não deu).
Uma pessoa que pensa que o valor das pessoas se mede pelo seu estatuto social, se é camponês ou vendedor de mercado, não percebe isto. Pensa que os desgraçados têm que estar gratos. Não pode perceber que antes mesmo de comer, a pessoa precisa de se sentir valorizada como pessoa. Quando levaram toneladas de alimentos para a população de Palma não foi para pedir desculpas por não estarem a cumprir o seu dever. Foi para dizer que são caridosos.
Eu só sinto raiva quando vejo a forma vergonhosa e indigna como o nosso governo está a gerir Cabo Delgado. Não sinto raiva contra o Presidente. Cada pessoa age ao nível da sua própria competência. É o famoso princípio de Peter, segundo o qual cada pessoa sobe até ao nível da sua incompetência. A minha raiva é contra todas as pessoas decentes do meu país, mas sobretudo as pessoas alojadas no poder, que respondem pelo poder, que vivem vidas de conforto porque estão chegadas ao poder e que ficam impávidas e serenas perante o sofrimento dos seus conterrâneos.
Excluo a Graça Machel desta raiva porque pelo menos ela teve a coragem de fazer este apelo. Todos os outros são uma vergonha para a memória daqueles que lutaram para que como povo recuperássemos a nossa dignidade humana. Cada dia que passa e Cabo Delgado continua como está não constitui o falhanço deste governo. Constitui o falhanço moral daqueles que têm a responsabilidade de preservar a independência que para mim é a dignidade de cada moçambicano.
Não tenho paciência para pessoas que pensam que caridade é algo digno. Jacques Derrida, o filósofo francês, tem uma reflexão interessante sobre o dom. Ele escreve que o dom é impossível porque ele exige retribuição. A partir do momento em que é preciso retribuir o dom, ele deixa de ser dom para ser mercadoria numa transacção. Está aqui o problema. Nós temos uma cultura política que coloca o poder numa posição em que só ele pode endividar os outros, isto é colocar os outros na situação de gratidão, uma gratidão que deve ser paga através do silêncio, da compreensão e do conformismo. É uma caridade humilhante porque retira às pessoas aquilo que faz delas pessoas, nomeadamente o seu próprio sentido de valor.
Há várias maneiras de explicar Cabo Delgado. Nenhuma delas será completa se não puder incluir a obrigação que um governo tem de respeitar as pessoas. E, infelizmente, nunca houve em Moçambique um governo que realmente respeitasse as pessoas. Sem respeito dificilmente seremos País. Andaremos de guerra em guerra e, por via disso, destruíndo toda a esperança de cultivarmos a semente do respeito e da dignidade entre nós.
Sempre que vejo imagens de Cabo Delgado, vejo o pé de “Kwekwere” a apontar a rua para o meu pai. E dói tanto.
(Peço desculpas pelo texto emocional. Não volta a acontecer)
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Elisio Macamo
14 de março de 2022 ·
Carta aberta a um fantasma
Na verdade, você não é nenhum fantasma. É um respeitado membro (do sexo masculino ou feminino) do partido Frelimo que tem a ambição secreta de querer que alguém queira que você queira. Uso o termo “fantasma” para falar de si porque sei que se me der ouvidos, será o fim da sua ambição. Quero, contudo, que saiba que o fim da sua ambição nos termos por mim aqui propostos pode fazer de si um herói a ser recordado por muitos e longos anos.
Sei que isso não ajuda a preservar alguns dos privilégios que a sua condição de membro importante desse partido lhe permitiu acumular. É evidente que para se encontrar nessa posição teve que fazer, consentir, ignorar e aturar coisas que entram em choque com a sua consciência. Ao longo do tempo, você racionalizou isso tudo como o sacrifício (com benefícios) que é preciso consentir para garantir a coesão do partido. Provavelmente não tenha a consciência de que a coesão do partido tem um lado sinistro que é a asfixia do debate interno que, a médio e longo prazo, produz a mediocridade.
O problema com a mediocridade, quando ela está instalada no maior e mais importante partido no País, é que ela condena milhões de moçambicanos ao desespero. Quando a coesão do partido é alcançada à custa da indiferença pelo sofrimento dos moçambicanos ela não constitui virtude. Ela é uma manifestação de indecência que entra em choque com todos os ideais nobres na origem da formação da Frelimo. É uma traição à memória daqueles que lutaram e perderam a vida pela recuperação da dignidade dos moçambicanos. É uma afronta a tudo o que é valor na nossa cultura.
Há-de ter visto o vídeo que reproduzo aqui. Mesmo que não o tenha visto conhece, de certeza, situações similares. No mesmo instante em que os membros do seu partido saudavam o seu Presidente pelos 60 anos da fundação da Frelimo, e enalteciam os seus feitos inexistentes, as populações costeiras da Zambézia e Nampula enfrentavam desamparadas a fúria da natureza. Era como se a natureza tivesse decidido mostrar ao “campeão da luta contra os desastres naturais” quem realmente manda.
Se você não ficou envergonhado ao ver isso, então talvez não seja a pessoa a quem eu endereço esta carta aberta. A pessoa que tenho em mente é alguém inteligente, decente e que não é indiferente à forma como o País é governado. É uma pessoa com sentido de dever (não necessariamente corajosa) que sabe que é em momentos como este que deve se fazer ouvir.
Se de facto tem a ambição secreta de se candidatar à sucessão, este é o seu momento. Diga isso de viva voz. Diga “basta!” à mediocridade e à sua celebração imbecil em sinal de afronta aos moçambicanos. Não espere que um grupo de gente medíocre que tomou o partido de assalto queira que você queira. Pegue na miséria que são as “teses” propostas para o próximo congresso do partido, rasgue-as em público e coloque no seu lugar o que realmente importa para o futuro do País, nomeadamente:
1. Como promover a cidadania para proteger a unidade nacional;
2. Como redefinir o papel da Frelimo como um projecto social e político num contexto plural e não de partido único;
3. Como promover a boa governação para proteger o serviço público;
4. Como colocar a inovação no centro da redefinição dos objectivos da educação;
5. Como promover a integração do mercado nacional para garantir um desenvolvimento económico sustentável;
6. Como fazer da reflexão sobre e reforma constante do funcionamento do sistema político o principal instrumento de garantia da soberania; e
7. Como recuperar a orientação pan-africana e regional da nossa política externa e impedir que um País que outrora participou na libertação de outros países africanos se transforme num satélite dum país minúsculo com pretensões imperiais.
Não sei se leu as “teses”. Se as tiver lido verá que estes 7 pontos são uma tentativa de as melhorar, mas ao mesmo tempo de mostrar quão fundo o partido bateu. O maior desafio, contudo, não é o programa que o partido tem para o País. O maior desafio é o próprio partido. Quer a gente queira, quer não, Moçambique está refém da Frelimo. Até que outras forças políticas ganhem a força necessária para se constituírem como alternativa vamos precisar de garantir que a Frelimo seja o Moçambique ideal em miniatura.
O Moçambique ideal é um País onde se reconhece e promove o pluralismo de ideias. É um País onde se cria espaço para que se debatam ideias. É um País onde o líder não precisa de ser proclamado como o mais clarividente e inteligente, mas sim como alguém falível, pois assim será dada a devida atenção a mecanismos de controlo, consulta e responsabilização. É um País onde o acesso a recursos, oportunidades e direitos não depende da subserviência, mas sim da competência e capacidade individual.
O Moçambique ideal é um País onde quem governa mede o seu desempenho pela melhoria das condições de vida dos moçambicanos e não pela melhoria do seu próprio conforto. É um País onde o governante não dorme sossegado sabendo que milhões de compatriotas que não beneficiam do controlo dos meios do Estado não têm onde morrer de pobreza. É um País onde a solidariedade, a justiça e o bem-comum não são letra morta, mas sim qualidades que definem a cidadania.
Como pode ver, estimado candidato fantasma, a missão não é fácil. Na verdade, é uma missão suicida. Se aceitar assumir este compromisso, fique sabendo que não vai ser candidato porque a mediocridade que se instalou no partido o vai destruir. Estou a convidá-lo a ser uma “lebre”, aquele atleta que marca o ritmo dos demais competidores numa maratona, para o bem do seu partido e, consequentemente, do País.
Faça isso pelo partido que o País inteiro agradecerá. Pense no futuro do País. Imagine quão bom será para os demais membros do seu partido um dia poderem falar à vontade e exporem as suas ideias sem o receio de represálias. Tenho a certeza de que um dia o seu nome adornará uma infra-estrutura qualquer por aí (se um dia eu for governador de Gaza, o seu nome será dado a um aeroporto fantasma). E se a pessoa que beneficiar deste seu sacrifício for sensata, talvez até o recompense como embaixador num país qualquer aí...
Os 60 anos que a Frelimo vai celebrar este ano simbolizam o sacrifício consentido por jovens que tinham tudo a perder. Assistir de forma impávida e serena à morte lenta do sonho desses jovens só porque está à espera que alguém queira que você queira é irresponsável, indecente e vergonhoso.
O seu silêncio é sinal claro de que a sua ambição de ser candidato não vale nada. Se valesse, far-se-ia ouvir agora!
Elisio Macamo
18 de novembro de 2020 ·
Sobre a sociologia do crime
A onda de raptos tem me ocupado, apesar de eu não ter nenhuma inclinação para esses assuntos. Existe um ramo da sociologia que se ocupa desse tipo. Pode ser interessante abordar o rapto também com base nos subsídios que esse ramo pode oferecer. Infelizmente, a vulnerabilidade ideológica das ciências sociais tende a limitar a contribuição dos sociólogos. Aposto que a sua reacção mais natural aos raptos seja a de procurar uma explicação estrutural do tipo “são pessoas marginalizadas pela sociedade que procuram formas de sobrevivência” ou “é o problema de se viver numa sociedade desigual”. Outros, de certeza, vão ter o neo-liberalismo na ponta da língua.
Não é que isso não faça sentido, nem que não seja útil relevar aspectos estruturais e ideológicos. O risco é o de sermos vistos como pessoas que estão essencialmente a desconversar. Há outras maneiras de sermos úteis. Por exemplo, a sociologia do crime usa três conceitos que me parecem extremamente pertinentes. Um é o conceito de “crime” que nos remete à oportunidade; o outro é o de criminalidade que nos alerta sobre as motivações que as oportunidades podem despertar e mobilizar; finalmente, temos também o conceito de “vitimologia” que nos convida a pensar sobre quem é a vítima do crime. Cada um destes conceitos dialoga com teorias de forma profunda que não interessa aqui expôr.
Servem para ter uma primeira ideia dos raptos, por exemplo. Na perspectiva do conceito de crime como oportunidade impõe-se, desde logo, uma narrativa mais ao menos conhecida. Por alguma razão qualquer complexa, o rapto foi usado num momento bem específico como instrumento de pressão dentro dum contexto social possivelmente hostil (ou desconfiado em relação) às estruturas formais de justiça. Quando começou tinha todos os indícios da morfologia de rede ilegal de protecção. A sua viabilidade financeira deve ter sugerido a indivíduos do mundo do crime, mas também a agentes policiais, ideias interessantes sobre fontes alternativas de receita. Portanto, não deve existir apenas uma rede de raptos, mas sim várias, algumas das quais bem recentes e inexperientes. Isto pode ser ao mesmo tempo boa como também má notícia. Boa porque, provavelmente, não existe uma rede (portanto, mais fácil de combater), má porque a diversidade torna a coisa imprevisível e, portanto, mais difícil de prevenir.
Quanto à criminalidade, bom, aqui entram todos aqueles aspectos do agrado dos cientistas sociais. A condição económica do País e a inoperância daí decorrente das autoridades produz um contexto social dentro do qual existem várias tentações. A pobreza não faz de ninguém criminoso, tanto mais que isso é mais efeito da forma como definimos o crime. Mas ela pode diminuir as barreiras morais que precisam de cair para que o crime seja opção. Todos os grupos sociais em Moz apresentam os mesmos níveis de vulnerabilidade em relação à prática de crime, tudo, claro, ao nível adequado. Uns assaltam à mão armada, outros desviam fundos do estado, outros ainda favorecem os seus familiares.
Finalmente, o conceito da vitimologia impõe-se como convite à reflexão sobre o perfil de quem sofre estes atentados. Circulou há algumas semanas um texto ridículo de alguém que atribuía os raptos ao racismo dos moçambicanos por serem apenas vitimizadas pessoas de origem asiática ou europeia. O problema é outro. Esses grupos populacionais são os que mais facilmente podem ser identificados como grupos com massa que pode fazer valer à pena raptar. Pelo andar das coisas, não vai tardar que negros afluentes também sejam cada vez mais vítimas deste crime. Suspeito, até, que políticos e altos funcionários do Estado estejam na linha da frente. Crime previne-se melhor quando se conhece o perfil das potenciais vítimas.
O que quero dizer com estas coisas é que há um espaço interessante para a aplicação do conhecimento sociológico. Não sei se a nossa polícia usa cientistas sociais. Estes profissionais dispõem de recursos intelectuais que podem ajudar a polícia a produzir conhecimento sólido sobre o fenómeno. Esse conhecimento não vai ser a solução do problema, mas pode ser útil para que aquele que sabe como combater o crime saiba o que fazer para fazer aquilo que sabe fazer. Estamos perante um problema bicudo que, em razão da nossa ineficiência e também incapacidade compreensível, como muitos outros cresceu sob o olhar impávido e sereno de quem o devia ter limitado logo à nascença. Não somos o único País com esse problema. A América Latina que o diga. O combate eficaz, contudo, vai exigir conhecimento.
Do ponto de vista político, uma das melhores decisões que podiam ser tomadas neste momento seria de demitir o comandante geral da polícia. A demissão não seria apenas por incompetência. Seria para fazer o “re-boot”, algo que, na verdade, é necessário por tudo que é canto. Está mais do que claro que a corporação perdeu respeito pelo seu chefe. Pode ser que o envolvimento da polícia nos raptos não seja assim tão significativo, mas é mais do que certo que ela é atravessada por interesses adquiridos que manietam o seu chefe. Nao sei se alguém mais viu, mas uma das maiores manifestações da imagem negativa da nossa polícia foi feita pelo comparsa do fulano “Parte-Côco” da Beira. O tipo disse, em entrevista, que era criminoso porque não tinha trabalho e há muito que quer ser polícia...
Elisio Macamo
25 de novembro de 2016 ·
Confiança política
Em Fevereiro deste ano escrevi sobre algo que chamei de “xigunfucracia”. A reflexão concentrou-se em aspectos do trabalho do Centro de Integridade Pública, mas a questão que abordava era geral. Dizia respeito à tendência de apostar em soluções pontuais para problemas estruturais o que, conforme escrevia nesse texto, a longo prazo produzia um tipo de complexidade que simplesmente piorava os problemas do país. A recente decisão do Chefe de Estado de nomear um Reitor para a Universidade Pública fora da proposta feita pelo Concelho Universitário dá-me a oportunidade de voltar a esse assunto da “xigunfucracia”. Rapidamente, nesse texto de Fevereiro escrevi o seguinte:
“’Xingufu’ é o nome que se dá a uma bola de futebol feita de trapos, borracha, capim, plásticos, enfim, tudo o que a miudagem sem bola de verdade apanha por aí para jogar com os pés. Parece óptima solução para um problema pontual. O problema do ‘xingufu’ é que não dura muito tempo. E pior, por causa das suas características bem particulares o futebol que ele produz não é necessariamente o futebol, mas uma versão aproximada em resultado de todos os ajustes que temos de fazer para nos adaptarmos às características bem específicas da bola artesanal: não salta, não rola bem, não dói quando bate o corpo, não corta bem o ar, pode se desfazer a qualquer momento, etc. ... O termo ‘xingufucracia’ refere-se a um conjunto de pessoas (no aparelho de estado e nas organizações da sociedade civil) que alimentam toda uma máquina de gestão dum país baseada na proliferação de ‘xingufus’ que (acham que) resolvem problemas específicos tipo corrupção, desigualdade de gênero, crianças da rua, pobreza, vulnerabilidade, conflitos, etc. Para tudo que é problema existe uma ‘solução’ artesanal, cuja principal motivação é dar a impressão de que aborda o problema ao mesmo tempo que justifica o nascimento e proliferação de agências (ou indivíduos) cuja razão de existência é a disponibilização dessas ‘soluções’. Governar passa a ser ter agências ou estratégias especialmente vocacionadas para essas coisas. Os problemas que resultam da aplicação de soluções ‘xingufu’ não são vistos como manifestação dessas soluções, mas sim como problemas típicos do desenvolvimento, o que justifica mais soluções ‘xingufu’. O problema da ‘xingufucracia’, porém, é que ela a curto e médio prazo torna o processo de gestão de relações sociais mais complexo pela proliferação de soluções simples para tudo que consegue se impor como problema. E não só. Os ‘xingufu’ obedecem a uma economia política própria que exige a sua constante reprodução por meio da tendência natural de exagerar o problema para justificar a existência da instituição que com ele lida”.
A forma como o termo “confiança política” é usado no nosso país tem tudo para produzir os efeitos nocivos da “xingufucracia”. A “confiança política” produz um outro país que é parecido com o nosso, mas nâo é exactamente a mesma coisa. Quero destacar dois aspectos que me fazem crer que a importância da “confiança política” a médio e longo prazo vá dar ao país mais problemas do que soluções. Um problema é institucional e outro é etico.
O problema institucional é o que, curiosamente, justifica o recurso à “confiança política”. Ao que tudo indica, existe a crença na ideia de que certos cargos públicos devem ser ocupados por pessoas da confiança do Chefe do Estado. Dum modo geral, não existe argumento contra a importância de o Presidente trabalhar com pessoas da sua confiança. O problema, porém, é que a insistência nessa prerrogativa pode também ser um voto de desconfiança ao aparelho de Estado. Dito doutro modo, sendo o aparelho de Estado algo que (devia) funciona(r) na base de regras claras com a bênção da legislação a insistência em trabalhar apenas com aquelas pessoas a quem se confia sugere falta de confiança na objectividade do aparelho de Estado e leva, até, a supor que o Chefe de Estado e o seu homem ou mulher de confiança queiram trabalhar à revelia dessas regras.
Em princípio, se as tarefas e os objectivos estão claros não devia importar muito quem está à frente desde o momento que seja competente e saiba respeitar as regras. Portanto, quando o Chefe de Estado aparentemente ignora a recomendação que a própria instituição faz e impõe outra pessoa, não está apenas a documentar a sua confiança política no felizardo, mas sim a sua desconfiança em relação a essa instituição e a todo o sistema administrativo do país. Como isto é Moçambique e muita gente participa nestas discussões sempre em defesa das suas cores partidárias ou contra as cores que odeia vejo-me na obrigação de recordar que critiquei Guebuza quando nomeou a desgraça que por pouco não afundava a UEM também nas mesmas circunstâncias. Critiquei, como agora o faço, justamente essa prerrogativa presidencial e destaquei a importância de serem os órgãos universitários a decidirem quem deve ser o seu timoneiro.
O problema institucional tem outras implicações. Não conheço muito bem a sua origem, mas imagino que haja duas vertentes. Uma é a do absolutismo monárquico que cultivava a ideia de que o serviço público era, na verdade, o serviço ao monarca. Essa ideia era hostil à ideia do bem público, algo que só dentro dum conceito político republicano pode servir de regulador da política. A outra vertente é marxista que tem uma relação difícil com a diferença de opinião. Todo aquele que não pensa como eu não inspira confiança, logo, não lhe pode ser confiado nenhum posto.
Embora não seja forçoso que assim seja, esta postura pode ajudar a promover o seguidismo, o famoso lambe-botismo e a total ausência de crítica ao chefe porque crítica, por mais construtiva que possa ser, será sempre vista como afronta e desvio de objectivos.Tudo isto pode contribuir (acho que contribui) para tirar a política do contexto institucional e colocá-la na informalidade das relações pessoais, maquinações partidárias, etc. o que transforma o sistema político numa gigantesca rede neo-patrimonial. Isso pode, a curto prazo, dar tesão ao chefe, mas a longo prazo torna-o impotente, pois governar passa a ser a gestão destes arranjos todos cuja complexidade cada vez mais o vai ultrapassar.
Há também um problema ético que tem merecido muita atenção na filosofia do direito. Sucintamente, o problema surge quando se torna necessário justificar uma decisão tomada em prol do bem público. Normalmente, quando um funcionário público dá um despacho positivo a um requerimento ele justifica a sua decisão na base da conformidade do pedido com os procedimentos e, indirectamente, com o interesse público. Mas nem sempre é assim. Que tal se o seu chefe se opõe a um despacho positivo e os méritos do caso não são suficientemente claros para justificar apenas essa decisão? Aí o funcionário vai decidir com base no reconhecimento da autoridade do seu chefe, por exemplo. E é aí onde se levanta o problema ético.
O chefe tem direito moral à autoridade, mas direito moral à autoridade não é autoridade moral. Isto é, quando o chefe ignora o parecer dos seus subordinados – e, como é hábito entre nós, sem nenhuma necessidade de explicar porquê – ele pode ficar com aquela sensação de que ele é que manda, mas a longo prazo está a retirar autoridade moral a si próprio. A interpretação da regra segundo a qual o Presidente nomeia o Reitor da universidade pública com base na recomendação do Concelho Universitário como a prerrogativa do Presidente de escolher quem ele quiser é uma rejeição grosseira da confiança institucional que o Chefe de Estado devia ter interesse em promover. Essa rejeição põe em causa a sua própria autoridade moral.
A questão ética agudiza-se um pouco. O que devem fazer aqueles que foram preteridos, incluindo os estudantes desse estabelecimento? Obedecer ao comando? Rejeitá-lo? Resisti-lo com os pés, isto é fazendo guerrilha institucional? A partir do momento em que o Chefe de Estado toma uma decisão que não respeita a vontade da instituição este problema automaticamente se levanta. De certeza que ele pensa, e é provavelmente encorajado a pensar, que como ele é o chefe os outros vão ter que cumprir as ordens. Este tem sido o grande calcanhar de aquiles dos nossos chefes como aliás a gente vê com a infeliz e ineficaz actuação das nossas Forças de Defesa e Segurança. Parecem pensar que basta dar ordens para serem cumpridas. O que acontece na prática, porém, é que as coisas não andam e, suponho, por vezes as coisas não andam simplesmente porque as pessoas não deixam andar por pirraça e porque recusam autoridade moral ao chefe. Não é correcto nem justo, mas quem governa tem que saber lidar com isso.
E assim a “xigunfucracia” vai espalhando os seus tentáculos por todo o sistema, emperrando as coisas, criando atritos desnecessários e comprometendo o bem público que cada vez mais cai fora do campo de visão da política. E no meio de tudo isto, é preciso também dizer, estão aqueles que pactuam com a secundarização da confiança institucional a favor de vitórias pírricas da confiança política. Neste caso está em causa a pessoa que se deixou instrumentalizar pelo Chefe de Estado aceitando um posto que lhe é confiado na base dum cuspo na cara dos órgãos da UP. Tudo quanto sei dele diz-me que não lhe falta competência técnica para valorizar o posto, mas enquanto não soubermos as razões que levaram o Chefe de Estado a nomeá-lo – e a ele aceitar – eu pelo menos vou ter dúvidas em relação à sua idoneidade moral e seu compromisso com a sanidade institucional. A confiança institucional não depende apenas de o Chefe de Estado diminuir o recurso à confiança política. Depende também de as pessoas terem a coragem de dizer “não” quando o interesse público está em jogo.
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Ricardo Santos
12 de outubro de 2019 ·
O VOTO IMBECIL
Por Elisio Macamo
Aqui vai a minha intenção de voto. Há sinais fortes de que estas eleições sejam decididas pelo voto imbecil. Quem vota desta maneira não é aquele que vota pelo partido ou candidato que eu não apoio. Voto imbecil é o voto de protesto. É legítimo não estar satisfeito com o desempenho da Frelimo e do seu candidato. É também legítimo decidir, na base disso, não votar neles. A democracia é isso mesmo. O problema, porém, é que a democracia não é uma brincadeira de crianças que se punem negando apoio umas às outras. Democracia é uma das melhores maneiras encontradas para comprometer cada um de nós com o País. Quem não quer votar nos que estão no poder agora, tem que o fazer em plena consciência do que vai acontecer depois.
Dito doutro modo, o eleitor tem que saber ou considerar que as coisas serão melhores. Para saber isso, precisa de se informar sobre os outros programas e candidatos e na base dessa reflexão certificar-se que o País estará em melhores mãos. Dizer apenas tudo, menos estes, é não só votar de forma imbecil como também ser imbecil. Não há na história país que tenha sido construído por imbecis e tenha sido bem sucedido. Atenção que não estou a dizer que quem não votar na Frelimo e em Nyusi é um imbecil. Estou a dizer que não votar neles sem também ter boas razões para achar que um outro governo possa ser bom para Moz é votar de forma imbecil. Há anos, perante a escolha entre um candidato da direita (Chirac) e um da extrema-direita (Le Pen), muitos eleitores socialistas votaram em Chirac e logo a seguir foram lavar as mãos com sabão. No Brasil e nos EUA o voto imbecil levou ao poder dois energúmenos que não só não trazem a solução que se esperava como também estão a destruir a democracia e o tecido social.
O voto imbecil decorre duma leitura problemática do País com três desdobramentos. O primeiro consiste numa abordagem moralista da política. Espera-se dos governantes uma conduta moral e ética que simplesmente é irrealista. Isto não quer dizer que roubar fundos públicos ou tirar proveito pessoal dos cargos sejam condutas aceitáveis. Não são e devem ser sancionadas. Mas é um equívoco grave pensar que eles sejam responsáveis pela ausência de desenvolvimento. Não importa quantos doadores dizem isso e quanto dinheiro eles dão a incautos e oportunistas para promoverem a ideia de que a ausência de desenvolvimento é culpa dos governantes moçambicanos. O argumento da corrupção é a mentira do século e é profundamente anti-político porque promove a ideia de que desenvolvimento é questão técnica, não política.
