quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O “JUIZO FINAL”: DHLAKAMA E A DEMOCRACIA

 

O “JUIZO FINAL”: DHLAKAMA E A DEMOCRACIA
Agora, mais do que nunca, Afonso Dhlakama e a Renamo são chamados a demostrar, aos restantes moçambicanos e à opinião pública internacional, que a sua longa luta era, efetivamente, pela democracia.
Em várias ocasiões dos seus pronunciamentos públicos, o presidente do maior partido de oposição, Afonso Dhlakama, não esconde a sua ambição de figurar nos manuais da história de Moçambique como o “pai da democracia”. Todavia, em muitas circunstâncias, os factos contradizem o seu desejo.
Depois da 24ª ronda negocial, entre o Governo da Frelimo e a Renamo, por um período de cerca de três meses, a partir, da Segunda-feira do dia 28 de Outubro de 2013, a Renamo boicotou os encontros agendados para todas as Segundas-feiras, no centro de Conferências Joaquim Chissano, alegando a necessidade de facilitadores e observadores, capazes de aproximar as posições das partes, de modo a evitar impasses registados nas anteriores 24 rondas. De “improviso”, no encontro da 26ª ronda, realizado no Sábado, dia 1 de Fevereiro de 2014, os históricos inimigos – o Governo da Frelimo e a Renamo – ultrapassam os principais obstáculos e deram a conhecer que dentro de uma semana poderia ser convocada uma sessão extraordinária ou antecipada à sessão ordinária da Assembleia da República (AR), para a Revisão da Lei Eleitoral, com vista a acomodar as exigências da Renamo.
Embora seja de interesse de todos os moçambicanos e de qualquer homem/mulher de boa vontade, que se alcance, o mais depressa possível, uma solução negociada que ponha fim ao conflito armado que se prolonga há quase um ano, é, todavia, estranho que a questão da paridade nos órgãos eleitorais – nomeadamente a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Secretariado Técnico da Administração Eleitoral (STAE) – cujo desacordo “obrigou” Dhlakama a regressar ao mato, induziu o Governo da Frelimo a concentrar enormes recursos financeiros na aquisição de material bélico, custou o sangue de um número desconhecido de moçambicanos e obrigou Dhlakama a viver como uma hiena caçada num “lugar incerto”, tenha encontrado, na 26ª ronda, um entendimento tão miraculoso que não era possível encontrar nas precedentes 24 rondas.
De facto, alguns observadores críticos, olham com suspeita o entendimento alcançado que, embora possa fazer calar o barulho das armas, poderá comprometer o progresso do processo da democratização do país. No seu Editorial, da edição Nº 238, do dia 5 de Fevereiro de 2014, o editor do semanário Canal de Moçambique, Fernando Veloso, observa que se Dhlakama entrasse num compromisso que ajudasse a Frelimo a ganhar tempo para resolver a sua crise interna, então, ele “ficaria para a história como um desconseguido”. Por conseguinte, Dhlakama, não só ficaria “para a história como um desconseguido” mas a sua ação procrastinaria ulteriormente, o passo crucial do processo da democratização do país e, Dhlakama, seria, mais uma vez, culpado de ter hipotecado o desenvolvimento político de mais de 22 milhões de moçambicanos.
O fervoroso desejo de Dhlakama de entrar na história de Moçambique com o prestigioso título de “pai da democracia” é, quase sempre, ofuscado pelo seu comportamento quando se lhe dá a oportunidade para timbrá-lo: perde-se em coisas fúteis ou em cálculos medíocres. Já nas eleições de 1994, Dhlakama e a Renamo concordaram com a Frelimo que a Comissão mista criada pelas disposições do AGP, que tinha a responsabilidade de monitorar o processo das primeiras eleições, além dos representantes da comunidade internacional, não integrasse nenhuma outra força política para além dos elementos indicados pelos dois partidos assinantes do AGP. Aos outros partidos, se lhe foi reservado só a consultação (não vinculante) sobre o projeto da Lei Eleitoral. O protocolo III do AGP estabelece um tecto de 5 (proposto pela Frelimo) a 20% (proposto pela Renamo) dos votos expressos a nível nacional, para obter uma representação no Parlamento. Em 2009, a Renamo aceitou aliar-se à Frelimo para prejudicar os outros partidos da oposição. Que pai é esse que se alia com os “inimigos” para prejudicar o seu próprio “filho”? De facto, a ficar prejudicado, aqui, mais do que os outros partidos de oposição, foi o “filho de Dhlakama”: a democracia. Em nenhum destes importantíssimos momentos Dhlakama mostrou-se determinado para defender a democracia, em quanto tal. Mostrou-se mais preocupado em chegar à Ponta Vermelha, do que em promover a afirmação das regras democráticas.
