Guerra justa
Há uma diferença abismal entre reconhecer o bem e o mal para saber como agir de acordo com o bem, e julgar pelo simples prazer de se sentir mais decente do que os outros. Essa é a diferença entre moral e moralismo. A moral não é absoluta porque nenhum de nós é perfeito. Ela é apenas uma referência na base da qual pessoas imperfeitas e falíveis tentam conduzir as suas vidas e corrigir os erros, pequenos e grandes, que vão cometendo. A moral absoluta é uma aberração e própria de regimes totalitários. É uma moral que não concede ao indivíduo a liberdade de errar para ser responsável pela sua própria conduta.
Em Moz., e talvez como sinal dos tempos que o mundo inteiro vive, há uma forte tendência para o moralismo. Ela manifesta-se de duas maneiras radicalmente opostas. Por um lado existe aquela manifestação que recupera comportamentos cada vez menos toleráveis, atribui-lhes um nome que, normalmente, termina em “ismo” e ao invés de estimular uma reflexão cuidada que reconheça os desafios ético-filosóficos que lhes são atinentes, promove acções que emocionalizam a reflexão e conferem a quem a elas se associa o estatuto de apóstolo moral. É uma moral narcisa como a vemos nas redes sociais de cada vez que um coitado qualquer se descuida na fala ou no comportamento. A outra manifestação costuma ser uma reacção a esta emocionalização que reafirma as práticas como sendo expressões culturais e, longe de estimular uma reflexão, procura a todo o custo apresentar quem se indigna – porque normalmente essas práticas deviam produzir esse efeito – como sendo desvairado, inimigo do bem comum, etc.
Ambas são manifestações do mesmo fenómeno na medida em que promovem uma concepção absoluta da moral que nem permite qualquer discussão que seja. Ou a pessoa está dentro, ou ela está fora. Isto polariza desnecessariamente a nossa sociedade ao mesmo que trivializa a democracia. Privados da reflexão e deliberação calma destes desafios éticos, ficamos reféns duma discussão dos nossos assuntos que não é enformada por qualquer moral. Ou melhor, a única moral que passa a contar é a moral do mais forte e de quem grita mais forte. Isto é grave porque o nosso País enfrenta problemas sérios que não vão ser abordados com utilidade sem o recurso à discussão ética.
Um desses problemas é a violência em Cabo Delgado. Era tão bom se fosse possível reduzir-la ao simples problema de eliminar malfeitores para que o povo viva em paz. Só que não é assim não. Para além de tudo que se possa legitimamente dizer sobre as causas e sobre os responsáveis, Cabo Delgado transformou-se num problema que precisa da ética para ser abordado. Não é preciso inventar a roda para tal. Desde tempos imemoriais discute-se a ética da guerra, cuja principal distinção é feita entre o que se chama de guerra justa (jus ad bellum) e conduta justa da guerra (jus in bello). Todas as grandes religiões contribuíram reflexões importantes que são recuperadas em muitas convenções internacionais. Dum modo geral, uma guerra é justa quando a causa é justa. Uma causa é justa quando a guerra é o único meio para resolver um determinado problema e, acima de tudo, quando o adversário se tornou susceptível de ataque. Embora não exista consenso entre os filósofos que discutem esta matéria, a forma como uma guerra é conduzida confere-lhe também justiça. A conduta na guerra tem que ser proporcional e, sobretudo, tem que fazer uma distinção entre soldados e civis.
Em Cabo Delgado a situação é clara. O nosso País é vítima de agressão por parte de grupos de malfeitores. A guerra que as nossas Forças de Defesa e Segurança movem contra esses agressores é justa. A questão é, contudo, se a forma como essa guerra justa é feita é também justa. Pelos relatos que temos de várias fontes, incluindo de membros das próprias FDS, há fortes razões para supormos que o “jus in bello” tenha sido mandado às favas. Aliás, seria surpreendente se esse não fosse o caso, pois, infelizmente, no nosso País respeitamos muito pouco a dignidade humana e, politicamente, continuamos reféns da ideia segundo a qual os fins justificariam os meios. Permitir que um soldado (ou polícia) agrida um civil (ou que maltrate um malfeitor) como forma de ganhar a guerra é desumanizar o próprio agente fazendo dele um violador da dignidade humana. Mas não é só isso. Permitir excessos durante a guerra é cuspir contra todos os valores proclamados na constituição, sobretudo aqueles que nos definem como agentes morais. É também passar a clara mensagem de que cada um de nós é apenas um meio para que se alcancem objectivos, não um fim em si próprio como todo o sistema moral são e decente exige que os indivíduos sejam tratados.
Mas há uma outra razão ainda mais importante para observar o “jus in bello”. A protecção da dignidade humana de cada um de nós requer um governo que aborda os nossos problemas com referência a alguma moral. Isso protege o governo da tendência de tratar os problemas como se fossem meros assuntos técnicos e encoraja-o a olhar para eles como desafios políticos que exigem tratamento político. Isto não significa que ao fazer isso o governo tenha que abandonar a via militar. Longe disso. Ao fazer isso o governo vai poder tomar em consideração tudo o que, politicamente, deve ser feito para que a solução militar seja eficaz e sustentável. É assim que se abordam os problemas do País com sentido de responsabilidade e de Estado.
Para mim, a insensibilidade demonstrada pelo Presidente em relação às críticas sobre a conduta das nossas FDS é profundamente assustadora. O garante da nossa constituição não parece fazer ideia do compromisso que esse documento representa. Só o facto de não contemplar a possibilidade de declarar um estado de sítio em Cabo Delgado para reafirmar o seu compromisso com a legalidade é por si só sintomático dessa perplexidade. É esta insensibilidade, mais do que as fragilidades das nossas FDS, que vai garantir que ele legue o problema ao seu sucessor. Cabo Delgado ainda vai crescer e consumir a energia de pelo menos mais um Presidente se este persistir no seu autismo moral encorajado por bobos da corte que confundem moral com moralismo.
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