O segundo desdobramento consiste na ideia de que maus governantes necessariamente são maus para o País. Também não é verdade. Eu acho que o actual presidente não está à altura do cargo, mas não é por isso que o país está ou estará mal. A questão sempre é o contexto em que ele age. Tivemos presidentes com perfis completamente diferentes, mas os resultados não são necessariamente diferentes. O que é recordado como tendo sido o melhor, o barbudo, foi o que mais estragos fez ao País apesar (ou se calhar por causa) do seu carisma, da sua integridade e do seu suposto compromisso com o País. O que me mete medo em Nyusi é a evidente mediocridade do secretariado do partido - que inclui pessoas com evidentes dificuldades com a língua portuguesa, 40 anos depois da independência! - a trivialização da Comissão Política e a hostilidade crescente em relação ao pensamento crítico no interior do partido.
O terceiro desdobramento consiste na ausência de visão. É verdade que, como se costuma dizer, quem tem visões precisa de psiquiatra, mas a pobreza é gritante neste quesito. O País é dum modo geral pensado em termos emprestados da indústria do desenvolvimento: acabar com a fome, analfabetismo e, claro, com a corrupção. Muita gente que se considera crítica percorre Moz de cima para baixo convencida de que isso é que é visão e nivela o debate na esfera pública por baixo com slogans e palavras que pensam por nós. Visão é algo mais profundo. Tem a ver com o tipo de valores que a nossa comunidade política deve emular. O debate político, então, é sobre o tipo de instituições que devem ser criadas, ou reforçadas, para que os princípios que promovem esses valores funcionem. O republicanismo, por exemplo, é o compromisso com a cidadania. O debate é sempre sobre as instituições políticas necessárias para que princípios como a liberdade de expressão, por exemplo, funcione como garante da cidadania.
Eu acho que a Frelimo e o seu candidato não representam o que de melhor existe na nossa sociedade. Infelizmente, os outros, pela leitura que faço das suas propostas, das suas intervenções e da sua postura, inspiram-me menos confiança ainda. Continuo a achar que estamos a escolher o menos mau, mas mesmo aí precisamos de ser cuidadosos. O que isso significa para mim é que já sei o que devo continuar a interpelar depois do dia 15. Vou insistir para que a Frelimo revitalize o partido. Vou insistir para que haja maior transparência governativa. Isso significa para mim que o governo tem que se abrir à assessoria pública. Não se explica que depois das dívidas ocultas o governo tenha tido o desplante de negociar e decidir sobre os destinos a dar aos proventos da exploração de recursos naturais em Cabo Delgado sem ampla discussão pública. Esse autismo governamental tem sido, desde os gloriosos tempos da “revolução “ um dos nossos maiores calcanhares de Aquiles. Finalmente, vou continuar a insistir numa maior reflexão sobre as instituições políticas. O acordo de paz definitiva foi a esse nível um grande retrocesso. Enraizou uma lógica neo-patrimonial que vai continuar a atrair para a política oportunistas, não patriotas. Foi o maior erro deste governo!
Mas, prontos, aí está a minha intenção de voto. Não é voto imbecil.
Elisio Macamo
12 de julho de 2019 ·
A perversão da ideia de Moçambique
Sou fã de abordagens teóricas na sociologia que olham para a realidade social e os fenómenos que a compõem não como algo que nos é externo, mas sim como algo que produzimos de forma colaborativa. Só para pegar num exemplo extremo, um assalto não se descreveria de forma completa se a gente só olhasse para a actuação dos assaltantes. Os assaltados também participam na “produção” do assalto através de tudo que (não) fazem. A vantagem desta abordagem é de nos sensibilizar para o papel que todos nós desempenhamos (mesmo que seja por omissão) na produção do real que é relevante para todos nós. Isto parece-me particularmente pertinente para a abordagem do fenómeno político que tem sofrido bastante com a insistência (legítima) de colocar a ênfase na acção dos perpetadores como a variável (independente) que melhor dá conta das coisas.
Isto é a propósito duma OSC moçambicana que está na África do Sul a fazer campanha para que o ex-Ministro das Finanças procurado pela justiça americana não seja extraditado para Moçambique, mas sim para os EUA. Há dois conjuntos de razões que são dadas para justificar esta atitude. Ambas são legítimas, mas problemáticas. A primeira é de que em Moçambique o sistema de justiça não funciona, por isso, ele não seria responsabilizado pelos seus alegados crimes. A segunda é de que formalmente não existe acusação em Moçambique, por isso as autoridades sul africanas deviam garantir que se faça justiça enviando o ex-Ministro para o país onde ele é, efectivamente, acusado.
Os dois conjuntos de razões fazem pouco sentido. Se o problema é a inoperância do sistema de justiça em Moçambique, então faz parte das atribuições duma sociedade civil responsável lutar para que ela seja operante. Seguindo o seu raciocínio, faria sentido que ele fosse trazido a Moçambique e que uma vez lá, a sociedade civil envidasse todos os esforços para que ele fosse trazido à justiça porque é do interesse de todos nós que a justiça funcione. O facto de os sucessivos governos da Frelimo não terem logrado dar o bem-estar ao povo moçambicano não justificaria, por exemplo, que o País fosse colocado sob tutela de alguma potência externa. Ou por outra, argumentar que os nossos problemas têm que ser resolvidos fora porque nós não temos essa capacidade parece ser uma forma de abdicar da nossa responsabilidade como moçambicanos. Da mesma forma, em relação à segunda razão, o facto de não haver ainda acusação em Moçambique devia constituir razão não para transferir o problema para os sul africanos, mas sim para lutar em Moçambique para que haja essa acusação! Que tal se lá nos EUA ele for absolvido? A “sociedade civil” não vai querer que ele seja processado em Moçambique porque não existe acusação?
Aqui regresso à abordagem sociológica inicial. Muitas vezes, não percebemos bem o nosso País porque insistimos muito em ver apenas no governo e na oposição oficial as únicas variáveis independentes. Todas as outras variáveis andam disfarçadas de variáveis dependentes quando também são independentes. Dito de outro modo, pensamos que entidades como a sociedade civil – com todas as associações positivas que esse rótulo leva consigo – são parte da solução. Há razões fortes para partir do princípio de que algumas destas organizações são, na verdade, parte do problema, não da solução como elas gostariam de ser vistas. O que faz delas parte do problema é a sua gênese no contexto dum País como o nosso, a aparente fragilidade do compromisso que elas têm com a democracia e a sua vulnerabilidade ao oportunismo, algo que elas partilham com os actores políticos.
O que está na gênese da chamada sociedade civil moçambicana não é a articulação genuína de interesses sociais e políticos. É a advocacia, isto é a prestação dum serviço profissional de articulação dum discurso de indignação. É uma forma de “lobbyismo” com a única diferença de que é o “lobby” que cria o problema para o qual identifica os lesados que depois representa. Não são os próprios lesados que se organizam para articular um problema e, depois, procurar por alguém que os represente. Não tenho nada contra este tipo de modelo empresarial e de empreendedorismo, só que não é não é “sociedade civil”. “Sociedade civil” não é viver da indignação, mas sim articular interesses genuínos em defesa não de grupos em particular, mas sim de bens republicanos (justiça social, igualdade, liberdade, direitos humanos, etc.), cuja protecção e promoção garante, curiosamente, o próprio direito de articulação de interesses. Nesta perspectiva bastante restricta, não há como fazer com que a exportação dos nossos problemas possa ser vista como uma actividade legítima duma organização da sociedade civil. É a desistência do País, pura e simplesmente.
Tudo isto tem a ver com a fragilidade do compromisso que algumas das OSC (e seus activistas) têm com a democracia. Não me refiro aqui aos problemas que estas organizações têm no seu funcionamento interno (corrupção, falta de responsabilização, desrespeito dos estatutos, etc.). Refiro-me à ideia que se fazem de democracia. Há alguns anos dei-me ao trabalho de ler com algum cuidado (isso fazia parte duma proposta de apresentação que eu tinha feito para participar numa conferência do IESE na qual, infelizmente, acabei não participando) os estatutos, os pronunciamentos oficiais, as entrevistas e intervenções mediáticas dessas OSC e seus activistas. Embora o interesse fosse o uso que elas faziam do vocabulário das ciências sociais, deu para ver que nenhuma OSC articulava um pensamento coerente da democracia que pudesse servir de guia para identificar, outra vez, um ou mais bens republicanos que orientassem o seu trabalho.
Era (é) tudo slogan. Qualquer indivíduo esperto e com sentido empresarial, pode ir longe naquele meio gritando slogans do tipo “abaixo a corrupção!”, “o tempo dos jovens já chegou!”, “justiça para os camponeses!”, etc. O motor disso não é o compromisso reflectido com algum princípio, mas sim a emocionalização dos assuntos que, por sua vez, dá visibilidade aos activistas ao mesmo tempo que lhes confere o estatuto de “defensores” de alguma causa social. São poucos os activistas (na verdade, não conheço nenhum) com um pensamento democrático bem articulado. Repetem banalidades que todos conhecemos, mas com aquele ar grave e indignado que dá a impressão de estarem a dizer coisas sérias. Com alguma sorte, você passa a fazer parte dum jet-set internacional de repercussão de lugares-comum.
E ainda tem o oportunismo. Enquanto os partidos e os políticos fazem tudo para aceder ao (ou manter) poder de modo a viverem à custa do Estado, algumas OSC e seus activistas fazem tudo para aceder aos fundos dos doadores e deles viverem. Parece um argumento ad hominem, mas não é. É uma constatação estrutural. Num contexto em que existe dinheiro (de fora) para (fingir) ser “sociedade civil” é natural que haja uma perversão dessa ideia. Como já disse inúmeras vezes, essa lógica estrutural faz das nossas OSC instrumentalizadoras da nossa condição (de pobreza, má governação, etc.) para a sua própria reprodução social. São aquilo que o antropólogo francês, Christian Geffray, chamou de “corpo social” na sua análise da Renamo na sua guerra terrorista lá dos tempos idos. Um “corpo social” é algo que se reproduz nas condições que ele próprio cria ainda que apresentando-se como solução.
Eu conheço muito boa gente que trabalha neste sector. Inclusivamente, envolvi-me em várias actividades com algumas dessas organizações. Lembro-me de ter participado em várias actividades de reflexão sobre um orçamento soberano movido pelo interesse genuino de fazer alguma coisa contra a nossa dependência, esse tumor que nos mata lentamente. Nem toda a gente que adere à campanha contra as dívidas ocultas é movida por interesses inconfessos. Mas o núcleo duro da nossa sociedade civil é constituído essencialmente por pessoas perplexas, com sentido missionário (e, por isso, fanáticas) e oportunista (e, por isso, pouco comprometida com bens republicanos) que faz da nossa sociedade civil parte do problema, não da solução.
Um exemplo: o País esteve anos a fio refém dum “gangster” que pouco se importava com a constituição e com a vida humana. Não tenho memória de ter visto alguma OSC que tivesse feito alguma coisa para o chamar à atenção (ou, mesmo, pela gravidade dos seus atropelos aos direitos humanos) para o levar a Haia. Até à sua morte teve toda a liberdade do bobo do palácio para fazer e desfazer perante o olhar impávido e sereno da “sociedade civil” que só se mexia para apelar para a paz de forma genérica e sem compromisso com nada. Será porque os doadores não disponibilizaram fundos para tal? Não creio. A sociedade civil não se mexeu porque não é movida por nenhum princípio democrático de nota.
Eu, como moçambicano, quero o ex-Ministro das Finanças de volta ao País. É em Moz onde deve ser julgado pelos alegados crimes. O País precisa de conhecer os contornos desse caso também como forma de se precaver melhor no futuro. Parece-me incongruente recusar pagar a dívida e, ao mesmo tempo, dizer que o assunto é americano, não nosso. Ou somos pelo País ou então somos apenas comerciantes da nossa desgraça. Se o País não funciona, então porque existem essas organizações? Porque não apagam a luz, fecham as portas e deitam fora as chaves?
Quero-o em Moçambique porque também as malhas em que ele caiu são as malhas dum sistema financeiro e económico internacional que nos torna vulneráveis à arbitrariedade dos mesmos a quem confiamos para fazerem justiça em nosso nome. Chang não é nenhum Robin dos Bosques, mas o mundo em que vivemos tem muito de Sherwood. Nada é mais ingênuo (senão mesmo cínico) do que pensar que a “justiça” que os americanos vão fazer no caso do ex-Ministro será “justiça” no contexto geral do nosso lugar no mundo.
Eu acho muito vergonhoso o que a “sociedade civil” está a fazer. É a perversão de Moçambique como projecto.
Elisio Macamo
2 de novembro de 2017 ·
Um covil de bandidos chamado Assembleia?
“O monstro APIE, conhecem? Conhecem? Conhecem? Entrámos na APIE, o que é que encontrámos? Encontrámos um covil de bandidos, um antro de corrupção, um centro de humilhação do povo. Encontrámos uma base do inimigo para destruir as nossas conquistas. Encontrámos um centro difusor de boatos para denegrir a revolução. A APIE está entregue a lacaios dos antigos donos dos prédios, entregue a boçais, selvagens, marginais que se comportam como porcos.
A ofensiva que agora iniciamos é o início duma nova guerra. Guerra contra o subdesenvolvimento, guerra pela edificação duma sociedade avançada no nosso país, guerra que nos permitirá fazer de Moçambique um país forte, um país onde cada moçambicano tenha trabalho, boa alimentação, assistênca médica adequada, educação correcta, habitação condigna. Um país onde floresçam a liberdade, a dignidade e o amor entre os homens. Um país onde os nossos filhos possam crescer saudáveis e felizes. Foi por estes objectivos que o nosso povo lutou desde sempre. Foi por estes objectivos que de novo aceitamos sacrifícios. Foi por estes objectivos que tombaram os melhores filhos do nosso povo.
O combate agora desencadeado é o prolongamento da luta armada de libertação nacional. A ofensiva que agora desencadeamos é a ofensiva de todos os trabalhadores moçambicanos, dos operários das fábricas, dos camponeses. É a ofensiva de todos os trabalhadores moçambicanos para destruir uma minoria de agentes infiltrados que querem destruir a nossa revolução, uma minoria de agentes infiltrados que quer que o nosso país deixe de ser dirigido pela classe operária, uma minoria de agentes infiltrados que quer destruir as conquistas revoluccionárias da aliança operário-camponesa, uma minoria de reaccionários que quer devolver o nosso país ao capitalismo, ao colonialismo, à opressão, à humilhação, à pobreza, ao racismo, à divisão, à dependência do imperialismo. Uma minoria de reaccionários que quer conservar os seus privilégios, que quer manter como sistema a fome, a nudez, a pobreza, a miséria, que quer manter o povo nas bichas.
O nosso povo vai vencer o subdesenvolvimento, o nosso povo quer a revolução, e vai fazer. O nosso povo quer o socialismo e construiremos. Não podemos avançar infiltrados, por isso estamos a varrer a nossa casa, vamos continuar varrê-la [sic], ataquemos o inimigo infiltrado, desmascaremos, desalojemos o inimigo das posições que usurpou, vamos criar condições para a vitória sobre o subdesenvolvimento. Construiremos o socialismo na República Popular de Moçambique.
A revolução vencerá!
O socialismo triunfará!
A luta continua!”
In: O saudoso líder.
Uma coisa é certa. Tecnicamente falando, os discursos do saudoso estavam muito bem escritos. Tinham estrutura. Tinham uma ideia clara solidamente argumentada (no contexto ideológico desse grupo). Sabiam apelar à ética defendida por esse grupo. Eram coerentes. Há muito que os discursos feitos actualmente podem aprender dos discursos dessa época.
Neste pequeno excerto que circula pelos grupos de Whatsapp está resumido (a) o “aborto” que foi uma independência pensada nos moldes ideológicos na altura dominantes, (b) a perplexidade do governo de então perante os desafios que enfrentava, mas também (c) a longa sombra projectada pela cultura política da época sobre os modos de pensar de hoje. Não se trata aqui de individualizar a história como alguns pensam, apesar de eles próprios singularizarem os feitos desse indivíduo. Trata-se de reflectir sobre como uma pessoa de capacidades extraordinárias (nunca lhe neguei esse mérito) se tornou porta-voz duma interpretação problemática dum momento da nossa história que nos deu um legado pesado pela negativa.
Neste trecho está patente a noção de país que se tinha: um país onde não havia espaço para um pensamento diferente do pensamento dominante. Não só. Um país onde pensar diferente (do pensamento dominante) era sinómino de se estar contra tudo quanto de bom a independência representava. Isto era feito de forma metódica. Quando as coisas não corriam a contento por todo um conjunto de razões como, por exemplo, a ineficiência do próprio modelo ideológico, a falta de quadros, a natureza humana, etc., as falhas eram reduzidas à vontade dum inimigo fictício que estava contra a “revolução”. O compromisso com a “revolução” renovava-se inventando inimigos da revolução e do povo, a quem se podia reservar todo o tipo de tratamento.
Chamar o lugar onde outras pessoas trabalham de “covil” e as próprias pessoas de “bandidos” e de “boçais, selvagens, marginais que se comportam como porcos” não é dizer as coisas como elas são. Não é frontalidade. É prepotência e incitamento de multidões. Não admira que batéssemos as palmas enquanto se fuzilavam os inimigos da pátria.
Transformou-se uma independência que devia ter sido para todos numa independência para alguns, mas sempre celebrada como oferta a um povo fictício imaginado por poucos no estupor duma ideologia particularista.
Transformou-se o clamor do povo pela liberdade num mandato conferido a poucos para definir o que essa liberdade seria. Desse mandato os poucos retiravam a prerrogativa de definirem quem era o povo e, depois, de o tratarem como bem entendessem. Quem, usando do poder que tem, chega ao ponto de tratar outros seres humanos por bandidos, selvagens e marginais que se comportam como porcos revela uma falta de respeito total ao ser humano.
Quem não trata os seus inimigos ou adversários com respeito percebe pouco de dignidade humana. E o resultado está à vista, ainda hoje. Os agentes de segurança e da ordem têm muitas dificuldades em respeitar a dignidade humana no seu trabalho. O pai espiritual disso é conhecido. Mesmo aquele que insiste numa “dignidade” material reflecte esta falta de postura moral. O indivíduo é apenas um meio para um fim, nada mais do que isso. Você foi enviado à União Soviética para estudar e acredita religiosamente que fizeram isso por si, não pela revolução, seu verdadeiro e único compromisso. A qualquer momento você podia ter sido transformado em “inimigo da revolução”, em marginal que se comporta como porco e bateria palmas porque, no fundo (você diz para os seus botões), eles queriam o seu bem...
O maniqueísmo de então continua presente na nossa cultura política, curiosamente até nas hostes daqueles que nos tempos teriam sido chamados de “contra-revoluccionários”. Só há bons e maus. Os bons estão entre os que se identificam connosco. Os maus são os outros. Identificar-se com é suficiente. Não é preciso saber porque se defende alguma coisa; não é preciso ter bons argumentos; é só dizer que eu sou a favor de e, prontos, é boa pessoa, está tudo bem. O trecho do discurso revela isso. Há os reaccionários e há os que querem a “revolução”. Nem há meio-termo.
Qualquer pessoa pode virar reaccionária. Basta para o efeito preferir outra coisa ao invés da revolução, isto é, basta não estar de acordo com quem se arroga o direito de saber melhor interpretar a vontade do povo. O reaccionário nem tem espaço para expor as suas ideias. Mandam-lhe calar, “re-educam-no” ou, na pior das circunstâncias, executam-no em nome do povo. E você encolhe os ombros agora, filosofa sobre contextos históricos, usa da liberdade que hoje tem (e que naquela altura não tinha) para expor as suas ideias e pontos de vista.
Sem brincadeiras: eu tenho uma profunda admiração por todo o indivíduo que consegue ver no pensamento que estrutura este trecho e na pessoa que o verbaliza não só o significado profundo de independência como também o conjunto de valores que fazem falta à Pérola do Índico. Não é a sua coerência que admiro. É o seu compromisso com uma causa, embora essa causa não esteja clara para mim.
Como perguntou e bem disse Blaise Pascal: “Será preciso matar para impedir a existência de pessoas más? Mas isso seria criar duas pessoas más ao invés de uma só”.
Só que lá está, o Ocidente também não é feito de santinhos... Alguns países só se vão edificar quando se libertarem de falsos ícones ou quando os colocarem nos seus devidos lugares.
O título era para forçar a leitura.
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Elisio Macamo
24 de maio de 2017 ·
Sobre a corrupção, mais uma vez
O texto é bem longo e impróprio para moralistas.
Há assuntos que precisam de ser constantemente tratados até pelo menos as pessoas concluírem com toda a certeza que ou somos loucos mesmo, ou então saberem porque estamos profundamente equivocados. A corrupção é um deles. Sobre este assunto tenho uma opinião já feita e que nunca escondi, apesar de saber que me coloca em posição de fora do jogo. Não é a causa dos nossos problemas de desenvolvimento, não merece a prioridade que tem recebido de muitas instituições e o discurso em seu torno é um dos maiores obstáculos a uma abordagem intelectual mais útil dos problemas do país. A luta contra a corrupção é a outra maneira de fazer o trabalho de Marracuene, aquilo que noutras partes do mundo é conhecido por trabalho de Sísifo.
E como sempre nestes assuntos é preciso tornar certas coisas claras. Primeiro, não é correcto desviar fundos públicos. Segundo, não é correcto atribuir empreitadas públicas a quem paga melhor ou faz parte do círculo de amigos ou de apoiantes do partido no governo, e não a quem faz um trabalho bom. Terceiro, extorquir dinheiro ao público e aceitar subornos por um trabalho que deve ser prestado também não é correcto. Quarto, actos de corrupção precisam de ser punidos conforme previsto pela lei. Sei que alguém vai perguntar porque, então, estou contra as campanhas anti-corrupção se considero as suas práticas e manifestações incorrectas e merecedoras de punição. É assim, eu acho que tossir é mau, mas não considero que isso seja a razão da nossa má saúde. Uma coisa é manifestação dum mal, outra é a causa desse mal. A corrupção é uma das manifestações da ausência de desenvolvimento (ou se quiserem do subdesenvolvimento ou da pobreza), não a sua causa. Na verdade, a corrupção nem é um bom termo para descrever o problema.
É difícil entender isto por uma razão muito simples. O discurso do desenvolvimento opera ao nível de platitudes. Alguém imagina os biliões de dólares que autocratas africanos deposita(ra)m fora dos seus países, olha para o estado lastimável das estradas, da saúde, da educação, etc. e fica aí a pensar que é esse dinheiro que teria resolvido todos os problemas. O argumento parece imbatível. Mas não presta. Ninguém sabe o que teria acontecido com esse dinheiro se não tivesse sido “exportado”. As mesmas condições que tornaram possível que alguém roubasse esse dinheiro teriam, de certeza, contribuído para que esse dinheiro nao fosse usado para esses fins. Uma sociedade que não consegue impedir isso não vai poder colocar esse dinheiro ao serviço de seja o que for. É por isso que me rio com tristeza quando vejo aquele vídeo do Centro de Integridade Pública a mostrar o número de escolas, hospitais, kilómetros de estradas, etc. que o dinheiro das “dívidas ocultas” teria construído. Dá para agitar as pessoas, mas a correlação é duma simplicidade arrepiante porque não aborda o problema na base, isto é as condições sociais que tornam possível esse alheamento, se assim o quisermos chamar, de algumas pessoas e de alguns decisores políticos. É fogo de artifício.
Portanto, é necessário olhar para a morfologia deste problema e dela tirar ilações. Voltei a pensar neste assunto por causa de duas coisas, nomeadamente essa campanha para a presidência da Confederação das Associações Económicas (CTA) e os problemas políticos que abalam o Brasil, cujo denominador comum é a corrupção. A CTA é interessante porque a campanha é renhida, por vezes com jogo abaixo da cintura, e deixa muita gente curiosa em entender porque adultos com outras ocupações investem tanta energia em algo tão simbólico como aquilo? A resposta a esta questão contém alguns elementos que nos podem dar uma ideia dessa morfologia. Quanto ao Brasil, bom, o que a gente vê lá hoje é o que pode acontecer a um sistema “funcional” quando os seus alicerces são abalados por razões que põem em causa os seus princípios reguladores. Foi o que as políticas do PT fizeram ameaçando comprometer o status quo, exacerbadas pela reacção dos adversários do PT que ao invés de restabelecer o equilíbrio normal expuseram toda a base operacional do sistema político brasileiro. Mas não era inevitável que assim fosse. O sistema podia ter continuado e, como o PT mostrou, com benefício para o país.
Como sou sociólogo a abordagem tem que ser mesmo sociológica. E ela começa por uma distinção muito importante. Em qualquer sociedade existem regras sociais e normas sociais. Não são a mesma coisa. Normas sociais ditam o que deve ser feito. Regras sociais formulam o que significa fazer alguma coisa. Dito doutro modo, seguir regras, por mais curioso que possa parecer, é a coisa menos natural da vida social. A regularidade da vida social é que nos faz erroneamente pensar que está tudo bem porque seguimos regras. O mais normal é estarmos mais empenhados a produzir as condições em que regras podem, potencialmente, ser seguidas. E isso faz-se na informalidade. A informalidade é o que faz as sociedades funcionarem. As regras são apenas balizas que dão às pessoas uma ideia mais exacta do que é necessário contornar, e como, para que as coisas sejam feitas. É assim em Moçambique, no Japão, nos EUA, na Alemanha, no Ruanda e na Coreia do Norte. Não importa se país em desenvolvimento, industrializado, democrático, autoritário, etc. A informalidade é a cola que junta.
É, contudo, neste contexto de informalidade marcado pela produção das condições em que as regras podem ser seguidas que as normas emergem e podem ser seguidas, ou não. Neste sentido, essas normas não precisam de ser “boas” no sentido, digamos, cristão da ética. O que importa é que essa norma tenha um contexto bem específico dentro do qual ela consegue influenciar o comportamento das pessoas. É assim, por exemplo, que a norma de matar para proteger o grupo num contexto criminoso pode surgir e vingar. Há por detrás disso toda uma história comportamental que confere um significado bem específico ao que as pessoas fazem. Na Alemanha, por exemplo, durante anos a fio o governo liderado pela União Cristã Democrática recebeu aquilo que os brasileiros chamam de “propina” em violação da lei de financiamento de partidos em troca de favores às empresas benefactoras. Até tinha contas na Suíça para fugir ao fisco. Esse escândalo, quando explodiu, arrastou consigo Helmut Kohl, o qual até hoje se recusa a divulgar os nomes das empresas que lhe deram o dinheiro. E a justificação que ele dava no início era de que tinha dado a sua palavra a essas empresas que não iria divulgar os seus nomes (sente-se acima da lei, tal e qual a caricatura que se tem de líderes africanos). Agora diz que se esqueceu...