Existem muitas razões para suspeitar que Dhlakama e a Renamo estejam a jogar a carta de 1994 e 2009; que a sua maior preocupação tenha deixado de ser aquela de substituir a Frelimo na Ponta Vermelha e se tenha reduzida àquela de impedir que um outro partido de oposição chegue ao poder ou conquiste o segundo lugar. De facto, o andamento das eleições autárquicas de 20 de Novembro, de 1 de Dezembro, em Nampula, e as últimas de 8 de Fevereiro, no Gurué, perturbou tanto a Frelimo como a Renamo, e poderá constituir a razão fundamental que está por de trás do acelerado novo entendimento entre os históricos rivais. Sentem-se ameaçados pelo inimigo comum: a vitória da democracia.
Além dos facilitadores e observadores, para o seu regresso à mesa das negociações, depois do abandono de Outubro de 2013, a Renamo tinha exigido também que os encontros negociais fossem tornados públicos, através da cobertura dos meios de comunicação de massa. Hoje, a mesma Renamo multiplica contactos diretos, de forma secreta, nas instalações da AR, com a desculpa de ser a forma encontrada para ultrapassar a crise o mais rapidamente possível. Que assuntos estarão a tratar, a Frelimo e a Renamo, sobre o Pacote Eleitoral, que não interessam os outros partidos e a inteira população moçambicana! O mais provável é que estejam a negociar, não a Lei Eleitoral, mas o que foi implicitamente anunciado no Boletim informativo da Renamo – “A Perdiz”, citado pelo CanalMoz, no qual proclama-se o advento do fim da guerra e a aurora de uma “paz verdadeira, assente na unidade nacional [...], com paridade de oportunidade em todos os aspectos da vida nacional”. Mas, paridade entre quem e quem? Entre todos os concorrentes ou uma paridade exclusiva entre os componentes do negociado secreto? Depois da citada 26ª ronda negocial, José Pacheco, por sua vez, disse que o Governo estava de acordo com os pontos referentes à desmilitarização da Renamo e a des-partidarização do aparelho do Estado. Qual seria, aqui, o significado de des-partidarização do Estado? Quanto tempo seria necessário para des-partidarizar o que foi partidarizado durante 38 anos? E quem faria a tal dis-partidarização? A Frelimo ou a Frelimo e a Renamo? E os restantes atores políticos o que estariam a fazer?
Fazendo uma leitura paralela do discurso da Renamo sobre a “paz verdadeira, assente na unidade nacional”, e o discurso de Pacheco sobre a des-partidarização do aparelho do Estado, faz temer que depois da tentativa frustrada de obter o terceiro mandato, e temendo não ser capaz de fazer passar nenhum dos seus delfins apresentados pela “Comissão Política”, Guebuza esteja a cogitar o adiamento das eleições de 15 de Outubro, com a desculpa de formar um Governo de Unidade Nacional, que teria como mandato principal a desmilitarização da Renamo e a “dis-partidarização” do aparelho do Estado. Este seria mais um engano ao povo moçambicano. A Renamo, tendo sido incapaz de ser uma alternativa, estaria, agora, a abandonar-se nas mãos da Frelimo para ser cooptada a engrossar as fileiras daqueles que se enriquecem ilicitamente á custa do Estado.
A estratégia medíocre de Dhlakama pode ser fruto de uma leitura equívoca dos progressos políticos de Moçambique. Se pensasse que a única razão que induziu a Frelimo a procurar formas para acomodar as exigências da Renamo foi o sucesso militar registado pelo seu movimento, desde o Blitz de Sadjundjira, então estaria enganado. Foi um concurso de outros factores que obrigou o Governo da Frelimo a redimensionar as suas posições: a ascensão do MDM, a crise interna do partido e, sobretudo, a pressão popular. O sucesso dos guerrilheiros da Renamo foi possível e continua a ser possível porque tem o apoio da opinião pública de uma extra grande maioria dos cidadãos. A Rebelião foi vista como uma expressão do descontentamento colectivo. Ora, se Dhlakama e a Renamo querem passar do lado dos opressores, o povo continuará a sua luta sem a Renamo e contra a Renamo.
Não obstante Dhlakama se considere o “pai da democracia”, além das rivalidades de carácter político, mostra também uma aversão pessoal pela figura de Daviz Simango. Ele (Dhlakama) que se considera também “pai” do presidente do MDM – por ter sido ele quem o foi buscar em Inhambane para trazê-lo na política -, não parece alegrar-se com o sucesso do seu “filho”. Pelo contrário, parece estar disposto a destruí-lo, e se necessário, com a ajuda da Frelimo. Na entrevista que concedeu, no “lugar incerto”, a Fernando Veloso, e que foi publicado no Canal de Moçambique, edição 230, do dia 11 de Dezembro de 2013, falando do seu “filho”, Daviz Simango, Dhlakama usa tons sarcásticos, trata-o com irreverência e desrespeito, procurando sempre denigrir a sua imagem. Para justificar a separação entre eles acusa-o de corrupção e falcatruas, sem apontar explicitamente os crimes cometidos. Fala, estranhamente, do sucesso do presidente do MDM, na Beira, como se dependesse do simples facto que, depois da separação, Dhlakama não foi a Beira para pedir os beirenses para que não votassem no Simango. E para terminar o seu discurso, Dhlakama prognostica o fim do MDM num espaço de 5 a 20 anos.