A informalidade é crucial para a estabilidade de qualquer sistema político. Não são as instituições que dão força aos sistemas políticos, mas sim a coerência e consistência da informalidade que lhes é subjacente porque é na sua base que as instituições se tornam viáveis. É por isso que insisto nesta ideia e me coloco do outro lado da trincheira daqueles que veneram os trabalhos de Robinson e Acemoglu: a força e estabilidade das instituições não é anterior ao desenvolvimento. É seu resultado. Já houve várias tentativas de entender melhor este assunto que culminaram em termos como “capital social” ou “confiança”. Até o FMI andou durante algum tempo nesta onda com os trabalhos de Vito Tanci. Em cada país a informalidade funciona ao seu próprio jeito e cria a sua própria história (o que inclui regras e normas sociais).
Essa informalidade não implica necessariamente que os sistemas políticos estejam nas mãos de bandidos, mas pode produzir bandidos assim como pessoas íntegras. Podem também ser capturados por bandidos, o que até me parece ser o caso no Brasil agora e foi durante muitos anos também o caso na Itália. Mas não é inevitável. O Japão é, talvez, o melhor exemplo de como a informalidade pode lubrificar a política e a economia sem grandes transtornos para o país. Na verdade, aquelas pressões de fora para a probidade, combate à corrupção, transparência, etc., tornam na maior parte dos casos o sistema de informalidade mais forte, mais fechado, mais criminoso e, por vezes, mais violento. Só. O desafio, portanto, consiste em entender a morfologia desta informalidade e ver o que pode ser feito não para que ela não degenere (que isso ninguém pode controlar; essa é a má nova!), mas sim garantir que ela produza resultados positivos do ponto de vista social (que é o que o PT no Brasil fez se pegarmos no exemplo dum país onde a informalidade é gritante).
A informalidade moçambicana tem duas características principais. Uma tem a ver com a existência dum partido, a Frelimo, que inaugurou o campo político nacional baseado numa ideia mais ou menos difusa do “interesse nacional”. É em torno desta ideia que gravitam vários actores – sectores económicos nacionais de origem asiática, sectores ideológicos dentro do próprio partido, sectores económicos nacionais de origem urbana e africana, interesses económicos estrangeiros, doadores, ONGs, etc., etc. – que fazem as coisas andar, bem ou mal. Na verdade, gerir o país é gerir essa teia de interesses, o que envolve co-optar este ou aquele grupo, calar a boca a este ou aquele, e “esfriar” aos que ameaçam a estabilidade dessa informalidade. Não há como alterar este cenário sem desestabilizar o sistema político moçambicano. Isto explica, por exemplo, porque o MDM que subiu ao poder em algumas autarquias também com o propósito de acabar com a “corrupção” é hoje vítima de acusações de corrupção. A informalidade é endémica e inevitável. E ainda bem que é assim. A questão nunca pode ser de saber como acabar com ela, mas sim como colocá-la ao serviço deste ou daquele ideal político.
A outra característica da informalidade moçambicana é a imprevisibilidade do cotidiano, normal num país como o nosso, que faz com que as coisas andem na base de acertos individuais e espontâneos. Esses acertos funcionam como nós gingatescos que dão uma certa estabilidade à vida social. Não há ninguém em Moçambique, mas ninguém mesmo, que não dependa disto para a sua sobrevivência ou conforto. Cada um de nós deve favores a alguém, isto é cada um de nós contribui ao seu jeito – os brasileiros, de novo, chamam a isto de “jeitinho” – para a corrupção... A imprevisibilidade exacerba a dependência da informalidade, não a produz. E mais uma vez: a dependência com maior ou menor grau da informalidade é característica de todas as sociedades, mesmo na Europa é assim.
Se eu usasse a terminologia da indústria do desenvolvimento para descrever o mundo universitário europeu que, entretanto, conheço muito bem a palavra “corrupção” não iria faltar, mas estaria na verdade a falar desta informalidade. Não é sempre o melhor académico que ganha um concurso para ocupar uma cátedra; ganhou aquele que tem melhores redes de influência. Coisas aparentemente “transparentes” como “revisão de pares”, “pareceres de terceiros”, etc., podem, e são, com muita facilidade instrumentalizadas a favor dessa informalidade. Sem esticar muito o pescoço para fora da janela, tenho dito a colegas em várias universidades públicas por aqui que são um excelente campo de estudo para quem queira entender o Estado africano. À semelhança desse Estado, vivem de dinheiros alheios, são geridas por pessoas sem nenhuma vocação para tal e mais preocupadas consigo próprias do que com a instituição (há excepções, claro) e são movidas por pessoas em todo o tipo de teias de relações que querem viver à grande à custa de alguém (pesquisa, conferências, etc.) e por aí fora. Por vezes tenho surpreendido colegas da UEM quando lhes digo que a diferença entre a sua universidade e universidades europeias não é a melhor gestão das últimas, mas a quantidade de dinheiro que estas últimas se podem permitir desperdiçar. Que é também a diferença entre, por exemplo, os EUA e Moçambique, no fundo. Um dia vou escrever um livro sobre as universidades por aqui...
Portanto, a luta pela presidência da CTA é, num certo sentido, a luta por um lugar de destaque no sistema informal que sustenta a política e economia do nosso país. Repito: tudo normal. É um sistema de troca de favores baseado no pagamento imediato ou deferido quase ao estilo dum mercado financeiro especulativo. As normas funcionam apenas quando aqueles que estão envolvidos nas teias desse mercado não conseguem ultrapassar as suas divergências e ao mesmo tempo não têm poder suficiente para se imporem. A carga ética tão predilecta dos combatentes contra a corrupção não impressiona ninguém porque ela é irrelevante. Ou melhor, para ela impressionar a seja quem for tem que sair de dentro do próprio sistema. Quem quiser chamar a isto de corrupção que o faça. Eu diria que isto é a verdadeira (e única possível) política no nosso país. Não é boa, nem má. É.
Agora, quando os famosos doadores se chateiam com a “corrupção”, exigem transparência e até financiam campanhas e instituições contra a corrupção não estão necessariamente a revelar maior integridade e probidade. Estão a fazer várias coisas. Uma, que é cínica, é recusar assumir responsabilidade pelas consequências das falácias da própria indústria do desenvolvimento. A corrupção ajuda a “explicar” melhor os desaires que esta indústria sofre apontando simplesmente para a má fé dos próprios africanos. A outra coisa que fazem, perfeitamente racional, é usar o discurso da corrupção para se integrarem na informalidade moçambicana. Sim. O exemplo claríssimo disto é a reacção às “dívidas ocultas”. Barafustaram, cortaram ajuda, nhõnhonhõ, mas agora com o pé lá dentro já estão a prometer isto mais aquilo. O empregado do povo viaja pelo mundo e fecha negócio impávido e sereno como Bruce Lee. Não admira. É assim que eles fazem as coisas nos seus próprios países, só malta CIP, Gabinete de Combate contra a Corrupção, Transparência Internacional, Fundação Mo Ibrahim, etc. é que acredita no conto de fadas da integridade pública como principal factor de sucesso político e económico.
Então, compatriotas, mais uma vez, vamos deixar esse assunto da corrupção para esses lá de fora. Não nos ajuda a pensar melhor o país. Distrai-nos apenas. Vamos pensar na produção local de política e como a sua morfologia nos pode ajudar a descortinar os caminhos que precisam de ser trilhados para que a política surta o tipo de efeitos que gostaríamos de ver. Temos que entender a informalidade e trabalhar com ela. E esquecer a corrupção que não é nosso assunto. Confesso: basta ouvir alguém a explicar os problemas africanos com recurso à corrupção perco logo respeito por essa pessoa.
Elisio Macamo
3 de fevereiro de 2022 ·
Mais sociologia
Ontem a televisão suíça entrevistou-me para me perguntar o que pensava sobre a tentativa de golpe na Guiné-Bissau. Uma das perguntas que me colocaram foi porque o país anda sempre em golpes. Recorde-se que já houve quatro golpes e dezasseis tentativas. É muito fácil recorrer ao que todos nós sentimos e responder dizendo “é a África!”. Tendo em conta que a tentativa veio na sequência de outros golpes recentes na África Ocidental essa resposta faria todo o sentido.
Só que eu preferi complicar as coisas. Disse à jornalista que não havia nenhum mistério, apesar de ser extremamente desagradável e mau. Cada país desenvolve as suas maneiras de resolver problemas, quer elas sejam boas ou más. Quando uma maneira parece eficaz, a tendência é de ela se tornar no meio ao qual se recorre quando se reúnem circunstâncias que exigem uma “solução”. É interessante notar que o golpe de estado é um método frequente na África Ocidental. Na nossa região são as guerras civis. O Lesoto foi talvez uma grande excepção.
Mas que sociologia se esconde por detrás disso? É uma sociologia negativa. Inspiro-me numa ideia do intelectual ugandês, Mahmood Mamdani. Fala daquilo que ele descreve como “história por analogia” referindo-se à mania de analisar a África a partir da comparação com a Europa, muitas vezes apresentando o nosso continente como uma aberração. A sociologia negativa em causa tem duas dimensões.
A primeira descreve-se melhor com recurso à expressão “deus ex machina” (deus surgido da máquina) que se refere a uma solução miraculosa, repentina e inesperada para algum problema, tipo ruandeses de repente oferecerem a sua ajuda como se não tivesse nenhum antecedente sobre o qual a sociedade não foi informada. No caso da história por analogia esta dimensão funciona ao nível de pensar o que a Europa é hoje como algo que surgiu do nada, dum momento para outro. Ou por outra, imaginamos a Europa hoje sem história nenhuma. Num belo dia ela ficou democrática, civilizada, respeitadora dos direitos, etc. Recordei à jornalista que o nosso ideal político refere-se à Europa dos últimos 80 anos, e isso apenas numa parte pequena dela.
A segunda dimensão está ligada à primeira. Manifesta-se através da procura, nos desaires que a África sofre, apenas das razões que explicam o falhanço, mas nunca daquilo que pode apontar caminhos para o futuro. A dificuldade aqui chega a ser lógica e ter muito a ver com a obsessão que temos nas ciências sociais, e no quotidiano, de explicar fenómenos a partir dos seus resultados. Dito doutro modo, se alguém teve acidente é porque de certeza conduziu mal, se um país tem pobreza é porque os governantes não fizeram nada, se, já agora, o projecto na origem das dívidas ocultas se deu mal é porque o projecto em si era mau, etc.
O problema da história por analogia é que ela assenta numa concepção teleológica. Isto é, ela parte do princípio de que a história humana tem uma lógica própria que se desenrola no cumprimento dum objectivo pré-definido. Assim como no Cristianismo estamos na terra em preparação do dia do Juízo Final, ou no Marxismo caminhamos irremediavelmente rumo ao comunismo, a história por analogia imagina o percurso humano como algo progressista em que estamos sempre a subir. É tão forte essa convicção do progresso inevitável que quando um país não consegue, a suspeita é sempre que não se esforçou o suficiente. A crueldade da história por analogia reside justamente aqui.
O sucesso europeu serve sempre como prova de que é possível. Aqui nem importa aquela questão já levantada nos anos setenta no contexto da teoria do sistema-mundo, segundo a qual haveria uma relação estrutural entre o sucesso de uns e o falhanço de outros. Mas o mais grave nem é isso. É a forma como a história por analogia nos encoraja a ver o sucesso como manifestação duma lei natural, um pouco aquela coisa de se pensar que quem se esforça sempre acaba sendo recompensado. É claro que a moral por detrás dessa crença é linda, mas não tem nada a ver com a vida e com o mundo. Nietzsche não gostava nada disso e ocupou-se disso longamente na “Genealogia da moral”.
Na prática, a história por analogia cria um ambiente de frustrações que priva o discurso académico da paciência necessária para pensar os problemas estruturais do continente e, no fundo, nos embrutece porque só pensamos o político numa perspectiva material, portanto, aquilo que escrevia ontem. Por exemplo, quantos presidentes africanos (incluindo o celebrado Kagame) têm uma ideia de política independente de preocupações materiais? O que é visão política no nosso seio senão o desejo difuso de resolver os problemas do povo? Vamos ser directos: o nosso presidente tem alguma ideia do que significa construir um país? Ele é capaz de articular alguma visão nesse sentido? A julgar pelo que diz e faz tenho muitas dúvidas. E, infelizmente, não é só ele. Mesmo ao nível da esfera pública podemos constatar a mesma pobreza.
Dei voltas para chegar ao ponto de partida. Porquê o golpe na Guiné? Segundo a sociologia negativa que proponho aqui, o problema é, talvez, de olhar para o golpe de forma isolada como um fenómeno sui generis. Não é. O golpe, a guerra civil ou seja qual for o mecanismo através do qual uma comunidade política tradicionalmente resolve os seus problemas é uma manifestação de duas coisas: primeiro, da ausência duma abordagem articulada do desafio de construção nacional e, segundo, da consequente falta de investimento nisso. Sissoko não tem projecto político que vá para além do combate ao narcotráfico e, por isso, não vê a necessidade de investir na criação de condições que permitam que todos os actores políticos guineenses se sintam parte de alguma coisa. Tudo o que tenho visto dele é a hostilização de quem não está com ele.
Em Angola, aconteceu o mesmo. O projecto político de João Lourenço é a luta contra a corrupção. Fora disso, não vejo mais nada. Aqui suspeito, infelizmente, que mesmo a oposição – que em Angola é de outro calibre – também não tem projecto para além de fazer diferente do actual governo. Em Moz estamos a ver o mesmo e de forma mais trágica ainda. A Frelimo não tem projecto político (devemos reconhecer isso) para além de se manter no poder. E pior: procura essa manutenção do poder através da hostilização de quem não faz parte, ou se faz, não alinha com o discurso dominante. A forma como a presidência se transformou praticamente numa monarquia em que o presidente não comunica com a sociedade, não é interpelado por ninguém, evita a imprensa, comenta assuntos quentes através de indirectas em discursos (como recentemente em relaçao à sociedade civil), etc. não é manifestação dum estilo pessoal. É resultado directo da miséria da política.
E uma consequência disso é a perda de controlo sobre a população. Se houver mudança em Moz, essa mudança vai necessariamente ser violenta, nunca pacífica porque a política não investe na criação de condições para que assim seja. A forma como o governo lidou com a questão das portagens é disso prova. Falta-lhe sensibilidade política. E, curiosamente, por causa disso mesmo uma das maneiras que um poder dessa natureza tem de se manifestar é o investimento na repressão.
A indiferença em relação ao sofrimento das pessoas em Cabo Delgado, o mau comportamento de agentes policiais que é sistematicamente ignorado pelo governo, as medidas drásticas contra a população pobre no contexto da Covid, etc. tudo isso faz parte duma lógica que tem o seu respaldo na perplexidade política.
Sendo assim, a questão de fundo não é porque há golpes ou guerras civis. É porque os golpes e as guerras civis não produzem outro tipo de sensibilidade política? E para essa pergunta não tenho resposta. Há coisas que nem mesmo a sociologia pode explicar.
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Elisio Macamo
6 de julho de 2018 ·
Proposta de versão militante do discurso angolano
O meu texto sobre o discurso do Presidente angolano suscitou muitos debates por aí. Sem muita vontade de discutir, deixo aqui algumas passagens do discurso com sugestões do que a pessoa que escreveu o discurso do Presidente poderia ter escrito. Há muita coisa em João Lourenço que me lembra Guebuza (para quem não sabe, isso é um elogio). Uma delas é um forte sentido de propósito que precisa de assessores com capacidade para o transformar numa visão coerente. O voluntarismo não é suficiente e arrisca sempre ser disvirtuado por oportunistas.
Aí vamos:
(...)
Como é do vosso conhecimento, alguns dos problemas vividos por África têm reflexos diretos na Europa e merecem portanto, a atenção cuidada dos responsáveis dos países e das organizações de ambos os continentes [Como é do vosso conhecimento, os problemas vividos em África e na Europa são de natureza global. Têm a ver com a estrutura do mundo em que vivemos, largamente determinada pelo que os europeus, no usufruto da sua criatividade, fizeram do mundo. Não há problemas africanos e problemas europeus. Há problemas globais que reflectem o mundo que os vossos antepassados criaram. A vossa prosperidade e o nosso atraso não se explicam pelo que vocês fazem bem e nós fazemos mal. Explicam-se pelo tipo de mundo em que vivemos, por isso as soluções têm que ser conjuntas.].
Excelência,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
(...)
Hoje, quando o país vive uma natural fase de transição política, o Executivo angolano continua empenhado em aprofundar o processo democrático e em melhorar as condições que permitam um ambiente favorável a diversidade de opiniões, a liberdade de expressão e no geral, ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos [Hoje, como ontem, o País encontra-se em transição, a transição dum País que teve que pegar em armas para recuperar a sua dignidade como povo, para um País soberano que procura os seus próprios caminhos para garantir aquilo pelo qual lutou: a dignidade humana. Em Angola, meus senhores e minhas senhoras, não fazemos democracia por mera imitação. Tudo quanto fazemos no sentido de alargar os espaços de liberdade é no espírito da luta empreendida pelos angolanos pela sua liberdade do jugo colonial. Da mesma maneira que cada país europeu tem a sua interpretação local e historicamente legitimida da democracia, Angola também terá que construir a democracia com respeito pela sua história. Fazemos a democracia pelo nosso povo, não por respeito a nenhum manual de ciência política].
Excelência,
Minhas Senhoras, Meus Senhores,
(...)
Contamos por isso com a União Europeia como um importante parceiro que nos pode ajudar a superar os constrangimentos que ainda encontramos para colocar a economia angolana ao serviço do desenvolvimento, do progresso e do bem-estar das suas populações [A União Europeia pode ser uma parceira importante neste empreendimento. São bem vindas todas as iniciativas que criem condições para que a exploração da riqueza angolana dentro dos parametros definidos pelos angolanos tragam benefícios a todos nós. A Europa, cuja prosperidade se deve historicamente à forma como tirou proveito do resto do mundo, tem hoje a oportunidade de se redimir participando com respeito, humildade e solidariedade na correcção dos erros do passado. Angola está disposta a ajudar a Europa a se redimir abrindo as suas portas ao investimento, às trocas culturais, etc.].
Minhas Senhoras, Meus Senhores,
No quadro da moralização da sociedade, da criação de um melhor ambiente de negócios e de maior atenção ao investimento privado estrangeiro, levamos a cabo uma verdadeira cruzada contra a corrupção e a impunidade em toda a sociedade, com destaque para os chamados crimes de colarinho branco, cujo os resultados positivos, asseguramos, que em breve começaremos todos a sentir e a beneficiar [Eu queria usar este pódio para lançar um apelo. Os males que caracterizam os nossos países não são a causa do nosso subdesenvolvimento. A África não é subdesenvolvida porque tem elites corruptas, povo analfabeto e sem saúde. A África tem níveis altos de corrupção, analfabetismo e doenças porque é subdesenvolvida. Dar prioridade à luta contra a corrupção é inverter as coisas. Ela é má, sim, mas enquanto as suas causas fundamentais não forem abordadas, não seremos capazes de acabar com ela. É por isso que o meu Governo investe mais na criação de condições que, por um lado, atenuam os seus efeitos e, por outro lado, atacam os males na sua raiz. Não precisamos de moralizar a sociedade. Precisamos de melhorar o ambiente de negócios, de fortalecer os angolanos nos seus direitos como cidadãos para que sejam eles a cobrar a probidade e a integridade. Não estamos a inventar a roda. Estamos a fazer aquilo que todos os países no mundo fizeram. Em todo o mundo desenvolvido a corrupção perdeu força como problema com o desenvolvimento. Nós estamos abertos a lições, mas por favor, digam-nos aquilo que realmente aconteceu, não aquilo que, retrospectivamente, acham que devia ter acontecido].
(...)
Excelência,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
África vive hoje um clima de conflitos internos, de insegurança, de crise económico-financeira, de terrorismo, de fome e pobreza e como consequência vem conhecendo sucessivas vagas de imigração em direcção ao continente mais próximo, o continente Europeu. Está é uma situação que a todos nos envergonha. É triste e revoltante constatar que cerca de seis séculos depois de os filhos de África terem sido levados em condições degradantes nos navios negreiros para as américas, onde na condição de escravos, contribuíram para o florescimento de grandes economias, hoje a saga se repete embora numa conjuntura diferente. Os filhos de África, vão hoje para a Europa na condição de emigrantes, dirão alguns que de forma voluntária o que é discutível. Para sermos francos, fogem dos conflitos armados, da fome e da miséria que assolam alguns dos nossos países, fogem do desemprego e da falta de perspectivas por um futuro melhor. Todos somos responsáveis por este quadro com que muitos países africanos se confrontam [A África vive hoje aquilo que todas as sociedades viveram na prossecução do desenvolvimento. Não nos conformamos com estes problemas, mas também não há nenhuma razão para nos sentirmos envergonhados. Dirijo-me a vós nesta cidade de Estrasburgo no centro da Europa Central donde mais de 6 milhões de pessoas emigraram no século XIX à procura de melhores condições de vida. Esses 6 milhões foram uma ínfima parte dos 70 milhões de europeus que num século apenas abandonaram o seu continente à procura da vida. Esses emigrantes europeus beneficiaram da prerrogativa de se imporem pelas armas para reclamarem direito não só de residência como também de propriedade sobre as nossas terras, algo que nenhum daqueles náfragos no Mediterrâneo tem como recurso hoje. Eu como líder africano não posso pedir desculpas pelo facto de os meus conterrâneos fazerem aquilo que os vossos antepassados assim como muitos de vocês que são acolhidos nos nossos países hoje em dia fizeram ou fazem em resposta às circunstâncias da vida. Devo recordar aqui que o maior fardo pela emigração africana é assumido pelos países africanos. Em Angola não só acolhemos africanos como também, no auge da crise financeira europeia, acolhemos portugueses, espanhois, gregos e italianos... Compreendo que seja difícil pedir ao eleitorado para aceitar viver de acordo com os princípios que a Europa tanto tem divulgado pelo mundo, os princípios do humanismo, da solidariedade e da tolerância. Mas se a Europa quer ser valorizada por nós africanos como exemplo do que uma moral universal pode ser, tem que ter a coragem de viver de acordo com os seus princípios. Ela tem que saber que cada barco de emigrantes clandestinos que não pode atracar em nenhum porto europeu é uma mancha nos valores pelos quais a Europa quer ser vista no mundo. Os filhos de África que arriscam as suas vidas no Mediterrâneo celebram esses valores. Ignorar o seu sofrimento em nome duma Realpolitik dominada por discursos xenófobos constitui uma traição a esses valores].
(...)
Termino reiterando os meus agradecimentos pela hospitalidade, pelo cordial acolhimento e pela atenção dispensada pelos Senhores Eurodeputados [Termino com um apelo. Somos companheiros involuntários de viagem. Não sei o que teria sido de cada um de nós se não tivesse havido colonialismo e tráfico de escravos. Sei que o que somos hoje é resultado dessa História. Por isso, repito, não há problemas africanos e problemas europeus. Há problemas da humanidade. Para resolvermos esses problemas, teremos de trabalhar juntos na procura duma moral comum que não seja refém do espírito pedante que desequilibrou o mundo. O respeito e o sentido de responsabilidade são elementos centrais dessa moral. Nós angolanos queremos fazer parte dessa conversa global com a nossa experiência histórica, mas também com tudo quanto aprendemos nestes esforços que empreendemos para devolver a dignidade humana ao nosso povo. Uma Europa que fala e age de forma coerente em relação aos valores que difunde pelo mundo pode ser um interlocutor muito válido. Se não fizer isso, o meu povo vai dizer “só vos olho, já”]
Elisio Macamo
16 de fevereiro de 2023 ·
O papel dos académicos
Participei recentemente numa conferência em que um colega alemão disse algo muito interessante. Ele reagia a um reparo sobre a importância da ciência para a política. Aconselhou cuidado porque, em sua opinião, a ciência não produz conhecimento certeiro e infalível. Isso é que justifica a existência da política, pois aqueles que fazem política têm que tomar decisões sempre em contexto de incerteza. É uma ideia que tenho defendido desde que participo no debate público. Ciência e política são dois campos diametralmente opostos. Aquilo que faz de mim bom académico faria de mim mau político, e vice-versa.
Este é particularmente o caso com as ciências sociais e humanas. Nós não dizemos como se deve fazer. Damos subsídios para a reflexão sobre as formas que o mundo assume, ou pode assumir em determinadas circunstâncias, e contribuímos para que a sociedade expanda a sua imaginação na abordagem das coisas da vida em sociedade. O mais específico que fazemos, contudo, é ajudar a formular melhor os problemas para os quais, na verdade, existem várias soluções. Por exemplo, possíveis soluções para o problema do crime podem ser a execução de todos os suspeitos, a imposição de recolheres obrigatórios, educação moral nas escolas, mais agentes policiais, combate à pobreza, etc.
Mas aí está o problema. Todas essas “soluções” pressupõem um problema bem definido, nomeadamente o “crime”. Contudo, o que é exactamente o crime entre nós? É a simples violação da lei? O que é que essa lei protege e como é que a sociedade chegou à ideia de que essa coisa devia ser protegida? Quais são as coisas com as quais essa coisa está relacionada e que, estudando-as, possam nos permitir entender o que torna o “crime” possível? Suponhamos que a lei queira proteger o respeito pela propriedade alheia. O que faz com que esse respeito não exista? Que tipo de estruturas sociais existem e garantem isso, ou o que faz com que a sua existência não tenha nenhum efeito dissuador no comportamento desviante?
Durante a minha última estadia em Maputo e Xai-Xai notei um comportamento estranho. No trânsito, nas lojas e espaços públicos pouca gente cedia espaço aos outros. Quase toda a gente queria ser a primeira a ser atendida, a passar, etc. Isto remeteu-me à ideia dum vínculo social frouxo possivelmente em resultado da precariedade, mas também da imprevisibilidade geral. É arriscado dar certas coisas por adquirido entre nós. O BI a que temos direito, o pagamento da taxa disto ou aquilo – que é obrigação, mas na repartição pública vira um direito para que o funcionário o viole na nossa cara (não tem sistema, falta carimbo aqui, etc.) – e várias outras coisas não são evidentes. Mesmo uma comunicação do Chefe de Estado marcada para uma certa hora pode atrasar meia hora sem que ele peça desculpas por isso. Tenho em mim que seria difícil definir o problema do crime sem tomar em conta tudo isto e muito mais, claro.
O papel das ciências sociais e humanas é este. É de reflectir sobre as razões que a sociedade tem para considerar certas coisas negativas, as instituições que ela cria e usa para fazer valer essa interpretação e as condições que fazem com que essas coisas negativas aconteçam, onde, por quem, etc. Algum do conhecimento que surgir daí vai ser mais ou menos duradoiro, mas a maior parte será fugaz. A qualidade do debate na esfera pública é que garante que este conhecimento seja útil porque eleva o nível de deliberação. Uma boa governação – que não é necessariamente uma governação isenta de erros – depende da qualidade do debate na esfera pública, e neste sentido. Não é preciso ter académicos em postos de governação (por isso, bobos da corte, relaxem!). É preciso que quem governa valorize a deliberação pública.
E é aqui onde o problema da caquistocracia, o governo pelos piores, reside. Nos anos setenta, um historiador económico italiano, Carlo Cipolla, na brincadeira, identificou quatro tipo de pessoas que toda a sociedade tem: os indefesos, os inteligentes, os bandidos e os estúpidos. Os indefesos são aqueles que precisam da ajuda dos outros para satisfazerem as suas necessidades, ou ajudam sem benefício próprio; os inteligentes são aqueles que agem em benefício próprio e dos outros; os bandidos são os que fazem mal aos outros para se beneficiarem; os estúpidos, os mais perigosos segundo Cipolla, são os que prejudicam os outros sem benefício próprio e sem consciência de que os estão a prejudicar. São piores quando têm poder e agem em grupo.
Uma pessoa estúpida, no entendimento de Cipolla, não é necessariamente intelectualmente atrofiada, ou ignorante. É simplesmente uma pessoa que não percebe que aquilo que faz pode ser prejudicial aos outros sem que ela própria realmente beneficie. Por exemplo, quando alguém com poder não olha para a governação como algo que a longo prazo vai criar condições para que todos se sintam comprometidos com o país e, portanto, com a harmonia social não percebe que aquilo que pensa ganhar hoje graças ao acesso ao poder pode se perder amanhã quando houver convulsões sociais.
A minha província, Gaza – e peço desde já desculpas aos meus conterrâneos – vota sistematicamente e defende ferrozmente um partido sem que isso se traduza em melhores índices de desenvolvimento. Gaza está na cauda em quase toda a estatística de relevo. Na minha experiência de debate com moçambicanos, é mais difícil discutir a governação (da Frelimo) com gente da minha província do que com quaisquer outras pessoas (mas, curiosamente, são dos que mais se lamentam em privado...).
Não estou a dizer que as gentes de Gaza têm que se revoltar contra o poder. Estou a dizer que por vezes é necessário que a gente se pergunte que tipo de pessoa quer ser, se indefesa, inteligente, bandida ou estúpida. Quem milita num partido ou o apoia, mas não exerce a sua cidadania exigindo que esse partido seja inteligente, portanto, procure sempre vantagens recíprocas e abrace os indefesos, promove a estupidez que, por sua vez, consciente ou inconscientemente, cria espaço para que os bandidos se multipliquem e fiquem impunes. E não tira absolutamente nenhum benefício! De cada vez que vejo gente séria a se sentir na obrigação de defender o indefensável ou com medo de dizer o que realmente pensa, vejo este quarto tipo de pessoa a apertar o cerco ao nosso país.
O papel dos académicos hoje em Moçambique é de alertar contra os riscos da caquistocracia ajudando a vislumbrar as condições em que os indefesos e inteligentes podem se movimentar para limitarem o campo de actuação dos bandidos e dos estúpidos. Ao fazerem isso não vão necessariamente produzir conhecimento infalível, mas vão fomentar o debate e a reflexão. E isso é que é desenvolvimento.
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Elisio Macamo
14 de agosto de 2014 ·
Um discurso de verdade
A cultura retórica no meu país está tão mal que para um discurso ser considerado excelente e erudito basta não insultar ninguém e dizer coisas que poucos entendem. Está-se mal. Seria para rir se não fosse o facto de a retórica ser tão importante para a democracia. A democracia é deliberativa, logo, precisa tanto do debate quanto o peixe precisa da água. É verdade que a retórica, astutamente usada, pode contribuir para mistificar as coisas e envenenar o ambiente do debate. Na verdade, vistas as coisas desta maneira, até um discurso escrito para não ser entendido por ninguém pode reclamar para si o estatuto de boa intervenção retórica. Só que quando se chega a esse ponto, repito, estamos mal.
Eu gosto de bons discursos. E confesso também que a única profissão que eu gostaria de praticar, fora da docência, seria mesmo essa: a redação de discursos. Não estudei para o efeito, mas inspiro-me em bons discursos. E deleito-me com eles. No dia 28 de Agosto de 1963, o grande activista americano de direitos cívicos, Martin Luther King Jr., que foi, para mim, um dos melhores oradores que o mundo conheceu, proferiu o seu famoso discurso “I have a dream” nos degraus do monumento em honra de Lincoln, o presidente americano que proclamou o fim da escravatura. Esse discurso é, talvez, o mais brilhante, mais sério, mais comovente, mais digno e mais tudo quanto a retórica espera dum discurso que jamais foi escrito e proferido. De cada vez que o leio vêem-me lágrimas aos olhos. Mesmo agora, enquanto me preparava para escrever este texto, escutei o discurso original, ouvi a sua voz cadenciada, mas cheia de convicção, ouvi os aplausos, a emoção e a confiança que ele foi transmitindo aos que o escutavam e senti as lágrimas a escorrerem. É impossível ficar indiferente a uma obra prima como esta. Mas uma parte das lágrimas que deitei foi de decepção pelo nível a que se chegou no meu país.
Aviso desde já que este texto é longo, mas é necessário. Reproduzo uma boa parte do discurso “I have a dream” (em tradução brasileira que encontrei neste site: http://anoticia.clicrbs.com.br/.../confira-a-traducao-na...
) para partilhar convosco a alegria que o verdadeiro bom verbo é, mas também para sugerir critérios que os menos avisados podem usar, da próxima vez que se discutir lei de amnistia em Moçambique (haverá muitas...), para avaliarem a qualidade das intervenções. Quem sabe se a escuta crítica não poderá ajudar a evitar novas leis de amnistia... Um bom discurso tem apenas que respeitar três critérios essenciais: ter uma mensagem (claro!), respeitar os valores de quem escuta (sobretudo se quer persuadir) e interagir com quem escuta (através do uso de recursos retóricos apropriados). Só isso (quase). Vou intercalar a apresentação do discurso com algumas observações minhas só para chamar a atenção para a forma como Martin Luther King Jr. observa estes critérios. E não se esqueçam: tinha 34 anos quando proferiu esse discurso. No ano seguinte, em 1964, ganhou o Prémio Nobel da Paz. Em Outubro de 1968 foi assassinado em Memphis.
Aqui vamos nós:
“Estou feliz por estar hoje com vocês num evento que entrará para a história como a maior manifestação pela liberdade na história de nosso país [na tradução brasileira vem “demonstração” e eu mudei para “manifestação”; com estas palavras simples o orador vincou a importância do evento; quem esteve presente sentiu-se logo parte dum evento importante. Genial!]
Há cem anos, um grande americano, sob cuja simbólica sombra nos encontramos, assinou a Proclamação da Emancipação. Esse decreto fundamental foi como um grande raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para pôr fim à longa noite de cativeiro. [neste trecho, logo no início, Martin Luther King Jr. faz uma coisa incrível, se calhar a mais brilhate deste discurso. Ele “rouba” palavras de Abraham Lincoln que no discurso de Gettysburgh, no final da guerra civil americana precisamente 100 anos antes do discurso de MLK, tinha dito “four score and seven years ago...”; no original em inglês MLK diz “five score years ago...”. simplesmente brilhante. Mas não só isso. Ao se referir a Lincoln, MLK tornou claro que o seu protesto dizia respeito a toda a América e era sobre a recuperação dos valores que todo o americano sensato devia salvaguardar. Uma entrada destas não tem preço!]
Mas, cem anos mais tarde, devemos encarar a trágica realidade de que o negro ainda não é livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro está ainda infelizmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. Cem anos mais tarde, o negro ainda vive numa ilha isolada de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro ainda definha nas margens da sociedade americana estando exilado em sua própria terra. Por isso, encontramo-nos aqui hoje para dramatizar essa terrível condição. [aqui é simplesmente maravilhoso ver como MLK usa o contraste para transmitir a sua mensagem de forma dramática; excelente a repetição de “cem anos mais tarde”, fulminante a imagem do oceano de prosperidade e a ilha de pobreza; genial a referência ao exílio e espectacular o fim quando ele diz: encontramo-nos aqui para dramatizar essa terrível condição]
De certo modo, viemos à capital do nosso país para descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam a assinar uma nota promissória da qual todo americano seria herdeiro. Essa nota foi uma promessa de que todos os homens teriam garantia aos direitos inalienáveis de “vida, liberdade e à procura de felicidade”. É óbvio que a América de hoje ainda não pagou essa nota promissória no que concerne aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar esse compromisso sagrado, a América entregou ao povo negro um cheque inválido devolvido com a seguinte inscrição: “Saldo insuficiente”. Porém recusamo-nos a acreditar que o banco da justiça abriu falência. Recusamo-nos a acreditar que não haja dinheiro suficiente nos grandes cofres de oportunidade desse país. Então viemos para descontar esse cheque, um cheque que nos dará à vista as riquezas da liberdade e a segurança da justiça. [sem comentários a imagem do cheque e como ele mantém essa analogia até chegar ao ponto onde remata com a questão da justiça que é o seu ponto principal].
Viemos também para este lugar sagrado para lembrar à América da clara urgência do agora. Não é hora de se dar ao luxo de procrastinar ou de tomar o remédio tranquilizante do gradualismo. Agora é tempo de tornar reais as promessas da democracia. Agora é hora de sair do vale escuro e desolado da segregação para o caminho iluminado da justiça racial. Agora é hora de retirar a nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de transformar a justiça em realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação não levar a sério a urgência desse momento. Esse verão sufocante da insatisfação legítima do negro não passará até que chegue o revigorante outono da liberdade e igualdade. Mil novecentos e sessenta e três não é um fim, mas um começo. E aqueles que creem que o negro só precisava desabafar e que agora ficará sossegado, acordarão sobressaltados se o país voltar ao ritmo normal. Não haverá nem descanso nem tranquilidade na América até o negro adquirir seus direitos como cidadão. Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir os alicerces do nosso país até que o resplandecente dia da justiça desponte. [exortação. Quem pode ficar insensível a uma exortação destas depois de saber qual é o problema?]
Há algo, porém, que devo dizer a meu povo, que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça: no processo de ganhar o nosso legítimo lugar não devemos ser culpados de atos errados. Não tentemos satisfazer a sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio. Devemos sempre conduzir nossa luta no nível elevado da dignidade e disciplina. Não devemos deixar que o nosso protesto criativo se degenere na violência física. Repetidas vezes, teremos que nos erguer às alturas majestosas para encontrar a força física com a força da alma. Esta nova militância maravilhosa que engolfou a comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todas as pessoas brancas, pois muitos dos irmãos brancos, como se vê pela presença deles aqui, hoje, estão conscientes de que seus destinos estão ligados ao nosso destino. E estão conscientes de que sua liberdade está intrinsicamente ligada à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder. [outro trecho brilhante pela forma como é inclusivo. Aqui MLK não só inclui os brancos na luta dos negros como também identifica algo superior e que transcende as preocupações de cada uma dessas comunidades e deve ser, na verdade, o principal motivo da luta: a liberdade baseada na justiça. Eu rendo-me]
(...)
[agora vem a parte mais célebre, a parte onde ele diz que tem um sonho. Consta que essa parte não vinha no texto original, que ele inclui-a porque Mahalia Jackson, a famosa cantora de gospel, e que estava ali pertinho gritou para ele: “fala-lhes do teu sonho Martin!”. Pode ser lenda. Esta parte aqui, mesmo para quem não entende inglês, só ouvida. Youtube tem. E o mais importante: o sonho que ele tem não é o sonho dos negros apenas; é o sonho americano]
Digo-lhes hoje, meus amigos, que, apesar das dificuldades e frustrações do momento, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho que um dia essa nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado da sua crença: “Consideramos essas verdades como auto-evidentes que todos os homens são criados iguais.” Eu tenho um sonho que um dia, nas montanhas rubras da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes de donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia mesmo o estado do Mississippi, um estado desértico sufocado pelo calor da injustiça, e sufocado pelo calor da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho hoje. Eu tenho um sonho que um dia o estado do Alabama, com seus racistas cruéis, cujo governador cospe palavras de “interposição” e “anulação”, um dia bem lá no Alabama meninos negros e meninas negras possam dar-se as mãos com meninos brancos e meninas brancas, como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje. Eu tenho um sonho que um dia “todos os vales serão elevados, todas as montanhas e encostas serão niveladas; os lugares mais acidentados se tornarão planícies e os lugares tortuosos se tornarão retos e a glória do Senhor será revelada e todos os seres a verão conjuntamente”.
Essa é a nossa esperança. Essa é a fé com a qual eu regresso ao Sul. Com essa fé nós poderemos esculpir na montanha do desespero uma pedra de esperança. Com essa fé poderemos transformar as dissonantes discórdias do nosso país em uma linda sinfonia de fraternidade.
Com essa fé poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ser presos juntos, defender a liberdade juntos, sabendo que um dia haveremos de ser livres. Esse será o dia, esse será o dia quando todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado:
Meu país é teu, doce terra da liberdade, de ti eu canto. Terra onde morreram meus pais, terra do orgulho dos peregrinos, que de cada lado das montanhas ressoe a liberdade! [genial! A referência é ao hino americano!]
E se a América quiser ser uma grande nação, isso tem que se tornar realidade. E que a liberdade ressoe então do topo das montanhas mais prodigiosas de Nova Hampshire. Que a liberdade ressoe das poderosas montanhas de Nova Iorque. Que a liberdade ressoe das elevadas montanhas Allegheny da Pensilvânia. Que a liberdade ressoe dos cumes cobertos de neve das montanhas Rochosas do Colorado. Que a liberdade ressoe dos picos curvos da Califórnia. Mas não só isso; que a liberdade ressoe da montanha Stone da Geórgia. Que a liberdade ressoe da montanha Lookout do Tennessee. Que a liberdade ressoe de cada montanha e de cada pequena elevação do Mississippi. Que de cada encosta a liberdade ressoe. [e de novo as lágrimas. Se estivesse a escrever isto como antigamente o papel estaria borrado]
E quando isso acontecer, quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e cada lugar, de cada estado e cada cidade, seremos capazes de fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra:
Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo Poderoso, somos livres, finalmente."
Não sei se dá para entender porque me preocupa que no meu país não insultar ninguém e falar complicado sejam critérios de qualidade para uma intervenção...
anoticia.clicrbs.com.br
Confira a tradução na íntegra do discurso feito por Martin Luther King há 50 anos
No dia 28 de agosto de 1963, ele discursou para cerca de 250 mil pessoas sobre seu sonho de ver uma sociedade em que todos seriam iguais sem distinção de cor e raça
Paulo Inglês
29 de julho ·
Inveja de Angola
( Elisio Macamo, 2021)
No desporto Angola foi sempre melhor do que nós. Só que nunca dei muita importância a isso porque sempre achei que fosse o reflexo duma definição defeituosa de prioridades (da parte deles). Há muitos anos fui convidado para dar uma palestra. Durante a minha estadia em Luanda, encontrei-me com um diplomata moze que me confessou estar orgulhoso por me ver lá. Disse-me que nos tempos da luta anti-colonial os angolanos tratavam os mozes com soberba porque se consideravam mais estudados do que eles. Ao que parece, isso sempre doeu aos mozes da Frelimo, por isso ver-me ali a falar para angolanos que me escutavam com atenção era uma coisa que lhe enchia de orgulho. Tomei nota mental para registar isso como a confirmação do meu palpite de que eles estavam a definir mal as suas prioridades.
É claro que a coisa não é assim tão linear. Deus pode ter sido injusto em muitas coisas, menos na distribuição proporcional de inteligência. Proporcionalmente, a Suíça ou os EUA não têm mais gente inteligente do que o Malawi ou o Congo. A diferença é sempre ao nível dos espaços que existem para que a inteligência se revele. Angola tem académicos de grande qualidade. Os anos de guerra não criaram condições para que essa intelectualidade evoluísse, talvez, com a mesma celeridade com que a moze evoluiu. Também a maior capacidade do MPLA de co-optar académicos pode ter contribuído para isso.
Em Moçambique, veio mais cedo a necessidade de os académicos se emanciparem do poder político porque as oportunidades e o tamanho dos benefícios não justificavam esse tipo de investimento. Isto são apenas hipóteses de trabalho. A questão do espaço que os intelectuais têm numa sociedade é muito importante para avaliar também a qualidade da política. Angola e Moçambique são casos de estudo muito interessantes (e intrigantes).
Há coisas, em Angola, que são surpreendentes no sentido positivo do termo. Uma, muito recente, foi a coragem que o Presidente da República teve de tentar sarar as feridas dum início doloroso da independência. Independentemente das insuficências do pedido de perdão pelo 27 de Maio, aquilo foi enorme. Como eu próprio insisto que devíamos fazer o mesmo em Moz o gesto angolano tocou-me profundamente. Ganhei respeito por João Lourenço que, confesso, não era assim tão grande quando vi os seus passos iniciais como Presidente. A esse propósito recordo algo que disse numa entrevista que concedi ao Gaspar Micolo do Jornal de Angola. Eu disse:
"[Não] acredito que Angola precise dum João Lourenço, se com isso nos referimos a um político voluntarista e mão forte. Com isto não quero desqualificar o que o vosso Presidente tem feito. Acho que foi o homem certo para suceder José Eduardo dos Santos e o que ele tem feito mostra também que ele tem consciência dos problemas do País e tem um interesse genuíno em os resolver. O problema é que muito do que ele tem feito revela o mesmo tipo de perplexidade que me parece característica dos nossos políticos também. Ele quer acabar com a corrupção, acha que o analfabetismo entrava o desenvolvimento e, ultimamente, decidiu embarcar numa campanha de moralização da sociedade".
E prossegui:
"Em Moçambique, o nosso Presidente também fala assim, porque pensa que a corrupção é uma questão de ausência de valores morais. Na verdade, muita corrupção resulta do excesso de valores morais! É porque quero ajudar aos meus amigos, familiares, colegas partidários, etc. que pratico o nepotismo, aceito subornos, etc. O corrupto não é, necessariamente, um indivíduo imoral. É um indivíduo que tem um sentido moral desarticulado, talvez com aquilo que algumas pessoas pensam que devia ser. O problema de insistir na moralização da sociedade é de incorrer no risco de transformar o País numa teocracia. Excesso de moral produz despotismo como a gente vê no Irão, na Arábia Saudita e, porque não, no Brasil agora".
Não é preciso ser vidente para recear que as coisas fossem correr mal em Angola com esse tipo de discurso político. Os terríveis problemas que Angola enfrenta agora reflectem a fragilidade do voluntarismo político como filosofia de liderança política. João Lourenço lembrou-me um pouco Guebuza que também foi voluntarista e tinha visão, mas não teve quem traduzisse isso de forma sistemática numa agenda política que articulava a promoção de princípios para a protecção de valores.
O que impediu Guebuza de fazer isso é o mesmo, quer me parecer, que impede João Lourenço de fazer isso também. Em ambos os países, a dominação da política por um partido político com forte tradição autoritária e que durante anos cultivou a ideia de que o alinhamento ideológico era mais importante do que a evidência factual (estou a simplificar as coisas) nutriu na classe intelectual uma cultura de subserviência ao que os próprios intelectuais pensavam ser a versão oficial das coisas. Isto atrofiou a criatividade ao mesmo tempo que privou a política da ousadia do pensamento.
Esta cultura intelectual misturou-se de forma explosiva com o instinto de ambos os partidos de preservação do poder a todo o custo dentro duma convicção nutrida por narrativas ideológicas que colocavam todo o pensamento diferente como algo malévolo e contra a pátria. A entrada em cena dum reformador (em Moz, Guebuza e em Angola, Lourenço) só pode fruir se o líder tiver a audácia de libertar os intelectuais (e se estes também tiverem a ousadia, claro). Caso contrário, cai-se vítima da pobreza do discurso de desenvolvimento (que pensa por nós). A ênfase que João Lourenço colocou no combate à corrupção revelou que ele tinha chegado ao fim, digamos, da sua imaginação.
Acresce-se a isto algo que é característico da Frelimo e do MPLA (na sua condição de partidos com cultura política autoritária). Quando há mudança na liderança, o pior inimigo não é o adversário político da oposição. É todo aquele que serviu o chefe anterior. Em Moz nunca existiram “Chissanistas” ou “Guebuzistas” senão na mente torturada de quem faz a sua militância num ambiente de subserviência ao discurso do momento. Tenho a certeza que quando o próximo vier, daqui a 4 ou 9 anos, não haverá mais “Chissanistas”, nem “Guebuzistas”. Só “Nyusistas” nesse círculo irracional de asfixia do debate.
Tal como em Moz, o poder em Angola continua a ser protegido por uma falange “intelectual” que age contra o seu próprio interesse no sentido em que a sua intervenção é quase sempre para asfixiar a liberdade do pensamento. Em Angola, como em Moz, faz-se um investimento enorme para revelar a maldade no que um intelectual diz do que para ver o que se pode aproveitar nisso.
A questão até nem é de esperar que os intelectuais tenham a ambição de governar, um pouco no espírito da exortação platónica de reis-filósofos. Nenhum país precisa de governantes filósofos/intelectuais. A história mostra, aliás, que são muito poucos os países que prosperaram porque foram governados por intelectuais. De resto, a ambição dum intelectual de verdade nunca é de governar. É, sim, de influenciar, positivamente, os governantes.
E essa influência não se exerce necessariamente como assessor oficial dos governantes. Exerce-se no exercício da cidadania. Os países que prosperaram são os que tiveram governantes que souberam criar espaço para que as ideias dos intelectuais fossem ouvidas. Em Moz (e receio em Angola também), a tendência é quase sempre de ter governos que promovem o tipo de intelectuais que apostam em convencer os seus governantes que eles (os governantes) são os verdadeiros intelectuais. Escrevo este reparo ainda na ressaca das aspas que o nosso Presidente colocou na palavra estudiosos no seu discurso à nação. Aquilo foi, de certeza, obra de “intelectuais”.
Mas há uma razão muito importante por detrás da inveja que tenho de Angola. Vi uma entrevista recente do líder da UNITA, Adalberto Costa Júnior, à RTP África. Impressionou-me bastante a sua lucidez, o seu discurso bem estruturado e articulado, mas também a sua ponderação. Moz não tem o privilégio dum político da oposição desta qualidade. E isto não é porque não haja gente capaz nos vários partidos que temos.
É porque não existe espaço para ela, mas também porque a qualidade da política é baixa. Para Angola ter um político da oposição como aquele é porque, de alguma maneira, a sua política tem mais qualidade, apesar de tudo quanto disse anteriormente. Em Angola não pode haver voto imbecil porque, ao que tudo indica, parece existir alternativa. Li também que os partidos da oposição se juntaram para fazer frente ao MPLA, algo impensável em Moz hoje.
Como é da praxe para um simpatizante da Frelimo (e, por isso, também do MPLA) como eu sou, não nutro simpatia política pela UNITA e, ainda que possa parecer incoerente, espero que o MPLA ganhe as próximas eleições. Só que para isso acontecer o MPLA vai ter de criar condições para que a oposição seja mais forte ainda e, por via disso, aumente ainda mais as suas próprias hipóteses de ganhar.
É uma situação curiosa. É como se alguém tivesse que cavar a sua própria sepultura para não morrer. Mas se o Presidente Lourenço está de facto comprometido com a sua agenda de transformar a cultura política do seu país (e não acabar com a corrupção) não tem outro remédio senão se distanciar de todos aqueles que asfixiam a liberdade de pensamento e promovem a unanimidade. Ele vai ter de acarinhar ainda mais a oposição, pois a força desta será também a sua força.
Eu fico com virtigens quando vejo Angola com João Lourenço e Adalberto Costa, dum lado, e vejo Moz com Nyusi e Momade, doutro lado. E não é por falta de melhor em Moz. Nem é mesmo porque os nossos não prestem. Claro que prestam. Mas eles precisam mais duma massa crítica de qualidade do que parece ser o caso dos angolanos. E não a têm, não a nutrem ou simplesmente apostam no que de mais medíocre existe num País que se orgulha de ter produzido muita mente brilhante.
Ir à Angola para mim hoje é um martírio, já não é motivo de orgulho. Como posso brilhar quando os políticos que me governam não têm qualidade?
Elisio Macamo
17 de abril de 2013 ·
Mais um texto longo para quem não tem mais nada a fazer na vida. Não haverá palmas para quem ler até ao fim (e perceber). Afinal, lê-se por gosto.
Gosto e não gosto de Simango
Já disse que sou fã de Guebuza. Afirmei vivamente que ele é muito melhor do que a sua reputação. Mantenho a minha preferência e mantenho o meu posicionamento em relação a esse grande político tão pouco entendido. Afirmei também que admiro Dhlakama. Não sou seu fã, mas admiro-o. Disse isso também por conveniência, pois até às próximas eleições ainda posso receber benefícios de Guebuza. Espero que ele esteja a ler. É uma aposta arriscada que estou a fazer. Como ele chega ao fim do seu mandato a Frelimo vai ter um outro candidato que, possivelmente, não me vai perdoar estas declarações de amor. Daí a distribuição do risco com a manifestação de admiração por Dhlakama. Nunca se sabe. Mas porquê Dhlakama e não Simango, o da Beira? Boa pergunta. É jovem, dinâmico, corajoso e trabalhador. Moçambique é um país de jovens, tem uma certa dinâmica, os corajosos estão fora da Frelimo e os trabalhadores não têm tempo de trabalhar porque têm que colocar mais um “like” em mais uma opinião cansada sobre o “país do pandza”. Se calhar não é aconselhável ficar de costas cruzadas com Simango.