Um político não deveria ter em conta a idade do seu adversário – se é “miúdo” ou “ancião” -, nem a sua precedente condição social. O ataque que se deveria dirigir a um adversário político é contra o seu programa político ou contra as suas políticas públicas. O ataque à pessoa do adversário é considerado politically incorrect. Desta vez, porém, o líder da perdiz fica perdoado porque concedeu a entrevista estando num “lugar incerto” onde provavelmente é difícil selecionar as palavras adequadas para atacar um adversário político.
Os equívocos na leitura dos fenómenos do progresso do jogo político moçambicano faz com que políticos retrógradas como Dhlakama e Guebuza recorram sempre às velhas tácticas e estratégias para afrontar os problemas atuais. Ora, o que Dhlakama pode não ter percebido é que o gesto (aquele de separar-se da Renamo) e o sucesso de Simango sejam uma manifestação clara que Moçambique, além de pessoas como Édsom Macuácua que passam a vida a lamber as botas de uma classe dirigente que já esgotou as respostas para os antigos problemas e, na incapacidade total para afrontar os novos problemas, preferem a “morte de Sansão com todos os filisteu” (cf. Jz 16,30), existem muitos outros homens e mulheres que recusam-se a submeter-se passivamente a esta lógica, porque julgam-se capazes de propor alternativas melhores.
Não há dúvidas que Dhlakama será recordado na história de Moçambique. Mas será recordado pelo bem que terá feito e também pelos erros que terá cometido. Duvido que os moçambicanos o recordem como “pai da democracia”. Não só pela desonra que fez à democracia nos momentos cruciais da sua fase de afirmação, mas também porque é contraditório. A palavra “democracia” é composta da palavra “demo” que significa povo e “cratia” que significa poder. Portanto, poder do povo, para o povo e pelo povo. Se é do povo, então dificilmente seria gerado por uma só pessoa. As pessoas individuais podem gerar uma ditadura, não uma democracia. Winston Churchill e Franklim Roosvelt bateram-se energicamente contra os regimes fascistas e totalitários na Europa durante a Segunda Guerra mundial e promoveram a democracia, mas nunca pretenderam ser chamados “pais da democracia”. A democracia é o ponto de chegada do progresso político, económico e social de um determinado povo ou região geopolítica. Ela representa, para aquele povo que a adopta, o novo ponto de equilíbrio sociopolítico, que substitui o precedente equilíbrio que conheceu uma crise. O velho equilíbrio que, para a sua solução requer a democratização, pode ser entre os governantes e os governados, ou entre as várias elites políticas. É precisamente o que está a acontecer em todo o subcontinente africano, desde o fim da década Oitenta e princípios da década Noventa.
Para dar inteligibilidade ao facto que as negociações de Roma entre a Renamo e o Governo da Frelimo tenham integrado o processo da democratização, devemos enquadrá-las dentro de um concurso e convergência de muitos outros progressos de carácter nacional, regional e internacional. De facto, em 1989 celebrou-se um acontecimento que teve um extraordinário impacto internacional: foi a queda do muro de Berlim, no dia 9 de Novembro. Embora o governo americano não tenha declarado explicitamente que a “capoeira” passava a ser governada por um só galo (aquele de cor liberal-democrática), políticos argutos como Joaquim Chissano, não podiam não perceber que o ritmo da música tinha mudado e que era necessário mudar o passo da dança. De facto, enquanto as negociações com a Renamo estavam ainda em curso – como se se tratasse de uma estratégia tencionada a desfazer o nó da guerra e o nó causado pelo fim precipitado do regime comunista soviético – Chissano fez aprovar a Constituição de 1990 que lançava o processo da democratização do país.
É possível que, na altura, a prioridade do Governo de Chissano fosse o fim da guerra civil e a passagem da tutela soviética para a tutela americana, e não particularmente a democratização do país. Contudo, passam mais de 20 anos depois da assinatura do AGP e, com o passar de tempo, a sociedade moçambicana também mudou. Graças àquele passo que pôs fins às hostilidade e permitiu o progresso socioeconómico, nasceu uma sociedade que quer ver as instituições políticas democratizadas, não só de nome, mas também de facto.
Pelo que me parece, este é o novo rumo da questão política moçambicana e só sobreviverão aqueles políticos e elites políticas que estão dispostos a “dançar” ao ritmo desta nova música. Esta é uma oportunidade “única” para o Senhor Afonso Dhlakama demostrar qual é a “música” que “dança”. O tempo de apelar aos princípios democráticos que sirvam só para substituir a Frelimo, para depois gerir a vida política com regras não democráticas, já passou.
Alfredo Manhiça

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