Então, aí vai mais uma confissão: gosto dele. Gosto dele por várias razões. Gosto dele porque é um homem forte. O tipo de biografia que ele tem, marcada pela extrema injustiça que foi cometida aos seus pais – e que para o bem da consciência deste país devia ser esclarecida duma vez por todas – teria quebrado qualquer outra pessoa. Uma pessoa que não extrai o rancor duma biografia tão trágica, mas sim a força de lutar por algo – seja qual for que seja – é uma pessoa forte. Mas não só isso. Simango teve a coragem que falta a muitos jovens da Frelimo que preferem viver à sombra dos feitos das outras gerações e não se sublevam. É claro que estando do lado da equipa que ganha não têm nenhuma necessidade de se sublevarem. Simango foi iconoclasta; “cuspiu”, por assim dizer, na mão que o alimentou e encenou uma “revolução” – acho curioso o uso deste vocábulo quando vem de pessoas que estão sempre a falar mal do comunismo – que confinou a Renamo à insignificância política.
Repito: Guebuza não é o principal problema da Renamo. Simango e MDM, sim. Simango e MDM é que são os autores morais de Muxúngué. Antes que me caia por cima um “shit-storm” (não vou traduzir isto, há crianças que lêem os meus textos) apresso-me a esclarecer. É claro que Muxúngué é obra dos homens armados em torno da Renamo. Mas quem precipitou a Renamo para um discurso belicista e intransigente foi Simango e o seu MDM. Naturalmente que nem Simango, nem o seu MDM se deviam preocupar com a sorte da Renamo, pois os primeiros têm objectivos por alcançar enquanto formação política e os últimos sâo suficientemente crescidos para lutarem por si próprios. É como esperar que a Frelimo perca propositadamente as eleições em prol da democracia. Não faz sentido. Gostei da iconoclastia de Simango. Impressionou-me.
Mas como se diz por aí, não há bela sem senão. E é por isso que também não gosto dele. Posso dizer isto à vontade porque – embora não possa garantir nada, a sociologia não ajuda em vaticínios desta natureza – não é tão já que ele vai ser Chefe de Estado, logo, não posso apostar nele o meu sonho de um dia vir a ser governador de Gaza, embora até possa imaginar que acontecendo o improvável ele queira punir as gentes de Gaza colocando um sociólogo que da vida nada entende – só escreve textos longos – a dirigir os destinos da sua província. Mas isso são apenas lucubrações. E o responsável por essa improbabilidade é ele mesmo. A sua “revolução” foi um golpe baixo na oposição e comprometeu seriamente a reconstrucção dum espaço político alternativo à Frelimo. Neste ponto estou a inclinar-me muito para fora do parapeito, mas vamos ver – e é melhor vermos, pois o “shit-storm” não vai tardar. Houve, em minha opinião, dois equívocos fundamentais nessa tal revolução. O primeiro, tipicamente moçambicano, foi de confundir competência técnica com maturidade política. Eneas Comiche foi vítima deste equívoco em Maputo, não foi, como se costuma falar por aí, vítima dos “camaradas”. Isto não significa que um técnico não possa ganhar eleições, ainda mais no contexto da cidade da Beira que tem uma sociologia típica de “segunda maior cidade”. A pirraça desempenha um papel muito importante nesse tipo de sociologia, estilo teimosia do irmão mais novo. Sem o escudo protector de Dhlakama, animal político por excelência, Simango teve que ir à contenda e logo vimos as tribulações do MDM com cisões, acusações e costas viradas. Algumas das pessoas mais hábeis – tipo Ismael Mussá – afastaram-se agastadas. Não vale chamar-lhes de “ambiciosos” ou “confusos”. O problema foi simplesmente político, precisava duma gestão política dum indivíduo cujos créditos andavam mais para o lado técnico.
O segundo equívoco, também muito moçambicano, mas muito mesmo, foi o de pensar que ser contra alguma coisa constitui por si só um programa político. E aqui vejo-me mesmo a chafurdar no “shit storm” porque vou entrar em rota de colisão com gente que domina a arte do insulto. Refiro-me ao jornal Canal de Moçambique que tem representado o lado, digamos, pensante do MDM que muito provavelmente vai retorquir com um texto intitulado “não gosto de E. Macmao” ou coisa parecida. Já nas últimas eleições peguei nos manifestos dos diferentes partidos, incluíndo o do MDM, e não encontrei em nenhum deles algo que apontasse para um programa político bem articulado e, já agora, alternativo. Mesmo hoje quando se pega nos escritos dessa gente, quando se escuta os seus pronunciamentos públicos não existe a sombra duma maneira fresca de pensar o país. O que dá substância ao posicionamento político dessa gente é a crítica à Frelimo, crítica essa que é muito fácil de fazer, pois só não erra quem não trabalha.
Nunca vi nenhuma posição de fundo em relação ao combate à pobreza, porque ele deve ser feito, com que tipo de Moçambique na mira, nada. Nem mesmo na questão quente que diz respeito aos recursos se ouvem coisas frescas e refrescantes. O discurso é sempre o da crítica ao enriquecimento das elites – das quais alguns deles também fazem parte – e de deplorar que a riqueza não esteja a chegar ao povo. É tudo previsível e extremamente cansativo. Claro que há dois argumentos que eles podem usar em sua defesa. Um pode ser de dizer que essa é a função da oposição. Sim, mas noutros países civilizados a oposição critica o governo a partir dum projecto político claro. Esse projecto é que enforma a crítica. Alguém sabe me dizer qual é o projecto político do MDM? O outro argumento pode ser da falta de quadros para esse efeito. Sim, com o apetite voraz da Frelimo sobram poucas mentes esclarecidas para a oposição, mas nem isso é verdade. Alguém alguma vez já ouviu que um partido da oposição encomendou ao IESE, por exemplo, um estudo sobre protecção social para poder formular uma política sobre o assunto?
Então, na verdade, Simango não criou o MDM. O que ele fez foi comprometer a emergência duma alternativa à Frelimo por muitos anos. É claro que a Frelimo, pela sua própria actuação, pode acabar criando espaço para que os “déficits” evidentes da nossa oposição não se constituam como grande obstáculo para si própria (refiro-me à oposição). Lançou-se impetuosamente numa aventura que não tinha pernas para andar por ausência de competência política e, acima de tudo, por ausência de projecto político que não fosse apenas o discurso do “contra”. Contra Dhlakama, contra a Frelimo, contra tudo que não é Beira. O estilo agressivo adoptado pelos orgãos do MDM – refiro-me ao Canal de Moçambique, o qual, contudo, tem assumido por vezes uma postura crítica em relação ao que ocorre no interior do MDM – vai disfarçando estas insuficiências, sobretudo para quem olha com pouco cuidado, o que, infelizmente, também é característico da nossa esfera pública. O lado intelectual do MDM – que falhou redondamente, do ponto de vista político, na domesticação de Dhlakama – é uma mistura incongruente de radicais, cristãos de ânimo carismático, pessoas que acreditam que não gostam do comunismo, mas acima de tudo, de gente visceralmente oposta à Frelimo que aparentemente nunca teve tempo de sobra para formular um projecto político próprio e coerente. Quando digo que não gosto de Simango quero dizer que não gosto do facto de ele não ter dado tempo ao tempo e, num projecto de longo prazo, tentar transformar a Renamo por dentro através da elaboração paciente dum projecto político. Ele viu a sua oportunidade na Beira, deu ouvidos a gente impetuosa – a tal massa amorfa que faz muito barulho na nossa esfera pública, incluíndo aqui no Facebook – e mergulhou de joelhos dobrados na piscina sem se preocupar com a sorte da alternativa à Frelimo.
Sou capaz de estar a ser injusto para com ele. Os seus adeptos que façam uma nota mental agora para se lembrarem de mim – para aplicação de devidas medidas – quando, contra todas as probabilidades, ocuparem a Ponta Vermelha. Eu se fosse da Frelimo nem havia de querer imaginar o que seriam as próximas eleições se Simango, depois dum árduo trabalho de reorganização da Renamo, com o endorso de Afonso Dhlakama fosse o candidato principal da oposição para uma contenda com uma Frelimo em crise de sucessão. Os meus joelhos, de tanto chocalharem, haviam de fazer tanto barulho que agentes da PIC, excepcionalmente, pegavam em mim para interrogatório com tortura psicológica por perturbar a postura contra a poluição sonora e deixavam em paz quem mais necessidade política tem desse tipo de interrogatório. A oposição em Moçambique morreu no dia em que se criou o MDM. Vai ressuscitar, só que até lá passarão anos enquanto transformamos o espaço político num campo de treino de bombeiros apagando fogos em Muxúngué, entretendo-nos com acusações (reais, diga-se de passagem) de impedimento de acção de partidos políticos lá, como costuma dizer Ivone Soares, onde Judas esqueceu os seus sapatos, e, claro e sem falta, transformando a indisciplina natural e a falta de respeito da nossa polícia e da nossa função pública (que somos nós mesmos) num conluio gigantesco da Frelimo contra quem não se cala perante tanta injustiça...
Não vou resumir, mas oportunamente terei um teste americano para quem se queira certificar do que quero dizer. Inbox, please. Vou apenas dizer que aqui também proponho uma sociologia política que olhe para a estruturação do campo político e como ele pode ser radicalmente transformado – para o bem e para o mal – pelo sentido de oportunidade de certos actores políticos. É na ignorância dessa sociologia política que surge um espaço de actuação míope radicado na insistência sobre assuntos interessantes, mas supérfluos para o devir do nosso país. Trata-se duma miopia que, acima de tudo, faz vista grossa à ausência duma concepção política própria e exagera um desempenho técnico de valor estatístico dúbio. Refiro-me especificamente aos municípios da Beira e de Quelimane que no debate público são usados como exemplo do melhor desempenho da oposição, olvidando-se o facto de que se compara, provávelmente, os melhores jogadores da oposição com os suplentes (as minhas desculpas aos edis da Frelimo...) do governo. Mas isto é início de nova discussão... só que é mesmo para isso que estamos aqui.
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Elisio Macamo
3 de abril de 2023 ·
O meu futuro discurso inflamado
No dia em que for finalmente uma figura política e for convidado para uma conferência internacional sobre a mecanização e valores universais em São Petersburgo, na Rússia, para representar os povos oprimidos de África, vou dizer o seguinte:
“Companheiros internacionalistas,
Valentes combatentes por uma nova ordem multipolar,
Há dias, a USAID, a agência americana que continua a perpetuar a nossa dependência dum mundo capitalista injusto, organizou um seminário em Xai-Xai, minha terra natal. Esteve presente o Secretário de Estado americano para a agricultura que falou da importância da mecanização.
É preciso entender isto muito bem: Um país que se desenvolveu à custa do trabalho escravo de africanos levados à América contra a sua vontade – e sem a participação de nenhum africano porque os culpados são sempre os outros – vem hoje à África falar-nos de mecanização!
Um país que apoiou regimes coloniais que enriqueceram à custa do trabalho forçado sem máquinas, só a nossa energia natural, vem hoje nos ensinar a mecanização!
Um país que desenvolveu a sua indústria automóvel usando pneus fabricados com cautchuk extraído por um Rei belga sanguinário num regime de trabalho que tem na sua consciência 10 milhões de vidas de congoleses para além da crueldade manifestada através do acto de decepar os membros superiores daqueles que não atingiam as metas de produção, tem hoje a lata de nos falar dos méritos da mecanização!
Um país que ao lado dos seus aliados na Europa capitalista beneficiários duma economia mundial vivendo da exploração desenfreada dos nossos recursos agrícolas, vem hoje se apresentar como apóstolo do nosso progresso através da mecanização mesmo sabendo que milhões de africanos vivem na pobreza, uma pobreza causada pelos termos de trocas que nos são impostos!
Eu quero dizer aqui, perante esta magna assembleia dos justos e solidários, que a África não vai aceitar essa hipocrisia. Nós conhecemos a nossa história. Nós sabemos quem é responsável pelo nosso sofrimento. Nós sabemos com quem podemos contar na nossa longa caminhada rumo ao progresso.
A Rússia, com a sua valiosa experiência de colectivização da produção agrícola mesmo se isso na Ucrânia levou à morte de quatro milhões de pessoas de fome – mas como foi na Ucrânia eram na sua essência nazistas – no famoso “holodomor” é um exemplo a seguir.
Todos os caminhos para quem quer garantir três refeições ao seu povo vêm dar à Rússia, país onde graças à visão do seu líder incontestável e visionário, Vladimir Putin, mostrou por A mais B que a mecanização, quando feita na base da opressão do próprio povo por um estado que se desenvolveu também pela escravatura abolida três anos antes da abolição da escravatura nos EUA, é melhor e merece ser seguida como exemplo.
Eu, como africano que abraçou a política para mostrar ao mundo porque razão a África não se desenvolve por culpa dos outros, vou demonstrar a minha soberania conduzindo veículos automóveis ocidentais não por serem melhores, mas para que todo o mundo veja como o ocidente nos aliena com a sua cultura burguesa. O nosso povo, depois de séculos de exploração capitalista, não está preparado para abraçar a mecanização, também porque se os projectos financiados pelo ocidente começarem a investir mais em máquinas vai sobrar pouco dinheiro para os gestores de projectos comprarem 4X4 para melhor falarem da pobreza do povo.
Há muitas coisas que precisam de ser feitas para lograrmos o mundo que queremos. Um mundo mais justo, mais equitativo, mais pacífico é possível, mas não vai cair dos céus que têm a côr azul dos olhos dos nossos opressores. Temos de falar constantemente da maldade deles mostrar que se hoje precisamos de mecanização é porque eles no passado não nos deixaram ter agricultura mecanizada.
E como disse Alexander Chayanov, esse economista agrário reaccionário executado por ordens de Stalin e Motolov por ter dito que as empresas estatais não iriam funcionar porque os agricultores familiares preferem produzir para si próprios, “Uma cooperativa é uma empresa económica constituída por vários indivíduos voluntariamente associados, cujo objectivo não é obter o máximo lucro do capital investido, mas aumentar os rendimentos derivados do trabalho dos seus membros, ou reduzir as despesas destes últimos, através de uma gestão económica comum....”.
Vamos ser essa cooperativa dos indignados da terra!
Muito obrigado"
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Elisio Macamo
24 de agosto de 2020 ·
Andar devagar
Esta manhã tive uma reunião estimulante com colegas alemães a quem me juntei para elaborar um programa de pesquisa sobre alguns dos conceitos que fizeram o mundo. A minha contribuição vai ser um estudo sobre o conceito de desenvolvimento que antes se chamou progresso e antes disso civilização. Com a minha agregação em sociologia do desenvolvimento, tenho uma relação especial com esse conceito, sobre o qual tenho reflectido e trabalhado. Uma coisa que me incomoda na maneira como esse conceito é tratado na academia, mas também na prática, é a suposição segundo a qual ele descreveria um ponto de chegada inevitável sendo para isso necessário que se façam certas coisas tidas como infalíveis. Infelizmente, nem a história dos que hoje são desenvolvidos, muito menos a nossa confirmam esta suposição. Ninguém sabe dizer como se chega lá, por isso toda essa indústria intelectual e prática que anda por aí é coisa de impostores.
Há muito lugar-comum que passa por profundidade analítica na abordagem do assunto. (In)Felizmente, Moz dá-me uma excelente oportunidade de reflectir sobre o desafio que o desenvolvimento nos coloca com exemplos concretos. Seria fácil, por exemplo, olhar para Cabo Delgado, para as agressões a jornalistas, intelectuais e activistas como prova do tipo de atitude que não pode levar ao desenvolvimento. Isto é, a intolerância, a má governação e a falta de respeito pela liberdade de expressão e de imprensa podem ser usadas para “explicar” porque Moz estaria a regredir. Dito doutro modo, os nossos governantes não estariam a fazer o que é certo para desenvolverem o País. Não me parece ser o caso. Algumas pessoas que, hoje, condenam o vil ataque ao semanário Canal de Moçambique defendem, quando em civil, regimes como o do Ruanda, líderes como o ditador russo, Putin, sistemas políticos como o cubano, chinês, etc. por acharem que eles produzem resultados. O raciocínio é o seguinte: de que vale a liberdade de expressão sem comida, saúde e educação?
Essa é a lógica do desenvolvimento, mesmo quando os seus promotores defendem a democracia, direitos humanos e liberdades. Olham para isso de forma instrumental. Seja quem for que estiver por detrás dos males que cada vez mais nos assolam no País, essa pessoa pensa que está a trabalhar para o desenvolvimento de Moçambique. Pensa também que quem não vê, nem aprecia isso, é contra o desenvolvimento e, portanto, está contra o desenvolvimento e tem de estar também contra quem faz estas coisas. Entender o que se passa em Moçambique passa por, primeiro, entender a moral perversa da lógica do desenvolvimento e, segundo, resistir à tentação de reduzir as coisas às más intenções das pessoas. Nyusi não quer que Cabo Delgado, que o assassinato do Matavele, que o atentado contra o semanário, etc. aconteçam. Eu acredito que ele esteja contra e que se sinta mal quando isso acontece. O problema é a sua relação com quem faz isso por achar, por exemplo, que cada uma dessas acções sirva para levar adiante o projecto de desenvolver o País. Há muito tempo que venho dizendo isto, por exemplo, desde o conjunto de textos sobre “o poder da Frelimo”. Quando impera a lógica do desenvolvimento, mesmo o desvio de dinheiro público para fins individuais pode ser justificado pela necessidade de desenvolver o País fortalecendo o partido no governo (ou os seus membros) já que só eles é que sabem como levar o País até lá.
A concentração na famosa agenda do desenvolvimento (com discursos inúteis sobre a corrupção e boa governação – infelizmente macaqueados pelas OSC – luta contra a pobreza, etc.) é para mim o que explica as coisas más que acontecem. Impede o governo e a própria sociedade de prestarem mais atenção ao que realmente importa quando se constroi um País, nomeadamente a protecção da dignidade humana através da promoção da cidadania. A agenda do desenvolvimento obriga-nos a correr e nessa corrida a dignidade que é tão essencial à nossa vida passa a ser um mero “nice to have” (bom para ter, mas não absolutamente necessário) que pode ser sacrificada sempre que o interesse “maior” do desenvolvimento se impuser. Pouco importa se não há nenhuma garantia de que chegaremos lá. Nem pode haver, pois cada situação é fonte de várias outras situações de difícil previsão. É por isso que mais do que apostar numa ideia de desenvolvimento baseada na ilusão do controlo (ceteris paribus), a aposta em Moz devia ser na criação de condições para que possamos dar outro passo sabendo, naturalmente, que cada passo dado abre infinitas possibilidades. Estas condições não são materiais. São políticas e têm como alvo principal a protecção da dignidade de cada um de nós.
Ser Chefe de Estado em Moz é isto. Não é inaugurar hospitais, escolas, aterros sanitários, etc. Isso é “nice to have”. O essencial, o absolutamente necessário, é a criação de condições para que em tudo o que fazemos salvaguardemos a nossa dignidade através da promoção da cidadania. Na verdade, é aqui onde a gente vê a miséria da nossa cultura política. Todos querem resolver os problemas materiais do povo, mas dum modo geral olham para a dignidade e a cidadania como obstáculos. Podem não dizer isso, mas na prática é assim. Quem detém o poder hoje é o Presidente Nyusi e, por isso, podemos ver como ele está a claudicar. Só que ele claudica onde outros também claudicaram e iriam claudicar se tivessem a oportunidade. Desde o seu primeiro mandato que ele se tem furtado a esta agenda, mas tudo na melhor das intenções porque ele está preocupado com o desenvolvimento...
Quando assumiu o poder em 2015 definiu a paz como uma das suas prioridades e, para esse efeito, fez o que achou necessário, isto é negociar com a Renamo. Só que aquele conflito não se resumia a isso. Era um conflito cujo pano de fundo era o respeito pelas instituições, a inclusão política e a distribuição de oportunidades. Isso exigia a participação de todos e a protecção de qualquer solução que garantisse maior promoção da cidadania. O que ele fez? Colocou Secretários de Estado para contrariar a vontade do povo e hoje para além de gerir o problema que ainda não terminou tem que gerir o novo problema de SE e Governador. A polícia nacional, através dos seus agentes, envolveu-se em crimes hediondos. Nem uma palavra dele sobre isso, nem uma única iniciativa que revele preocupação com uma melhor polícia e necessidade de depuração de fileiras. De Cabo Delgado nem falo, com a agravante de que ultimamente, ao invés de focalizar as atenções no problema, procura por bodes expiatórios, tipo Bispo de Pemba ou aquela ideia fantástica de que são pessoas que querem explorar as nossas riquezas... Mais uma vez, a agenda do desenvolvimento pesa mais do que a agenda da promoção da cidadania.
Repito, não é por maldade ou intenção de “destruir” o País. Tudo isto acontece na melhor das intenções. A agenda do desenvolvimento cega. Os problemas que nascem do nosso esforço de desenvolver são simplesmente ignorados naquela de que, com o desenvolvimento, eles serão resolvidos. É um equívoco. Essa agenda obriga-nos a correr quando devíamos interiorizar a ideia de que devagar se vai longe. Apostamos na técnica e não na política porque queremos resultados (materiais) rápidos. Os seus companheiros partidários não o podem ajudar porque também estão reféns desta lógica do desenvolvimento. É aí onde se manifesta aquele medo de errar que descrevi há dias. O desenvolvimento requer um governo infalível. Um governo infalível, por definição, não erra. Se erra, não errou, os críticos é que não sabem bem ver ou estão contra. E, por isso, investe-se mais na procura de críticos e sua “neutralização”.
Nem tudo está perdido. Já três personalidades de peso se pronunciaram sobre isto: Oscar Monteiro, Rui Baltazar e, recentemente, Lourenço do Rosário. Não deviam fazer isto de forma isolada. Devia ser uma acção conjunta de resgate da Frelimo duma lógica de poder perniciosa. Pode parecer desonesto dizer isto, mas não é este o tipo de País que corresponde aos valores que motivam os membros e simpatizantes da Frelimo. Mas mesmo que o governo não tenha nada a ver com o atentado contra o semanário, ele acontece porque existe um ambiente político que protege os bandidos. O silêncio persistente do Presidente faz parte desse ambiente político. Mas, prontos, eu entendo. Ele está ocupado a desenvolver o País. Cabo Delgado que arda, jornais que desapareçam, activistas que sejam mortos por agentes policiais, enfim, os que sobrarem vão desfrutar o desenvolvimento...
Elisio Macamo
17 de novembro de 2023 ·
O Bispo e a modéstia
A modéstia é uma das maiores virtudes que um prelado pode ter. Faz parte do ritual que acompanha o trabalho dum sacerdote ensaiar sempre essa modéstia. É fácil porque todos os prelados sabem que têm para além de toda a hierarquia eclesiástica o seu Deus, aquele ente a quem devem devoção e obediência. Uma boa parte da ética que define a religião decorre desta relação com esse ente e é assegurada pela virtude da modéstia.
Em princípio, o mesmo devia valer para quem está na política. O seu “Deus” é o povo, por assim dizer. Não necessariamente o povo em forma de pessoas reais, mas sim povo no sentido de algo simbólico que resume o propósito duma determinada comunidade política. A expressão “o povo é meu patrão” recupera esta ideia de forma simples, mas prenhe de significado. Quando ela foi pronunciada, parecia que ia inaugurar uma nova era política no país. Esperava-se que fosse ser caracterizada pela modéstia de quem detém o poder. Lamentavelmente, ficou-se por aí por razões que têm a ver com a cultura política do partido no poder – fortemente messiânica – mas também por razões mais gerais relacionadas com um defeito de natureza intelectual.
À semelhança do contexto religioso, a vida académica exige também a virtude da modéstia e tem, até, um nome próprio: modéstia intelectual. Esta virtude não decorre da existência dum ente superior – Deus ou povo. Decorre do reconhecimento da nossa falibilidade como humanos. A academia não é um espaço de certezas. É de constante interpelação porque conhecimento no verdadeiro sentido da palavra não é aquilo que sabemos, mas sim aquilo que sabemos que não sabemos. Essa é a ideia por detrás do que o historiador maliano, Hampaté Ba, queria dizer quando afirmou que só pode saber aquele que sabe que não sabe. É quase paradoxal: quanto mais sabemos, mais conscientes ficamos da nossa própria ignorância.
Não é fácil, claro, respeitar esta virtude (eu que o diga!). É uma constante luta pessoal porque a participação na esfera pública se faz também a partir da partilha daquilo que pensamos saber. Não sei como é com os outros, mas eu tenho imensas dificuldades em emitir uma opinião sem primeiro ter lido com alguma atenção aquilo que outros melhor informados ou mais abalizados do que eu escreveram sobre o assunto. Perco mais tempo a fazer isso do que propriamente a escrever um texto para as redes sociais. Tenho recusado várias entrevistas televisas porque os convites me são feitos no mesmo dia e eu sinto a necessidade de ler para organizar melhor as ideias. Não me refiro à leitura sobre o assunto em questão. Refiro-me às ideias com base nas quais os especializados na matéria abordam assuntos dessa natureza.
Muitas vezes sinto-me frustrado quando tenho que discutir com pessoas que não parecem revelar consciência dos limites do seu próprio conhecimento, pessoas, portanto, com coragem de se perguntarem o que precisariam de saber para não só entenderem o que alguém escreve como também para emitirem a sua opinião com algum grau de certeza. Há quem veja nisto arrogância, mas não é. É aquela coisa de esperar que quem discute connosco também tenha o privilégio de se ter devidamente informado.
Isto é tanto mais importante quanto hoje em dia existe a tendência de emocionalizar os debates. Isso acontece mesmo dentro da academia onde com mais ou menor frequência se pode chegar ao ponto de se achar que emoções ou certas posições epistemológicas conferem validade a seja o que for que a gente disser dentro do seu espírito. É um vício grave que se repercute na esfera pública com gente que pode até mover campanhas contra certos indivíduos na base de convicções apenas. Isso faz mal à comunidade política.
Agora, esta atitude é ainda mais grave quando caracteriza o comportamento e a postura de quem governa. Aqui já não se trata exactamente de modéstia intelectual, mas sim duma das suas manifestações, nomeadamente a modéstia política. É aquela certeza de que o que eu penso é correcto e aquele calor que sinto quando encurralo alguém numa discussão política junto com o espanto que sinto pelo “facto” de os meus adversários políticos serem assim tão parvos, desorientados e, sim, maldosos. O contrário da modéstia política é a arrogância política, isto é a polarização, a intolerância, o Maniqueísmo e a forte convicção de que eu estou certo e os outros estão completa e irremediavelmente equivocados. E, claro, tudo isto é humano.
O nosso país atravessa um momento extremamente difícil. A violência contra o Estado no norte não dá sinais de estar controlada; o CIP publicou dados alarmantes sobre o dinheiro que se está a gastar com esse esforço de defesa do país (as futuras dívidas ocultas); os dados sobre o desemprego derrubariam qualquer governo num país com um sistema político funcional; os índices de pobreza envergonham se vistos sob o pano de fundo daquilo que já tinha sido conquistado; e, claro, temos a total descredibilização das instituições. Nenhum governo, sozinho, pode lidar com sucesso com estes desafios. E isso não é necessariamente por incompetência. É porque os problemas são estruturais e ultrapassam aquilo que um governo, sozinho e sem ouvir outros, pode realmente fazer.
O aparente investimento para fazer passar a ideia de que a Renamo, por exemplo, não é a solução por causa do seu passado bélico, é a mensagem mais errada que poderia ser comunicada neste momento. É apenas manifestação da proverbial arrogância política. A modéstia política manifesta a empatia, a capacidade de prestar atenção às razões que os outros dão para pensarem ou fazerem certas coisas, o hábito de dar crédito ao que os outros contribuem numa discussão e, naturalmente, a capacidade moral para ter consideração pelos outros, tudo virtudes que não se coadunam com a arrogância política. Quem se comporta desta maneira beneficia, pois passa a se conhecer melhor e avaliar as suas capacidades.
Se fóssemos governados por gente séria comprometida com o bem de todos, neste momento estaríamos a ver movimentações para a criação de condições para uma maior concertação social. Embora os nossos problemas neste momento decorram do estado deplorável da Frelimo, o futuro imediato do país não depende de se consertar o que está errado com esse partido. Depende de os seus dirigentes terem o bom-senso de reconhecerem que é preciso consertar o país por e com todos.
Só que apenas vê isso quem se guia pela modéstia política. Esse bicho não existe nos corredores onde se exerce o poder em Moçambique. E, por isso, estamos lixados. E bem mesmo!
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Dereck Mulatinho
17 de março de 2023 ·
CELSO, FDC E O COMO PODEMOS AJUDAR?
Tenho dúvidas, não sei como caracterizar o fenómeno e muito menos suas causas.
Quer me parecer que andamos todos, nos extremos, que nem baterias com polos muito negativos de um lado e polos muito positivos doutro. Pode ser que o ressentimento esteja a crescer no nosso seio, pode ser que seja do contexto eleitoral que atravessamos ou até pode ser pelo preconceito existente, mas disfarçado nas suas diversas modalidades.
Certo ou errado, conhecidas ou não as causas, começa a ser praticamente difícil conversar sobre o que quer seja. É praticamente impossível dizer A e não ser social e politicamente cancelado pelos que acreditam que deveria ser B.
Bem ou mal, não há nada útil nos extremos se não, distracção de massas. Qualquer indivíduo, grupo ou sociedade que disso tenha ciência, explora maximizando o impacto dos polos para consecução de objectivos muitas vezes, inconfessáveis. É assim como vincaram os argumentos das bombas de destruição em massa, protecção de terroristas, subjugação de povos a regimes antidemocráticos, acabar com nazistas e ou desrespeito pelos tratados internacionais para invadir nações ou territórios, há sempre um polo, um extremo que é insuflado ou pelo medo ou pelo ódio.
Tendo dito isto e tendo estabelecido essa base, devo dizer que participei do encontro onde foi divulgado os "Relatório de Segurança Alimentar Pós-colheita de 2022".
Para além do que ouvimos e sobre o que foi explicado, foram ditas outras coisas que julgo que não deveriam merecer tamanha distracção, e isto, deve no meu entender ser feito longe dos holofotes do preconceito e do contexto da polarização, não ganhamos nada com isso.
Foi dado como exemplo, a existência de Organização internacionais que cooperam com o país e financiam directamente às populações contudo, no final, quando se vai ao terreno, os resultados contrastam com o valores financeiros envolvidos e com o objectivo final, transformar positivamente vidas. Como exemplo, foi utilizado como base os custos administrativos das ONG comparativamente aos custos com o financiamento ao beneficiário final.
Para o ponto acima, devo confessar, que não é a primeira vez que ouço coisa parecida.
Ouvi da boca de um Representante da Assembleia da República, membro bem posicionado, o exemplo das Petrolíferas e até da Sasol que têm montados suas estruturas e escritórios em Maputo, mas com operações em Inhambane ou Cabo Delgado.
Algumas destas empresas, porque têm suas sedes em Maputo também têm seus domicílios fiscais em Maputo, consomem mais serviços de Maputo ou chegam até a ter quartos em hoteis em Maputo no lugar de ter em Inhambane ou Cabo Delgado ou até de construirem infraestruturas que durem além do prazo do seu investimento nos locais onde estão a explorar nossos recursos. Pode parecer pouca coisa, mas tem impactos no nível de percepção das comunidades onde essas empresas actuam e nas economias locais.
Como estudante de ciências económicas e defensor do liberismo económico, essa conversa interessa muito mais do que discutir bases estatísticas cujo ónus, erros e omissões técnicas devem ser atribuídas ao INE e ou ao IPC.
Agora, verdade se diga, é tarefa do INE e das Academia nacional encontrar melhores indicadores sociais e que incluam hábitos e costumes culturais com impactos quer na segurança alimentar, quer nos índices de Pobreza real e percebida.
Feito este parênteses, e para já, era importante apontar que seria útil dizer ao Ministério da Agricultura coisas como, muito bem, já temos a primeira base, melhorem os aspectos metodológicos como os que foram e bem sugeridos pelo Prof. Elisio e depois, sugerir que nos próximos tragam também a base para que possamos triangular e emitir opinião que possa nos ajudar a interpretar e quiçá melhor o bem-estar de todos, sem isto, não estamos em condições nem de rejeitar e muito menos concordar e não podemos utilizar o senso comum para rebater o que as Estatísticas referem. E se o interesse é prestar melhor serviço a nação, deve o Ministério dar condições para que com a base de dados utilizada pelo INE e o IPC se possa analisar e ver se conseguimos chegar a mesma conclusão ou até, delimitar melhor a partir da interpretação de dados aqueles que devem ser as prioridades do Governos.
O que penso sobre o relatório, tirando os erros e omissões técnicas que possam existir ou inferências interpretativas é que elas são uma base que deve ser melhorada e devem servir como referências sob o ponto de vista comunicativo de todo o Governo e nisso, está de parabéns o Ministério pela ousadia e pela iniciativa de se expor a crítica e ao crivo da Sociedade. É importante dizer isto para não matarmos a iniciativa como foi o caso do Tseke e porque temos de começar de algum lado.
O segundo ponto mais importante penso eu, foi a mudança de abordagem a que a Sua Excia. Ministro Celso Correia, chamou de mudança de paradigma de Governação e para esse efeito, falou da Indústria da Miséria, que entre os Economistas chamamos da Indústria da Pobreza.
Pelo que percebi, é ideia do Governo e do Ministro buscar parcerias internacionais interessadas em resultados e em transformação positiva que vão muito além dos programas de cooperação ou até de Governação nacional, daí a necessidade de apresentar resultados e não embarcar na ideia dos parceiros que só financiam quando há miséria ou pobreza, devem sim, financiar resultados.
Se estivermos atentos, Ghana, Etiópia, Quénia, Ruanda, África do Sul aqui ao lado, não se vendem no Turismo projectando pobreza e miséria e neste aspecto, é pecado e contraproducente pensar que ganhamos mais projectando um país de fracassos e que ao estar diante dos doadores a primeira coisa que nos oferecem são ajudas por eles pensadas e desenhadas no lugar de nos perguntarem: como e onde podemos ajudar?
Elisio Macamo
22 de novembro de 2021 ·
A feitiçaria da pobreza
É engraçado, mas confrangedor, ver o interesse com que a opinião pública segue o julgamento lá da BO. Há sempre alguém que encontra algo nos vários depoimentos feitos para se indignar e, por via disso, mostrar o seu lado íntegro, probo e patriota. Menos do que isso não se pode esperar de quem leva o País no coração. Não obstante, acho estranho o silêncio que se abateu sobre Cabo Delgado. O jornal Cartamoz noticiou há pouco tempo que há populações em fuga por aquelas bandas. Tudo indica que a situação não está assim tão péssima como já esteve, mas mesmo assim continua estranho que volvidos alguns meses desde que chegaram tropas estrangeiras não haja nenhuma razão para optimismo.
Só que isto não é o mais grave. O mais grave é que no meio dum conflito armado que obrigou o nosso governo a pedir ajuda lá fora (sem nenhuma consulta aos mozes) depois de quatro longos anos de procrastinação, o Chefe do Estado decidiu exonerar dois ministros de pelouros centrais ao esforço de guerra. Decidiu também retirar um militar operacional do campo da batalha para um cargo político (como ministro) e, portanto, perder alguém com experiência de combate para o colocar num lugar onde ele provavelmente vai ainda ter que aprender a fazer o trabalho. Não só. Perdeu um militar, cuja carreira ficou drasticamente interrompida (pois deve ter passado à reserva), mas alguém que tem noção do que acontece no terreno e, por isso, pode ter dificuldades em lidar com os novos operacionais por justamente pensar que sabe mais, ou simplesmente porque os outros podem querer mostrar a ele que não sabe nada.
Não sei se estão a perceber. Tomaram-se decisões de grande importância que podem afectar as coisas para o lado positivo ou negativo (mais para este último) e nada disto é motivo de discussão no País. Os nossos analistas estão ocupados com a BO e acidentes de viação. Um conflito armado que ceifou milhares de vidas de mozes, colocou mais milhares ao relento, trouxe ao País tropas estrangeiras com agendas diferentes e com alguma animosidade entre si, e nada disto é motivo de discussão. Ninguém acha prudente (ou, no mínimo, razoável) perguntar a quem de direito o que se passa, o que o governo pensa que está a fazer e que objectivos políticos ele persegue ao fazer estas mexidas. A BO é mais interessante, ou, o que me parece mais provável, interessa mais tratar o supérfluo do que o necessário.
Não é que não se possa falar da BO. Pode-se. Na verdade, há muitas maneiras de falar da BO com utilidade para Cabo Delgado. Primeiro, por algumas ligações óbvias (se for verdade que as dívidas tinham essa componente militar), segundo, porque o que desvirtuou a provável intenção nobre por detrás desse negócio foi justamente a maneira como o nosso País funciona. É aquela ideia de se partir do princípio de que se uma decisão vem da pessoa certa, então ela é boa e vai ter os resultados esperados. Toda a interpelação crítica feita de dentro ou de fora dessa decisão representa vacilação, inveja ou anti-patriotismo. O grande recurso de assessoria pública gratuita que nos é dado pelo sistema político democrático vai para as urtigas porque, lá vamos nós, quem governa sabe o que faz, tem boas intenções e aquilo que decide fazer está acima de qualquer interpelação crítica.
Reproduzo algo do livro “O Cardeal do Diabo” que estará nas bancas em breve. Um dos capítulos que tenho lá chama-se “O alfabeto da nossa pobreza”. No verbete “U” falo da unidade nacional e associo-a à pobreza no sentido de ela ser usada quase sempre como argumento para a asfixia da interpelação crítica. A nossa cultura política isola os líderes, cria um espaço artificial onde eles ficam completamente isolados de tudo e de todos ao mesmo tempo que vão tomando decisões importantes que quase sempre implicam a morte de mozes. A reacção de toda a gente é de indiferença porque, prontos, se os líderes fazem assim, é porque sabem que é assim que deve ser feito.
Em países onde existe a consciência de que o destino do País diz respeito a todos e que, por isso, qualquer decisão com potencial para influenciar a vida de muitos precisa de ser ponderada em contexto de deliberação, nenhum Chefe de Estado iria fazer mexidas desta envergadura sem que houvesse pressão popular para que justificasse as suas decisões e, acima de tudo, para que ele explicasse a todos o seu plano político e onde ele quer realmente levar o País. Nunca me envergonhei tanto de ser simpatizante da Frelimo como agora. É impressionante a forma como muita gente decente assiste impávida e serena à maneira como um dirigente que não está à altura do cargo faz e desfaz sem que haja, da parte dos seus camaradas, a preocupação de o ajudar a disfarçar as suas limitações.
Ninguém nasce competente ou incompetente. O contexto em que se age é que torna as pessoas uma coisa ou outra. E o nosso contexto, marcado pela feitiçaria da pobreza, transformou-se numa máquina de reprodução da incompetência. Quando o País estiver completamente em cinzas, não é a ele que vamos exigir contas. É aos que poderiam salvar a situação, mas estão acomodados em algum sítio à espera de ver o que sabem que pode acontecer, nomeadamente reduzir o País à cinza.
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Elisio Macamo
11 de janeiro ·
As duas bandeiras da Frelimo
Na estrada para a Praia de Xai-Xai, há duas casas que têm bandeiras esfarrapadas da Frelimo. Flutuam ao sabor da brisa que as dunas deixam escapar. Não sei se são edifícios oficiais ou partidários, ou apenas documentos de identidade partidária. Na verdade, em praticamente todo o país tenho visto muitas bandeiras não só da Frelimo como também da Renamo e do MDM. Fazem parte de algo que sempre chamou a minha atenção. Noutros países, a expressão de identidade partidária costuma ser feita de forma indirecta através da apropriação da bandeira nacional. Nos EUA e no Brasil, por exemplo, quanto mais à direita, mais necessidade se sente de se usar a bandeira nacional como símbolo próprio.
Posso estar equivocado, mas estas manifestações de identidade partidária – que incluem o uso excessivo de roupas com os símbolos dos respectivos partidos – não me parecem inocentes. Parecem-me manifestação da forma que o tribalismo assume onde a ideia de nação não traduz um interesse comum, mas se encontra ainda em disputa. Dizer que sou da Frelimo, Renamo ou MDM é uma maneira de dizer que antes da nação estão os que fazem parte do meu grupo restricto e a quem, teoricamente, eu devo a lealdade primária. No caso do partido que está no poder e controla o Estado, essa identificação é uma forma de legitimação da exclusão – porque, por norma, quem não pertence a este partido não pode realmente ser moçambicano no verdadeiro sentido do termo – ao mesmo tempo que garante o acesso aos recursos do Estado.
Precisei de algum tempo para entender o significado daquelas duas bandeiras da Frelimo na estrada da Praia de Xai-Xai. Nasci e cresci em Xai-Xai e lembro-me de fazer os 10 quilómetros de distância à pé com amigos pelas dunas cobertas de árvores de fruta que disputávamos com macacos ao longo do caminho. Ao contrário de hoje, não havia habitações, quando muito, algumas machambas – mesmo a minha mãe tinha uma por lá. Hoje está tudo cheio de casas e, algo impressionante, está cheio de verdadeiras mansões que documentam uma afluência fenomenal. Mas há um senão. A estrada está toda ela num estado lastimoso, na verdade, uma sombra do que ela foi no período colonial quando foi construída, aliás, como tudo o resto que os portugueses construíram e deixaram em Xai-Xai. O acesso às mansões faz-se por picadas ou estradas de terra batida num sinal evidente de aparente ausência de planeamento urbano.
O contraste com o tempo colonial é perturbante. Os ricos dessa época ostentavam a sua riqueza num meio de infra-estruturas urbanas – nos bairros dos brancos, claro – enquanto os ricos de hoje ostentam a sua riqueza fora de qualquer preocupação aparente com o bem-comum. Posso estar a exagerar na dose, mas é de partir o coração ver uma cidade que no tempo colonial tinha pequenas indústrias que davam emprego a muita gente, o que fazia com que as diferenças de meios não significassem o bem-estar de uns e a miséria de outros – porque a infra-estrutura pública ajudava os menos afortunados a suportar melhor a sua pobreza – ao contrário de hoje em que a riqueza de uns poucos parece representar de forma propositada a pobreza da maioria.
Há uma relação profunda entre a identificação com um partido e a ausência de infra-estruturas públicas. Ser da Frelimo parece ser, acima de tudo, uma forma de garantir a sobrevivência, exactamente como se manifesta o tribalismo característico da espécie humana. Definir os que pertencem e os que não pertencem corresponde ao instinto de assegurar que só quem pertence tenha hipóteses de sobrevivência. O lado perverso disso no campo político, sobretudo num contexto em que o Estado é, praticamente, o maior (senão o único) empregador numa grande urbe é que promove o instinto de “salve-se quem puder”, pois o interesse público desaparece do nosso campo de visão e no seu lugar só fica o interesse imediato do indivíduo e do grupo.
A preocupação de quem é afluente não é de investir no bem comum – como em sociedades normais seria o caso – mas sim de aumentar as suas possibilidades de viver das rendas do sector público. As pessoas não investem no sector produtivo, mas sim em áreas como transportes, restauração e papelarias porque usando as suas influências – documentadas pelas camisetes e bandeiras do partido – podem ter acesso aos contractos do Estado ou das entidades que vivem dos meios dos doadores. Que eu saiba, ninguém se faz eleger em Xai-Xai ou Gaza com a promessa de criação de empregos (industriais). Faz-se eleger dizendo que é da Frelimo. Só.
Quanto maior for o interesse em documentar a pertença partidária, mais fraco é o interesse pelo bem comum. Sempre me perguntei porque os portugueses no tempo colonial com menos meios do que nós – não tinham nem ajuda externa, nem um funcionalismo público sénior alimentado por doadores – conseguiram investir numa infra-estrutura pública de alguma qualidade e que não conseguimos manter. É verdade que a estrutura social excluía a maioria dos moçambicanos, mas se olharmos para as coisas com poucos emocionalismos veremos que hoje temos mais ou menos a mesma situação, excepto que a qualidade da infra-estrutura pública deixa muito a desejar.
Cada vez mais algo me diz que uma das causas do nosso atraso – ou das dificuldades que temos – é a forte dependência das nossas elites políticas – da oposição assim como da “posição” – do Estado. É aquilo que na linguagem marxista dos anos setenta se chamava de “elites rendeiras”, isto é elites que se reproduziam através do seu papel intermediário no acesso à riqueza do país pelo capitalismo internacional.
A desordem que caracteriza os nossos processos políticos, a ausência de decoro no uso dos recursos do Estado e o descaso com a sorte dos menos afortunados me parecem uma consequência directa do tribalismo documentado pelas duas bandeiras da Frelimo. O interesse nacional cada vez mais só existe no discurso. O que conta de verdade é o difuso interesse do grupo ao qual pertenço – cada vez mais por conveniência do que por convicção ideológica (acho que hoje em dia é muito mais importante ser da Frelimo do que comungar certos valores que me identificam como alguém da Frelimo, daí que qualquer pessoa possa ser da Frelimo) – do que a sorte dos menos afortunados que vivem essencialmente do comércio informal.
Custa-me admitir isto, mas há um certo sentido em que o nosso atraso é uma escolha (in)consciente das nossas elites políticas. Parece-me urgente encontrar maneiras de resgatar o interesse nacional do cativeiro tribal que aquelas duas bandeiras da Frelimo me parecem documentar. Ser da Frelimo tem que ser uma maneira de ser moçambicano, não de excluir outros da condição de serem moçambicanos.
Elisio Macamo
31 de março de 2015 ·
Ali Baba e o G-40
Este é um texto em homenagem descarada ao G-40, cujas exéquias fúnebres estão a ser lidas por muitos. É um ode à política tal e qual ela é, e não tal e qual ela devia ser. Uso propositadamente esta lenda persa (Ali Baba e os 40 ladrões) para confundir aqueles que têm maus hábitos de leitura. A lenda é simples. Ali Baba, pobre, descobriu as palavras mágicas (“abre-te Sésamo”) que davam acesso à gruta onde um bando de 40 ladrões guardava o seu espólio. O seu irmão, rico, extorquiu-lhe a senha, foi à gruta e de tanta excitação não se lembrou mais da senha para a saída, foi apanhado e esquartejado pelos ladrões. Preocupado, Ali Baba procurou pelo irmão, encontrou-o morto, levou-o de volta à casa, entregou o cadáver à escrava Morgiana que preparou o seu enterro. Quando os 40 ladrões regressaram à gruta e não encontraram o cadáver, procuraram por ele usando todo o tipo de artimanhas que a escrava foi frustrando até todos eles serem mortos, incluindo o próprio chefe dos bandidos pela mão da escrava. Como recompensa, Ali Baba casou a escrava com o seu próprio filho.
Quem nunca leu esta lenda pode pensar que os 40 ladrões são uma óptima descrição do G-40 e que Ali Baba é o líder que acaba de ceder o lugar ao novo empregado do povo moçambicano. A imagem é bastante sugestiva, sobretudo o substantivo próprio “ladrões”. Eu acho, porém, que este é um grande equívoco que revela a pobreza da nossa abordagem do político em Moçambique. Os 40 ladrões foram pessoas sem cara nem protagonismo próprio. Dois foram mortos pelo chefe depois de terem sido ludibriados pela escrava e os restantes foram mortos à espera das instruções do chefe que, subsequentemente, também foi morto pela escrava. A figura chave nesta lenda é a escrava. É ela que tem todo o protagonismo, antecipa-se, toma a dianteira e trabalha em prol da segurança de Ali Baba. E Ali Baba representa, na verdade (bom, na minha interpretação), um ideal, a saber um ideal em prol do qual a escrava se empenha. A questão que se levanta aqui é que ideal é esse e que meios são aceitáveis para a sua prossecução. É esta questão que a gente não analisa quando considera o fenómeno dos G-40. E isso prejudica uma melhor abordagem do político no País.
Infelizmente, a discussão pública usa uma ideia de G-40 que é própria da polémica política e, por isso, pouco interessada numa boa conceitualização. Penso que uma discussão útil teria que começar por tentar identificar o que é genérico nesse fenómeno. Em minha opinião, o que é genérico é o facto de serem pessoas que participam activamente na política em defesa de algo que elas consideram importante. Isto distingue o grupo de muitos de nós (eu próprio incluo-me nesse “nós”) que optamos pelo mais simples, isto é colocarmo-nos por cima do muro como “analistas independentes” a quem o País interessa apenas como objecto de análise e que só merece a nossa intervenção quando é para o proteger daqueles que têm uma ideia mais ou menos clara do que ele devia ser e se envolvem na contenda política para esse efeito. Só que protegemos o País falando mal desses outros, não intervindo na arena política como tal. Os piores nisto tudo são os que se consideram membros dum partido, mas ao invés de agirem no interior desse partido em prol da sua própria agenda ficam de fora a vociferar impropérios feios aos que lutam pela sua agenda. Creio que esta caracterização é importante antes de passarmos para outras questões também pertinentes.
Uma questão pertinente é a relativa à forma como esse empenho por uma agenda própria se revela. Aqui de novo o problema da generalização não nos permite uma melhor abordagem dos assuntos. Há muita intriga e golpes baixos na política. Mas há também jogo limpo, solidariedade e honestidade. Os membros do G-40, enquanto actores políticos, não poderiam ser diferentes. Há os que fazem jogo sujo, mas há também os que fazem jogo limpo. Há inclusivamente os que fazem as duas coisas. Com isto não quero defender uma moral instrumental ao estilo do entendimento popular do Maquiavelismo. Nunca é moralmente correcto fazer o que é moralmente incorrecto. Em nenhuma circunstância. Mas a limpeza do jogo político não é algo que surge do nada, nem é de estranhar num contexto como o moçambicano onde circunstâncias estruturais sempre nos vão impelir na direcção da polarização e radicalização. Na verdade, o jogo sujo na política não é uma prerrogativa moçambicana. Sempre que houver a oportunidade para tal (é só pensar em Nixon ou no último Bush nos EUA; ou pensar na campanha anti-Dilma no Brasil actualmente) o actor político vai fazer mão de tudo o que estiver ao seu alcance para avançar a sua agenda. A limpeza do jogo político é resultado de processos civilizacionais que ocorrem no interior dos partidos políticos e na esfera pública. Neste sentido, o jogo sujo que os “analistas” sempre atribuem ao G-40 é, na verdade, manifestação dum problema civilizacional nacional, logo, um problema de todos nós. Eles próprios não são, de resto, inocentes.
A outra questão pertinente é a de saber que ideal os G-40 associam a Ali Baba. Estranhamente, nunca ninguém se preocupou em tentar entender isto. Contentamo-nos com o palpite pouco útil segundo o qual os membros do G-40 seriam oportunistas e lambe-botas à espera duma oportunidade para singrarem no aparelho do Estado. É claro que deve haver muitos que têm esse tipo de motivações da mesma forma que alguns dos seus críticos também têm o mesmo tipo de ambição. É normalíssimo. Mas o debate político só vai andar para a frente se ao lado da condenação desse tipo de motivações também procuramos saber que ideia de País essas pessoas têm, e discutirmos essa ideia. Na circunstância, essa ideia não é muito clara. Dum modo geral, quando leio as intervenções dos que são considerados membros do G-40 vejo várias ideias, algumas das quais entram até em choque entre si. O denominador comum parece ser a ideia de que a Frelimo é o único partido com um projecto político legítimo, ideia essa que leva alguns a olharem para os outros partidos como traidores da causa nacional. É um pouco a partir desta postura que se desenvolvem espantalhos do tipo “os brancos”, “os Chissanistas”, “os comunistas, etc. para caracterizar os adversários internos e “mercenários”, “divisionistas” e “vendedores da pátria”, etc. para caracterizar os adversários externos. Foi sempre assim na Frelimo (e é assim no País em geral) e isso não porque a Frelimo seja por natureza intolerante, mas sim porque todo o grupo político com um projecto totalitário age assim mesmo. É por isso que tenho pouca paciência para as críticas de pessoas como Jorge Rebelo, pois nada do que ele critica hoje é diferente da postura política que ele não criticou (que eu saiba) no passado. Na altura eram os “reaccionários”, “Xiconhocas”, “inimigo interno”, “infiltrados”, etc. e com todas as consequências drásticas que daí advieram sem que até hoje tenha havido (que eu saiba) um pedido de desculpas. Mas, lá está, como haveria pedido de desculpa se eram movidos pelos objectivos mais nobres? É tudo a mesma cultura política.
Hoje, com a passagem do testemunho partidário de Guebuza para Nyusi, festeja-se o fim do G-40. Isto parece-me revelar ingenuidade se eu estiver correcto na minha impressão de que o G-40 seja essencialmente um grupo de actores políticos. Celebrar-se o seu fim seria algo como celebrar o fim da política (outra ideia tipicamente totalitária), o dia a partir do qual viveremos felizes para todo o sempre. Pudera. O próprio Nyusi pode ter dado um tiro no próprio pé ao se deixar levar na onda daqueles que exigiam a passagem automática deste testemunho. Com Guebuza no leme, pessoa que revitalizou a Frelimo nos últimos tempos (mas acabou sendo vítima do seu próprio sucesso), ele poderia ter tido as costas livres para consolidar o seu poder e dar maior contorno ao seu próprio programa governamental. Se não tiver um Secretário-Geral forte, estratega e politicamente hábil corre o forte risco de ver o seu próprio programa inviabilizado pelo seu próprio partido. Os que o apoiam hoje não o fazem necessariamente por simpatia com o seu projecto. Podem o fazer por antipatia a Guebuza. Mas como dizem os americanos (numa expressão idiomática popularizada, entre nós, pelo cantor Billy Ocean) “when the going gets tough, the tough get going” (quando a situação fica mal, os fortes empenham-se mais ainda). Talvez Nyusi faça parte dos “fortes” e esteja realmente à espera deste teste para demonstrar isso. O grande erro que iria cometer seria de esperar que esse empenho fosse possível sem política. Aí corre o risco de não ter o G-40, mas sim os 40 ladrões de Ali Baba, aqueles que apenas cumprem ordens e cuja motivação é apenas a obediência ao chefe.
Pode vir a ser pior. E os primeiros a atirarem pedras (os 38 ladrões arrumados em bidões de óleo à espera do sinal do chefe que consistia em pedras atiradas da janela do seu quarto morreram assim mesmo) não vão ser os G-40 supostamente derrotados, mas sim aqueles que fora ou nas margens do partido festejam o fim da política. A maior afronta à política no País vem desses, não dos G-40, desses que compartilham todo o texto (bem ou mal escrito, correcto ou equivocado) desde o momento que bata forte nos seus inimigos. Eu não concordo com certas intervenções de pessoas associadas ao G-40, mas tenho um grande respeito por elas por darem na cara com um compromisso político, por muito mal ou bem que ele esteja formulado. Discutir esse compromisso político seria vital para a consolidação da democracia no País. E para fazer isso é preciso trazê-lo à superfície. Um País faz-se na política. Não se faz apenas nas lamentações de quem acha que é melhor do que os outros, tão bom que está inclusivamente acima do jogo político.
Essa é uma maneira muito hipócrita de fazer política.
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Xavier Uamba
2 de abril ·
Sobre o perfil de quem só pode se querer quando outros quiserem
A febre de outros quererem que alguém se queira trouxe à ribalta um conceito interessante. Chama-se “perfil” do(a) candidato(a). O entendimento geral baseia-se no carácter, portanto, na ideia segundo a qual um(a) candidato(a) tem que ser portador(a) de qualidades em conformidade com o quadro ético aceite pela sociedade. Alguém que roubou, burlou, maltratou, matou, etc. não serve evidentemente para Presidente. Mas há também um entendimento particular que se refere à qualificação técnica para o cargo. A pessoa tem que estar minimimante preparada para lidar com dossiers simples e complexos, o que nos dias de hoje exige formação acima de tudo. Não é que essas coisas sejam condição suficiente para governar bem. São apenas condições necessárias.
Cada formação política tem o direito de estabelecer os seus critérios, pois eles sempre reflectem a cultura interna e a história que a produziu. A Frelimo pode muito bem impôr como critério a rotatividade regional, étnica ou religiosa. Se isso for necessário para garantir a sua coesão interna, não vejo porque não. O que importa a nós que somos apenas povo é que independentemente dos critérios internos a pessoa indicada possa realmente ser Presidente. Isto passa por satisfazer as condições suficientes.
O que significa ser realmente Presidente? Há duas coisas essenciais que fazem parte das condições suficientes. A primeira é que a pessoa tenha respeito pelo cargo. Tem que saber que o lugar que vai ocupar é muito maior do que ela própria. Isso tem implicações institucionais, a principal das quais é o interesse que essa pessoa, e o seu partido, devem ter na criação de mecanismos para que a governação dessa pessoa seja sujeita à responsabilização. A pessoa tem que valorizar a prestação de contas.
Até aqui ser Presidente em Moçambique tem significado estar acima de tudo, não ter a obrigação de prestar contas a ninguém (nem ao partido, nem à sociedade). Isto anda bem quando o ditador é benevolente, algo que normalmente só retrospectivamente é o caso. Se a pessoa que se tornar Presidente for mesmo má e consegue com sucesso fingir que respeita o cargo sem essa intenção, ver-nos-emos à nora. O Presidente Nyusi teria sido um melhor presidente se tivesse agido dentro duma cultura política que o obrigasse a governar com responsabilidade. O que correu mal na sua governação não é apenas sua culpa. É culpa de quem lá o colocou sem criar condições para o responsabilizar.
Por isso, neste momento, o maior obstáculo à emergência de quem respeite o cargo é a própria cultura política da Frelimo. Há muitos lá que se chateiam com o que vai mal assim como com a falta de abertura à crítica. Chateiam-se, porém, sem nenhuma filosofia política que dê coerência à sua indignação. As reticências que muitos deles têm em relação à democracia liberal é bastante reveladora. Sem ela, o que têm como filosofia política é uma confusão de ideias que incluem o autoritarismo russo e chinês, a exaltação idiota de tradições democráticas africanas e a confusão entre os erros que ocorrem em democracias consolidadas e a própria ideia de democracia. Tudo isso fertiliza o terreno que vai fazer da pessoa escolhida alguém que não respeita o cargo.
Não é preciso ser democrata liberal para respeitar o cargo. Mas a história política da humanidade mostra que só quem leva as ideias contidas nessa filosofia política a sério é que está melhor preparada para abraçar o que é preciso fazer para que o cargo seja respeitado. Só uma pessoa assim é que está em condições de apostar em tudo o que for necessário para que as instituições sejam sólidas. Os EUA estão a sossobrar por causa da ameaça que Trump representa a este ideal. A Rússia já está à deriva e a China começa a dar sinais de seguir o mesmo caminho. O denominador comum é a falta de respeito pelo cargo da parte de quem o ocupa.
A segunda coisa que o perfil significa é ter um projecto político. Portanto, não é ser do Sul, Centro ou Norte, não é ter experiência de governação ou de direcção de órgãos partidários, não é saber falar bem Português, ser homem ou mulher, etc. É ter uma ideia na base da qual se articulam medidas concretas com certos valores. Não há ninguém em Moçambique que não queira o bem-estar dos outros, a saúde para todos, o fim da pobreza, a habitação, o emprego, etc., nem mesmo aquele que rouba do erário público ou se desleixa no trabalho.
Portanto, o critério para determinar se alguém tem um projecto político não pode ser a lista de coisas que quer alcançar e que todos querem. O critério tem que ser o que vai ser necessário fazer para que essas medidas sejam bem sucedidas. A essência dum projecto político é essa. Alguém considera que viver em paz é bom. Para alcançar esse objectivo, essa pessoa toma medidas que visam a descentralização do poder. O mais importante, contudo, vai ser criar condições para que essa descentralização não seja torpedeada por outras coisas. Este tem sido o problema com a “paz definitiva”. Descentralizou-se, mas com os secretários de estado fez-se aquilo que inviabiliza a descentralização. Um tiro nos próprios pés!
Aqui de novo a Frelimo não oferece nenhuma garantia de que vá escolher alguém com projecto político. Ela simplesmente não é assim. Vai, de certeza, ter muita gente a prometer mundos e fundos. Não vai prestar atenção à ideia, nem vai escolher com base no mérito dessa ideia. Vai fazer um concurso de Misses em que factores exteriores decidirão em quem vai recair a escolha. Espero estar enganado, pois isso seria bom para o País. Mas a experiência diz-me, infelizmente, que não estou.
Os vários debates que acompanho nas redes sociais e nos jornais mostram-me esta grande lacuna na nossa cultura política. Não creio que o Comité Central da Frelimo tenha gente com sensibilidade para isto. Pessoas que assistiram impávidas e serenas à destruição inconsciente do País por falta de ideias – ao mesmo que tiravam o proveito pessoal possível nas circunstâncias – não podem ter a capacidade de escolher alguém com projecto político. Pura e simplesmente não estão qualificadas para tamanha responsabilidade.
Então, se calhar não é de perfil que se precisa. Precisa-se de gente com discernimento suficiente para escolher quem a vai representar. Essa gente precisa de ter sensibilidade para a importância de proteger o cargo e para a necessidade de escolher com base na discussão de projectos políticos. Uma pessoa que durante toda a vida não fez mais nada do que ser chefe, mas não tem ideia do que é preciso fazer, não é necessariamente melhor qualificada do que a pessoa que nunca foi chefe, mas tem ideias sólidas e claras sobre as condições que precisa de criar para que o que pretende fazer na prossecução de certos objectivos seja eficaz.
Se fosse membro do CC e estivesse na plateia para ver o desfile das Misses prestaria atenção à ideia. E na conjuntura que atravessamos são duas as ideias centrais: reformar a Frelimo e refundar o Estado. Tudo o resto vem depois. Mas, (in)felizmente, não sou membro do CC.
Professor Elisio Macamo
22 de maio de 2023 ·
Sobre o desenvolvimento
Fui convidado ontem pelo Noite Informativa da STV a falar sobre o terceiro volume de “Sociologia Prática” – Como os sociólogos pensam o desenvolvimento. Não tenho a certeza se consegui transmitir claramente o que me vai na alma sobre este assunto. Talvez, primeiro, um esclarecimento. O livro em si não apresenta nenhuma visão alternativa do desenvolvimento. É uma introdução ao conceito de desenvolvimento para quem estuda – ou se interessa pela – sociologia.
Segundo, a perspectiva que enforma o livro é de distanciamento crítico em relação ao conceito. Esse distanciamento crítico tem a ver com três aspectos. O primeiro aspecto é a desconfiança em relação ao que chamo de “indústria do desenvolvimento”, um aparato institucional em que operam burocratas internacionais movidos pela convicção positivista segundo a qual com a receita certa seria possível trazer o bem-estar aos países que se sujeitam aos seus ditames.
A principal característica destes burocratas internacionais é o exercício de poder sobre os nossos governantes sem a correspondente responsabilidade. Dito doutro modo, não há como eles serem responsabilizados pelos “maus” conselhos, pois tudo o que os países que “aceitam” fazer o que eles dizem é sempre da responsabilidade desses governos. Foi isto que aconteceu com a indústria do cajú. Joaquim Chissano e Pascoal Mocumbi podiam ter recusado exportar a castanha para a India com todos os riscos dai decorrentes...
O segundo aspecto tem a ver com o potencial de trivialização da política nos países que recebem o auxílio ao desenvolvimento. É assim: quando as decisões sobre o bem-estar e como lá se chega são tomadas com base na convicção segundo a qual tudo decorreria de considerações técnicas – “fazer a coisa certa” – e isso se faz com base numa agenda definida por aquele que tem os meios financeiros para a intervenção, o debate interno sobre o que significa o bem-estar, sobre o que precisa de ser acautelado na sua procura e que coisas precisam de ser garantidas para que a gente se reconheça no País que daí resultar deixa de ser relevante. Uma vez fiz uma consultoria para a DFID sobre os perigos do apoio directo orçamental em que constatei que o maior risco era justamente este. O governo tinha que ter a aprovação dos doadores para apresentar o orçamento no Parlamento. Ora, como é que o Parlamento podia rejeitar uma coisa chancelada pelos doadores?
O terceiro aspecto decorre dos dois primeiros. Os europeus não sabem como se desenvolveram. Mesmo sob o risco de ser algo populista diria assim: mente todo o indivíduo que diz poder explicar o que fez com que os europeus se desenvolvessem. É por isso que considero, dum modo geral, totalmente inúteis livros como de Daron Acemoglu e James Robinson (Porque as Nações Falham) que laboram na falácia do olhar retrospectivo. Isso não significa negar o seu desenvolvimento. Significa rejeitar a ideia de que haja uma fórmula secreta por descobrir que vai nos abrir as portas do bem-estar económico e social. Tenho dito que o único que podemos aprender dos europeus em matéria de desenvolvimento é como manter a vantagem uma vez ela adquirida. O resto é conversa fútil.
Ora, nada disto significa que estejamos perdidos. Não estamos. O desafio é identificar o principal problema para o qual precisamos de dedicar a nossa energia e criatividade. Esse problema não é a pobreza, nem a violência, muito menos a corrupção. O principal problema é a cidadania, isto é como garantir que os nossos países sejam espaços dentro dos quais cada um de nós, independentemente do que é – ou não é – se sinta parte essencial. É o desafio da garantia da dignidade, a principal razão que levou jovens corajosos a lutarem pela auto-determinação. Esta é uma outra maneira de dizer que o desafio é político, não técnico, isto é como fazemos de Moçambique um lugar em que quem governa o faz tendo em conta não só a opinião de quem não detém o poder, mas também tem a possibilidade de ser confrontado com visões alternativas daquilo que Moçambique pode ser. Esse é um projecto de longo prazo que se não esgota nos chavões da indústria do desenvolvimento, tipo “desenvolvimento sustentável”, “objectivos de desenvolvimento sustentável” e todos esses palavrões que cada vez mais pensam por nós.
Há alguns males que podem vir por bem. Um deles foi o das dívidas ocultas, ele também resultado – em minha opinião – de alguém que ousou pensar um Moçambique livre do abraço sufocante dos doadores. Que a coisa se tenha dado mal – conforme todos sabemos – não desvaloriza a ideia por detrás da coisa. Mostra o verdadeiro problema, nomeadamente a intransparência governativa em resultado de o nosso sistema político não criar espaços para a interpelação crítica dos decisores políticos. Então, se o corte da ajuda daí resultante tivesse sido usado para pensar um outro Moçambique poderíamos estar em grandes apuros económicos, sim, mas talvez com outras bases para a criação do bem-estar. Mas, nada. Preferimos fazer tudo para regressar ao colo dos doadores.
Então, nao apresento nenhuma visão alternativa do desenvolvimento. Faço um convite para que tenhamos a ousadia da reflexão crítica. Uma pista a seguir é esta questão de ver o desenvolvimento não como um desafio técnico – que é o que os doadores querem que a gente faça – mas sim como um desafio político. A partir desta perspectiva é fácil ver porque algumas propostas governamentais são problemáticas. Dois exemplos: vi um vídeo em que o Comandante da Polícia anuncia a interrupção da formação de agentes policiais por três anos. Não sei qual é a base desta decisão. Não sei se houve algum estudo que tenha sido amplamente discutido no País. Não sei que problemas ele constatou na formação que tornaram essa decisão imprescindível. Só anunciou a decisão.
Segundo exemplo: o SUSTENTA. Trata-se dum programa que documenta o compromisso que um certo ministro tem com o seu cargo e, acima de tudo, com a questão da segurança alimentar no País. Mas é um programa que depende de fundos (dívidas) de fora para ser implementado por um aparato administrativo ineficiente num contexto em que o ambiente natural, político e económico conspiram contra as suas boas intenções. Como é que nestas circunstâncias os moçambicanos podem dormir descansados sabendo que alguém contraíu dívidas e assumiu compromissos financeiros de grande envergadura em seu nome para algo que pode, apesar de toda a sua boa vontade, pode dar errado? E reparem que aqui surge outro problema, nomeadamente que a consciência desses riscos leve as pessoas que tanto investem no sucesso deste programa à intransparência com todos os riscos que isso acarreta para o tecido político.
Não existe nenhuma lei natural de acordo com o qual toda a gente que se esforça será recompensada. O “desenvolvimento” pode vir como também não. O importante é fazer coisas em prol dele que se derem errado não tragam consequências ainda piores. E essa é outra razão para se apostar no seu entendimento como algo político, não técnico.
Elisio Macamo
13 de fevereiro ·
Sobre a imaginação
Entrevistas (fictícias) a candidatos a Presidente e a treinadores de futebol
- O que vai fazer quando for Presidente?
Candidato A (do Partido A): O meu compromisso é acabar com a pobreza, criar empregos e combater a corrupção.
Candidato B (do Partido A): O meu compromisso é combater a corrupção, criar empregos e acabar com a pobreza.
Candidato C (do Partido A): O meu compromisso é criar empregos, combater a corrupção e acabar com a pobreza.
Candidato D (do Partido B): Nós vamos acabar com a corrupção, vamos dar emprego aos moçambicanos e vamos eliminar a pobreza.
Candidato E (do Partido C): Eu não durmo quando sei que há moçambicanos pobres, sem emprego e vítimas da corrupção. Vou acabar com isso tudo.
- O que vai fazer como treinador do nosso clube?
Candidato A: Como o nosso clube não tem muitos recursos financeiros, eu vou apostar na formação interna para que daqui a cinco anos tenhamos uma equipa mais competitiva e possamos praticar o tipo de futebol que queremos praticar.
Candidato B: O nosso maior problema é a defensiva. Vou alterar o nosso padrão de jogo para que o meio-campo ajude a suprir as nossas lacunas defensivas e para tal vamos dar mais atenção ao jogo defensivo.
Candidato B: Eu reparei que esta equipa tem um enorme potencial ofensivo, mas a articulação entre as várias partes é defeituosa. Vou precisar de reforçar o meio-campo e treinar a transição da defesa para o ataque criando situações de vantagem em número de jogadores.
- Entrevista a candidato presidencial sobre o que o seu clube de futebol deve fazer.
Candidato presidencial: o nosso clube tem que ter mais victórias, marcar mais golos e deixar a massa associativa feliz.
- Entrevista a candidato a treinador de futebol sobre os desafios que o país enfrenta.
Candidato a treinador: o nosso país precisa duma filosofia de jogo em função da qual os problemas serão identificados e as estratégias para a sua resolução serão determinadas.
Detecte a diferença!
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Elisio Macamo
27 de maio de 2017 ·
Novilíngua em Marracuene
“Novilíngua” é a “newspeak” de George Orwell, do seu livro “1984”. É a língua inventada pelos detentores do poder para controlar o pensamento naquela crença vã, segundo a qual aquilo que não se diz, ou não se pode dizer, deixa de existir. “Marracuene” é o nome do hospital psiquiátrico do Infulene, nos arredores de Maputo. Consta que um teste para determinar a lucidez dos inquilinos consistia em lhes pedir para encher uma bacia furada. Trabalho de Sísifo em linguagem civilizada.
Os que detêm o poder sobre os africanos hoje, nomeadamente o sindicato internacional do desenvolvimento, não dormem aí a trabalhar com afinco na redução do vocabulário para corresponder apenas à forma como eles apreendem o mundo e reduzir as nossas opções ao que eles acham correcto. “Duplipensar”, “crimideias” e “negrobranco” viraram o instrumento ideal de colonização da nossa mente. “bomdinheiro”, “crimidinheiro”... Muitos de nós submetemo-nos a essa disciplinarização mental convencidos de que por essa via nos tornamos melhores pessoas. Substituímos o pensamento original pelo emprego de palavras que pensam por nós e transformamos a integridade intelectual num artefacto da vontade de poder que outros exercem sobre nós.
Quem ainda não se apercebeu do que estou a falar: da corrupção, desse odioso vocábulo que promove a preguiça mental. Que os angolanos não me levem a mal, mas não tenho outra maneira de ilustrar o que me revolta neste discurso da corrupção. Consta que um dos filhos do presidente angolano comprou um relógio de luxo por 500.000 dólares num leilão em Cannes. Muita gente ficou indignada com isso (eu também), e condenou o acto (eu também condeno-o). A questão, contudo, é o tipo de ilações que tiramos disso. A tirania da razão que funciona como uma polícia de pensamento orwelliana indigna-se porque com aquele dinheiro Angola poderia ter apetrechado hospitais, escolas, melhorado a habitação, etc. É, no mais tardar, aqui onde eu perco interesse no assunto. O que tornou possível que um menino de 25 anos levasse tanto dinheiro para Cannes para ir participar num leilão de luxo é o mesmo que, em Angola, impediria que esse dinheiro fosse empregue em coisas mais úteis. Quando você grita “corrupção” você revela indignação legítima, mas revela perplexidade ao mesmo tempo. Você recusa-se a pensar os problemas do seu país usando a sua própria cabeça.
Você foi possuído pela “Novilíngua”. Ela meteu na sua cabeça que a única maneira de pensar os problemas do seu país é concentrar a sua atenção na maldade dos líderes e na mentalidade retrógrada do seu povo que não sabe agir no interesse colectivo. Vocês todos precisam de ser reeducados, aprender ética, aprender a amar a vossa terra e a respeitar o bem comum. Se vocês fizerem isso, todos os problemas vão ficar resolvidos. As condições estruturais dentro das quais o vosso país foi integrado na economia mundial vão deixar de ser um peso; a pobreza e as desigualidades que ela produz, põe a descoberto ou exarceba vai deixar de ser um peso; aquele tempo que é necessário para que instituições se consolidem através do processo natural de tentativa, erro e correcção vai se esfumar e cada um dos nossos países vai virar uma Suíça em ponto maior.
Eu até aceito, e compreendo, que activistas e indignados profissionais falem assim. Já não tenho muita compreensão quando académicos, ou pessoas que se julgam académicas, adoptam esta linguagem e procuram entender os seus países com recurso a ela. Não compreendo. Então vamos repetir juntos: o nosso maior problema em Moz não é e nunca foi a corrupção. O nosso problema é o subdesenvolvimento. E ele manifesta-se, entre outras coisas, através da corrupção. Como exactamente, ninguém sabe com certeza, mas se queremos acabar com o problema (não é proibido sonhar), temos que começar aí. Qual é o problema para o qual a corrupção é uma manifestação? Em que circunstâncias determinadas manifestações desse fenómeno constituem um problema?
Como sempre sou acusado por algumas pessoas de não propôr soluções concretas, aí vão algumas:
1. Encerrar com efeitos imediatos o Gabinete Central de Combate à Corrupção para libertar os seus funcionários para actividades mais úteis à sociedade (o FMI e o Banco Mundial não vão gostar, mas explicar que é uma questão de eficiência administrativa e contenção de custos); o dinheiro poupado pode ir para o fundo das tréguas sem prazo;
2. Criar (se é que ainda não existe) a Inspecção Geral do Estado (sob a alçada do Tribunal Administrativo) com a tarefa de controlar o funcionamento das instituições do Estado e simplificar os procedimentos administrativos;
3. Encerrar o Ministério da Administração Estatal (se é que existe) e integrar algumas das suas competências no ministério do interior, no da justiça e no do trabalho;
4. Reduzir drasticamente os poderes do Chefe de Estado (e colocar a Inspecção do Estado fora da sua alçada) para que se promova a cultura da concertação social e política e se diminuam oportunidades neo-patrimoniais; proibir visitas do chefe de estado aos ministérios e empresas públicas, deixar isso para a inspecção geral do estado ou para o primeiro ministro;
5. Reforçar o gabinete do Provedor de Justiça com competências especiais para proteger o cidadão da arbitrariedade dos agentes do Estado;
6. Realizar seminários de sensibilização de todos os governantes para aprenderem a rir às gargalhadas sempre que um engraçadinho qualquer de fora falar de corrupção como causa dos nossos problemas; se tiverem roubado (que é mau) aprenderem a fazer “poker face” até os doadores mbunharem.
E só uma palavrinha sobre a ética. Não há nada de extraordinário, em países como os nossos, num jovem de 25 anos gastar assim tanto dinheiro duma assentada e sem sensibilidade para os seus conterrâneos que sofrem. Se Angola for como Moz, e acho que é, não vejo mesmo. Ele faz ao seu nível aquilo que muitos fazem ao seu nível. Não quero impedir ninguém de usufruir do seu dinheiro como bem entender. Mas toda a vez que você compra um telefone sofisticado e caro, toda a vez que você compra mais uma camisola do Real ou do Barça, toda a vez que você tira aquelas férias merecidas, vai comer no restaurante, etc., sendo você dum país pobre com muita gente que nem sabe o que comer no dia seguinte, você também, quer queira, quer não, está a portar-se como o filho do Presidente angolano. Você pode justificar isso. Você pode dizer que não roubou, que não é filho de político, etc. E terá razão. Ele também vai dizer o mesmo. Ele e você são beneficiários a níveis diferentes das condições estruturais que colocam na fome milhões dos vossos compatriotas. Ética como não.
Elisio Macamo
25 de janeiro de 2022 ·
Outros assuntos
Toda a gente sabe o que a palavra “liberdade” significa; e sabe como a empregar. É possível manter conversas e até mesmo discutir assuntos sérios usando o seu sentido coloquial de independência e autonomia. Mas podemos sofisticar a palavra integrando nela direitos, relação com o estado, condições de usufruto, etc. Ao fazermos isso, estamos a transformar a palavra paulatinamente num conceito. Isto é, ela deixa apenas de ser a designação de alguma coisa (ou condição) para ser um instrumento de reflexão sobre aquilo que designa, mas também sobre tudo o que precisa de estar reunido para que ela designe essa coisa, e não outra.
O trabalho científico é essencialmente isso. Cientistas transformam palavras em conceitos. E ao fazerem isso, expandem as fronteiras do conhecimento. Digo isto sempre aos doutorandos. Escrever uma tese e não acrescentar nada a um determinado conceito é desperdício de tempo. A palavra “liberdade” é uma das que mais “conceitualização” sofreu no campo das ciências sociais e humanas. Existe liberdade positiva e negativa, liberdade dos antigos, liberdade de, liberdade para e liberdade para ser, etc.
E o que complica as coisas é que estes conceitos todos fazem parte de tradições filosóficas adversárias, o que significa que cada um deles recupera sentidos diferentes do mundo. Aquilo que a gente diz (ou não) numa discussão pode subentender estes sentidos. Por vezes, a dificuldade de a gente se entender não vem de algum desacordo fundamental, mas sim de a gente estar a usar referências diferentes (ou pior ainda: de alguém estar a usar referências numa discussão com quem não tem referências, nem tem consciência de não as ter).
A outra coisa é que esses sentidos todos podem influenciar a maneira como vemos outras coisas, mesmo aquelas muito distantes. Isto acontece porque a partir dum certo nível de reflexão, e para que ela seja coerente, os conceitos ganham sentido dentro duma visão do mundo que nós, graças aos conceitos, começamos a montar. O conceito de liberdade tornou-se tão central à reflexão sobre política, economia e sociedade que é quase irresponsável querer falar profundamente de política hoje sem noção disso. Claro, não é preciso conhecer todos os conceitos de liberdade para poder participar numa discussão. Contudo, a partir dum certo nível isso pode ser imprescindível, nem que seja ao nível ao menos de consciência da existência de reflexões profundas sobre o conceito.
Conheço gente que a julgar pelas suas intervenções beneficiaria desta consciência. Parte da nossa colonização mental vem de reduzirmos conceitos ao seu denominador comum mais simples, e não nos preocuparmos em entender bem o que querem dizer. Isso leva-nos por vezes a procurarmos refúgio em concepções essencialistas do que é ser africano quando, na realidade, o problema de fundo é desconhecimento das bases que precisamos de ter, inclusivamente, para melhor reflectirmos sobre essa essência, se for o caso. Parte da pobreza da nossa política, quer da parte do governo, quer da parte da oposição, vem disto. Não temos consciência de que nos faltam certos alicerces.
O conceito de liberdade é essencial à ideia do liberalismo e, consequentemente, ao modelo de democracia que hoje vinga no mundo. Mesmo o Marxismo é impensável sem a ideia de liberdade. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, o Marxismo é uma das coisas mais ocidentais que existem no mundo e vem com todos os preconceitos que conhecemos daquilo que nos incomoda no Ocidente. Nas nossas discussões reduzimos o liberalismo ao capitalismo e, nisso, à sua forma mais selvagem. Rejeitamos a riqueza do conceito por o reduzirmos ao capitalismo e por reduzirmos o capitalismo ao colonialismo, e por reduzirmos o colonialismo, por sua vez, aos europeus, etc. Estas simplificações todas impedem-nos de ver a maldade que praticamos contra outros africanos, por vezes, em nome de coisas que não foram realmente reflectidas até às últimas consequências. Conheço gente que confunde os excessos duma forma de organizar a vida económica (o capitalismo selvagem) com a essência duma cultura (a europeia). E porque não tem consciência das raízes europeias (e capitalistas) do Marxismo, pensa que ele é o sinónimo de tudo quanto rejeita no capitalismo, ou na Europa.
Só que as coisas não são assim tão fáceis. É possível ser liberal e estar visceralmente contra o racismo e a desigualidade da mesma forma que é possível ser racista e favorecer certas formas de desigualidade ao mesmo tempo que se professa uma orientação marxista. Há religiosos pecadores e ateus santos. Na verdade, uma das coisas que limita o aprofundamento da nossa independência é a forma simplista como tratamos estes assuntos. Muitos dos meus colegas e amigos no mundo académico fora de África são de orientação de esquerda (e alguns até marxistas convictos). O denominador comum nas suas atitudes e intervenções, contudo, é uma base normativa “liberal” que reflecte, parcialmente, a sua socialização em ambientes onde esses valores fazem parte da discussão na esfera pública.
Em contrapartida, o que vejo de “crítica social” entre nós é invariavelmente um ressentimento em relação ao “Ocidente” ou ao “capitalismo” (ou neo-liberalismo) que não ajuda as pessoas a assumirem atitudes coerentes na esfera pública. Há uma espécie de superstição que divaga por aí e leva algumas pessoas a pensarem que só se pode ser africano consciente se se olhar para o mundo com lentes de “esquerda”, o que não significa necessariamente compreender bem o que significa ser de esquerda, mas sim estar contra o “neo-liberalismo”, a “Europa” (ou brancos ocidentais) e defender ditaduras desde o momento que elas se legitimem além fronteiras com alguma retórica anti-ocidental. Politicamente, não levo a sério nenhum colega que encontre algo apreciável em Putin, por exemplo.
Sei que estou a pisar calcanhares de algumas pessoas, mas parece-me importante porque isso, mais do que os males do colonialismo e do capitalismo (que são consideráveis) está a travar a realização dos nossos projectos de independência. Sem substância, não é possível fazer política. A qualidade do debate na esfera pública depende disso. Sem querer ser pretencioso, diria que praticamente todos os meus posicionamentos no que diz respeito a questões políticas têm como base a visão do mundo que fui construíndo a partir de leituras, discussões e reflexões em torno deste tipo de questões e, claro, em torno do conceito de liberdade. Isso não faz de mim melhor ser humano, nem detentor da razão e da verdade.
Mas nada do que digo em público é inocente em relação a estes assuntos e, portanto, quando discuto com alguém ou algum assunto, estou também sob influência dessas considerações.
Um exemplo simples. Ultimamente, tenho vindo a chamar atenção para os erros em comunicados oficiais no País. Alguém pode ver, com razão, pedanteria nisso. Mas não é isso, tanto mais que tenho consciência das minhas próprias dificuldades com a Língua Portuguesa. Recentemente, o Instituto Nacional de Petróleos emitiu um comunicado verboso que podia ser resumido a uma única linha: “o Instituto não passa credencial a nenhuma empresa que queira participar em concursos de prestação de serviços”. Essa era a mensagem. Dita desta maneira, ela revela logo problemas estruturais graves que deviam pôr todos os moçambicanos de sobreaviso.
Para já, é inconcebível que um sector tão importante como este não tenha procedimentos claros ao ponto de ter que vir a público esclarecer isso. Depois, quando passa pela cabeça de empresários que é preciso ir pelo Instituto para poderem vender os seus serviços fica claro que o sector está montado duma maneira que potencialmente permite o seu aproveitamento (ilegal). E não só. Tudo isto pode ser indicação de que não existe uma política clara de integração do empresariado moze na exploração dos nossos recursos, o que é grave. Então, os erros são sintomáticos de algo mais fundamental que é a falta de clareza sobre o que se faz. Se fossem só erros de língua, a gente podia deixar passar.
Chego a estas considerações todas a partir do meu entendimento da importância de “oportunidades”, “realização individual e colectiva”, “igualdade”, etc., conceitos estes que carregam consigo significados derivados da ideia liberal de política. Não é necessário que todos assinem esta ideia para a gente ter uma discussão útil. Mas a discussão pode ser difícil se não tivermos consciência dos pressupostos. Dito doutro modo, mesmo quando estou a “brincar”, faço-o em referência ao que outras pessoas mais inteligentes e estudiosas do que eu fizeram com palavras até se tornarem conceitos.
Nada disto é para limitar a discussão, nem mesmo para introduzir argumentos de autoridade de forma sorrateira. É apenas para reforçar a ideia de que existem pressupostos para tudo e que ter consciência disso pode contribuir imenso para a melhoria da qualidade do debate. E isso, no fundo, é a essência da política, impensável sem a ideia de tolerância, falibilidade, curiosidade, palavras que se tornaram conceitos também graças aos conceitos de liberdade...
Elisio Macamo
14 de fevereiro de 2022 ·
A linguagem dos conceitos
Na semana passada, uma amiga angolana, a Agbessi Cora Neto, disse-me uma coisa interessante. Segundo ela, um ex-Presidente de São Tomé e Príncipe, Manuel Aponto da Costa, afirmou numa entrevista radiofónica que não era possível ter uma democracia em África semelhante à Europa por causa do nível de analfabetismo e baixo nível cultural. Intuitivamente, concordei com ele. De facto, o nível de analfabetismo e de falta de cultura das elites políticas dos nossos países torna a realização do desiderato de democracia extremamente difícil.
O que me espanta muitas vezes nas atitudes das nossas elites políticas e sociais é a forma como reproduzem hábitos coloniais de protecção do seu ascendente sobre a sociedade. Da mesma forma que os regimes coloniais justificavam a negação de direitos com base na prioridade que davam à “civilização dos indígenas”, as nossas elites também procuram justificar as deficiências das suas formas de governação com base no que consideram serem as insuficiências das pessoas. Mesmo ao nível das desigualidades sociais, a tendência é de procurarem a explicação para a pobreza nas insuficiências das pessoas e não nas condições estruturais que as elites não conseguem transformar.
Uma tentativa de explicação que tenho para estes hábitos coloniais consiste na suspeita de que tenhamos dificuldades enormes em lidar devidamente com o mundo. Temos dificuldades em entender a relação entre a língua e o mundo. Relacionamo-nos com o mundo sem a devida atenção à intermediação que é feita pelos conceitos e, por isso, andamos de certo modo perdidos. Há aqui desafios epistemológicos complexos sobre os quais não dá para falar num texto desta natureza. Contudo, o essencial é, de facto, o nosso analfabetismo em relação à linguagem dos conceitos. Esse analfabetismo denuncia, por assim dizer, o nosso baixo nível cultural.
Fazer depender o funcionamento da democracia da alfabetização e de elevado nível cultural é o mesmo que esperar que quem conduz um carro tenha formação em engenharia mecânica, física, química ou coisa parecida. O veículo automóvel é uma operacionalização de todo esse conhecimento para que ao ser posto em prática ele simplesmente ajude as pessoas a realizarem certas tarefas. A democracia como conceito não é diferente do acervo de conhecimento por detrás daquilo que tornou possível o fabrico do veículo automóvel. A sua operacionalização consiste num conjunto de coisas que ele promove, nomeadamente a protecção e garantia de liberdades, a articulação de interesses sociais diversos de forma pacífica, a resolução pacífica de conflitos, a garantia do respeito e dignidade, a responsabilização dos governantes, etc.
Não existe nenhuma sociedade no mundo que não valorize estes elementos operacionais do conceito de democracia. A combinação que vai viabilizar isto vai necessariamente ser diferente. É por isso que a democracia na Suíça é diferente da que é praticada na Alemanha, França ou Grã-Bretanha. Mas cada uma delas protege, à sua maneira, estes elementos operacionais. Onde a democracia, portanto, não funciona, não é pelo facto de as pessoas não valorizarem estes elementos. É pelo facto de a sua disponibilização às pessoas ser deficiente. Se um engenheiro fabricar mal a viatura automóvel, ele não pode culpar os motoristas se estes tiverem dificuldades em a conduzir. Se o sistema político for disfuncional, o problema não pode estar nas pessoas, mas sim naqueles que têm a responsabilidade por o tornar funcional para as pessoas.
Mas é justamente aqui onde nasce o problema. Dum modo geral, as nossas elites políticas detestam a democracia. Quem diz elites políticas diz também uma boa parte da nossa elite intelectual. Por razões históricas compreensíveis que nos levaram a desconfiar das boas intenções dos países ocidentais, muitos de nós criamos uma aversão doentia por tudo que é ocidental. Já que fomos colonizados – maltratados e humilhados – por países que se consideram democráticos, partimos do princípio de que tudo o que vem de lá (tirando os artefactos tecnológicos, claro) é mau, não é nosso, e deve ser rejeitado por uma questão de princípio.
Abordamos a “democracia” como um significante vazio ao invés de procurar nele os elementos operacionais que, por mais curioso que pareça, estiveram na base da nossa luta pela dignidade. As lutas pela independência foram pela protecção e garantia de liberdades, a articulação de interesses sociais diversos de forma pacífica, a resolução pacífica de conflitos, a garantia do respeito e dignidade, a responsabilização dos governantes, etc. Portanto, há um sentido profundo em que a independência sem democracia não faz absolutamente nenhum sentido.
Quer a gente queira, quer não, a linguagem que, por enquanto, melhor enquadra o conceito de democracia é a liberal que está na base dos sistemas políticos ocidentais. Uma coisa é estar contra a arbitrariedade ocidental na política internacional, e outra é rejeitar o que há de útil na ideia liberal. Mesmo sem ter feito nenhum estudo, arrisco dizer que uma boa parte das nossas elites intelectuais e políticas se sente mais atraída pelos Putins, Fideis e Xi Jinpings desta vida do que pelos valores na base dos sistemas políticos que produziram um Trump ou Johnson.
Não percebem que nestes últimos, é possível fazer a distinção entre os valores do sistema político e as pessoas à frente deles, razão pela qual um Trump ou Johnson dificilmente serão capazes de impedir o sistema político de proteger os elementos operacionais da democracia. “Black Lives Matter” não é possível na Rússia, China ou Cuba e isso não é porque lá não haja racismo. Vejo isso de forma nítida na maneira como muitos de nós esfregamos as mãos todos felizes porque Putin vai dar uma licção ao Ocidente lá na Ucrânia. Não passa pela nossa cabeça que nós próprios ficaríamos muito chateados se a África do Sul ameaçasse nos invadir porque decidimos aderir a um sistema de segurança hostil a eles. É um reflexo dos tempos da revolução quando muitos aprenderam a papaguear um discurso pseudo-socialista hipócrita na base do qual demos cobertura, nos nossos próprios países, a atrocidades cometidas pelo próprio estado contra os inimigos fictícios da pátria.
Então, de novo, o analfabetismo e baixo nível cultural de que se trata aqui não é o do povo. É o das elites políticas e sociais que não entendem a linguagem dos conceitos que estruturam a nossa relação com o mundo. Com este tipo de elites a democracia em África, de facto, não é possível. É, na verdade, este analfabetismo e baixo nível cultural das nossas elites que explica a insistência num discurso político de resolução dos problemas do povo. E isso não é por um interesse especial no bem-estar do povo. É porque esse discurso protege melhor as prerrogativas do poder.
Elisio Macamo está com Zé Martins.
10 de janeiro de 2023 ·
Goda la ku bola
Aprendi esta expressão em Xangan recentemente. O Mauricio Zitha, amigo e o artista plástico de Xai-Xai que ilustrou o meu livro “O País Irreal” (pela Alcance Editores), faláva-nos do processo criativo por detrás das suas obras, uma das quais tem justamente o nome “Goda la ku bola” – corda apodrecida). Ao que parece, a expressão descreve a fragilidade do que parece forte, algo que no fundo retrata muito bem o elo social apesar de toda a aparência ao contrário.
Muito do que essa expressão encerra constitui uma descrição do Estado de direito no País. Parece forte pela capacidade que tem de se fazer sentir junto daqueles que menos se podem defender dele, mas extremamente frágil como a cola que torna robusto o elo social. Lembrei-me desta expressão enquanto reflectia sobre o que acaba de acontecer com um europeu que vive em Moçambique há anos. O seu pedido de naturalização foi indeferido depois de esperar oito anos pela resposta. Por coincidência, a decisão veio pouco depois de ele – segundo ele próprio – ter se queixado da demora nas redes sociais. Para piorar as coisas, a razão para a decisão parece ter sido a sua falta de idoneidade. Para além do indeferimento, ele é difamado.
Normalmente, fazemos este tipo de pugilismo de sombra para mostrar que somos soberanos. Celebramo-lo como uma demonstração de que em nossa terra os “tugas” não podem brincar (lembro-me duma vez receber a explicação de que a minha filha de nacionalidade alemã que recebeu um visto de três meses tinha que sair do País mensalmente porque era importante que os europeus soubessem que no País há leis). Fazemos isso mesmo sabendo que centenas – senão milhares – de outros estrangeiros das Ásias, de África e de não sei onde entram, pagam redes mafiosas instaladas nas instituições e obteem documentos “originais” em apenas dias. O poder do nosso Estado abate-se sobre quem acredita que a sua força deriva dos procedimentos cuja aplicação segue critérios administrativos e não emocionais.
Mais revoltante do que a própria decisão, contudo, é a impotência da vítima e de quem o queira apoiar. Onde o Estado de direito deriva a sua força da sua aplicação na base de procedimentos sujeitos à interpelação jurídica e cívica, grupos de cidadãos poderiam fazer representações junto das autoridades, deputados poderiam interpelar o ministério de direito, advogados poderiam interpôr recursos, etc. Em Moçambique isso só é possível na teoria. Na prática, a mesma morrosidade que fez com que a decisão levasse oito anos sem que ninguém a questionasse e sem que houvesse consequências pessoais e institucionais encarregar-se-ia de tornar fútil qualquer iniciativa.
A podridão da corda tem duas manifestações neste caso. Uma é a da própria lei que se fragiliza por se julgar sempre final. Só leis que passam o teste da interpelação é que podem ser fortes. A outra manifestação é ao nível dos decisores que nunca têm a oportunidade de corrigir erros e aprender disso. Esta é uma característica do nosso sistema de governação. O mecanismo social que garante a sua existência consiste em proteger os decisores de qualquer interpelação, condenando-os assim à atrofia política e intelectual.
E aqui nem falei da ausência duma discussão séria sobre a imigração e o que ela, bem pensada, pode ajudar a fazer para o nosso País. Uma discussão tão necessária quanto essa nunca acontecerá enquanto formos governados por uma elite política completamente indiferente à ideia de que o poder não está na decisão, mas sim em tudo o que precisa de ser acautelado para que a tomada de decisões não pareça arbitrária. Governar de verdade não é lutar contra a pobreza. É construir o Estado de direito.
Ser forte com os fracos e fraco com os fortes não é ser forte. É ser fraco. É ser “goda la ku bola”.
N.B. O quadro "Goda la ku bola".
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Elisio Macamo
30 de novembro de 2021 ·
Aeroporto “Eu sou o Patrão de Xai-Xai”
Excitado com o lançamento dum empreendimento que pode vir a fazer de Gaza a Singapura de Moçambique, fui consultar o Plano de Desenvolvimento Estratégico de Gaza para 2018-2027. Segundo ele, “em 2027, Gaza será uma província próspera e sustentável, livre da pobreza extrema e da fome”. A visão estratégica é de “promover os recursos endógenos de Gaza através da transformação da cadeia de valor agrária”. O plano foi elaborado por alguns daqueles que nos ajudam a morrer, portanto, os nossos “parceiros de cooperação” (PNUD, cooperação belga, sueca, etc.). É um documento arrepiante pelos seus lugares-comum e que nos países donde veio o dinheiro para a sua elaboração seria rasgado aos pedacinhos.
Mas esse é outro assunto. O que reparei nesse documento é que não se faz nenhuma menção ao aeroporto. Os tais 60 milhões que esta infra-estrutura custou são muitos para uma província como aquela. Tanta infusão de “mola” tinha que ter sido considerada na elaboração dum plano estratégico. Teriam escrito, “em 2021, as crianças de Gaza vão gritar de alegria por ver um avião a pousar em Chongoene, os seus pais estarão livres da pobreza extrema e da fome”. Mas nada. No prefácio, a Governadora, na altura, Stella da Graça Magalhães Pinto Novo Zeca, saúda em primeiro lugar o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, pela sua visão e sábia liderança do País e do nosso povo, por tudo quanto foi alcançado e pela transformação do plano num instrumento de desenvolvimento. Já está explicado porque esta infra-estrutura tem que ter o seu nome.
Só que não. O hábito dos tempos gloriosos de dar nomes dos Presidentes a infra-estruturas nunca foi bom e eu já me pronunciei várias vezes sobre isto. Entra em choque com o espírito democrático e, pior, colide com a necessidade de fazer da deliberação no seio da governação um instrumento eficaz. Numa altura em que decorre um julgamento onde bôdes expiatórios são sacrificados para proteger a cultura das “orientações superiores”, tresanda inaugurar um aeroporto cuja viabilidade económica é altamente duvidosa com o nome do Presidente da República. Isso significa, no mínimo, que o Presidente continua rodeado de pessoas que estão mais preocupadas em o agradar do que em trabalhar em boa consciência para o bem da comunidade. Eu acredito que a ideia não foi dele, mas o facto de ele não a ter rejeitado diz tudo sobre a sua perplexidade e sobre porque com ele este País está entregue.
Agora, há uma maneira de evitar o debate sobre a racionalidade deste empreendimento e sobre a qualidade da nossa liderança. É transformar o assunto numa questão tribal. É dizer que quem não gosta do nome atribuído ao aeroporto é porque é do Sul e não quer que se faça na sua região aquilo que eles andaram a fazer noutras regiões. Eu não gosto do nome por várias razões, mas nenhuma tem a ver com o facto de o Presidente ser de Cabo Delgado. Há anos estive contra a ideia de se rebaptizar o aeroporto de Mavalane para Samora Machel, e não foi por ele ser de Chilembene, e eu de Xai-Xai. A ideia de que a origem duma pessoa deve constituir razão para não se pronunciar sobre o que a incomoda revela muitos dos problemas de falta de imaginação que cada vez mais caracterizam a Frelimo. Quando a única mensagem política é “Unidade Nacional”, fica mais do que evidente que um partido está com dificuldades em gerir a sua própria diversidade.
Mas o argumento tribal é mau por outras razões. Primeiro, não há comparação possível entre Mondlane, Machel, Chissano e Guebuza, por um lado, e Nyusi, por outro. E não é porque uns são do Sul e o outro é de Cabo Delgado. Haveria comparação entre os primeiros e Chipande, Pachinuapa, etc. Fazem parte duma geração de ouro (mesmo com as devidas reticências), cuja vida e obra se confunde com o devir deste País. Atribuir os seus nomes a infra-estruturas (ainda que, por uma questão de princípio, eu esteja contra) não me parece tão grave quanto fazer o mesmo com um Presidente de outra geração. Ele simplesmente não tem o peso histórico que os outros têm. E devia ser do seu interesse proteger-se do ridículo procurando introduzir outras maneiras de fazer as coisas, algo que ele tem grandes dificuldades em fazer e, infelizmente, não parece ter o devido apoio.
Segundo, achar que quem é de Gaza e se opõe é porque não gosta do Norte é simplesmente fantástico. Nas últimas eleições, Gaza deu 94% do seu voto a Nyusi, contra 75% da sua província natal. O pessoal de Cabo Delgado que não votou em Nyusi é tribalista também? Em Gaza, ele teve melhor desempenho do que o seu próprio partido, mas mesmo aí, a Frelimo em Gaza teve mais 20% do que obteve em Cabo Delgado. Não interessa, por enquanto, se alguém andou a encher as urnas. O que interessa é que se as pessoas de Gaza tivessem um problema tribal, nunca teriam votado em massa por alguém de fora da sua província. Até correram com os adversários à paulada em cenas vergonhosas de perseguição de pessoas de Gaza que aderiram a outros partidos.
Terceiro, o argumento tribal é típico da nossa colonização mental. Os europeus meteram na nossa cabeça que é um problema sentir obrigações morais por quem nos é mais próximo. Pegam nisso para explicar porque andamos aos murros uns com os outros. Eles próprios são muito mais tribais do que nós. Quando fecham as fronteiras para protegerem os seus dos vírus que eles acham que nós estamos a transportar, eles estão a mostrar que sentem obrigações morais mais fortes pelos que lhes são próximos. Como estrangeiro aqui na Europa, para eu ter emprego é preciso que quem me emprega mostre que não existe candidato nacional ou europeu melhor qualificado do que eu. É tribalismo isso. Mas lá em África, andamos aí com a cabeça cheia da ideia de que é mau ser tribalista.
Pois bem, não é. Precisamos duma outra abordagem deste assunto para que a nossa própria perplexidade não seja a razão de conflitos “tribais”. Há uma distinção feita pelo filósofo David Miller que me parece útil. Ele distingue entre uma moral negativa e outra positiva. A negativa é a que me impede de fazer o mal a quem não pertence à minha malta. O importante aí é o respeito pela dignidade humana dum modo geral. Como pessoa do Sul não devo andar nas ruas de Maputo a insultar gente do Norte, nem mesmo recusar alugar casa a alguém por não ser do Sul. A moral positiva é que me obriga a respeitar as minhas obrigações para com os membros da minha família, da minha terra, da minha região, da minha igreja, do meu clube de futebol, do meu partido, da minha profissão, etc. A moral positiva é que forma comunidade. O importante não é, portanto, combatê-la, mas sim criar condições para que ela evolua dentro da observação da moral negativa. Esta, na verdade, serve sempre como um correctivo.
Há gente em Moz que é do mesmo partido, da mesma igreja, do Real Madrid, fã de Cristiano Ronaldo, do Benfica, bebe junta, trai junta, rouba do erário público junta, odeia os homossexuais com os mesmos níveis de obsessão, detesta a Frelimo, a Renamo ou o MDM, tem sempre algum problema com os Tugas, etc., mas acha que ser do Sul, Norte ou Centro é um defeito de carácter. Parece-me infantil e, até certo ponto, imbecil.
Mas conforme dizia mais acima, onde não há cultura de debate – e a Frelimo é cada vez mais o exemplo disso – haverá sempre gente apostada em encontrar razões para impedir que as pessoas façam interpelações críticas. O argumento tribal, fruto da nossa colonização mental, continua a ser um dos maiores. E funciona com os menos seguros de si próprios que vão calar o bico para não serem acusados de tribalismo. Comigo não funciona.
O nosso País está a ser mal governado. Não é porque o líder seja do Norte. É porque ele revelou não reunir as qualidades necessárias. Não duvido que haja gente de Cabo Delgado mais capaz do que ele. Mas mesmo essas pessoas, sem a ajuda do seu partido, nunca conseguiriam suprir eventuais lacunas. A prova das insuficiências deste é deixar que quem o devia aconselhar melhor atribua o seu nome a um empreendimento de racionalidade económica duvidosa. Uma pessoa que no seu discurso inaugural anunciou que o povo era o seu patrão devia se sentir mal rodeado de pessoas que procuram mostrar que ele não estava a ser sério quando disse isso.
Se fosse coerente, teria recusado e sugerido que o aeroporto se chamasse “Povo”. Pelo menos isso.
N.b. Fiz duas correções. Tinha esquecido de incluir "Machel" na lista dos ilustres e corrigi a data do Plano.
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