sexta-feira, 17 de abril de 2020

Sociologia do lambe-botismo

Sociologia do lambe-botismo
Existe um equívoco entre nós sobre os chamados “lambe-botas”. Consiste na ideia de que o impulso de defender os detentores do poder atacando quem os critica corresponde a uma estratégia profissional para garantir posições no Estado. Não há dúvidas de que esse cálculo existe, mas ele não me parece essencial para explicar a existência deste tipo de gente. O que explica o fenómeno é uma concatenação de mecanismos sociais que diz muito sobre o tipo de sociedade que somos e o que teremos de fazer para vencer as várias batalhas à nossa frente.
O ponto central para explicar isto é o papel central do Estado na distribuição de bens sociais, o mais importante dos quais é o emprego de prestígio. Por razões histórico-políticas, o aparelho do Estado impôs-se como a principal vaca leiteira. Nos tempos da Frelimo gloriosa o acesso ao Estado dava-se por via do partido e da associação ao seu discurso revoluccionário. Isso atraíu os que acreditavam nesse discurso, mas também os que fingiam acreditar para garantir a sua própria existência. Criou-se nesses tempos uma relação discursiva oportunista com quem controlava o aparelho do Estado e que se radicalizou com a abertura política. Esta, teoricamente, abria a possibilidade de outros “senhores” controlarem o acesso ao Estado, o que teria consequências mais do que desastrosas para os detentores do poder que sempre dependeram desse Estado para a sua própria reprodução com a agravante de que o discurso socialista os havia impedido de acumularem riqueza e garantir a viabilidade do partido Frelimo com outros meios.
Nestas circunstâncias, “proteger” o Estado desses outros passou a ser um dos elementos centrais da acção política. Não é a primeira vez que escrevo sobre isto. Já tentei explicar, por exemplo, o que a gente chama de corrupção um pouco nestes moldes. Dentro deste tipo de cultura política todo o enriquecimento de membro da Frelimo que pudesse ser justificado como uma maneira de evitar que as riquezas caíssem nas mãos “erradas” era bem vindo mesmo que fosse por meios ilegais e imorais. Então, o “lambe-botas” não é necessariamente aquele que quer tirar benefício pessoal dos ataques que ele faz aos outros. Isso é um efeito secundário. O “lambe-botas” é um indivíduo movido pela lealdade genuína a quem está no poder e que ataca quem critica como forma de proteger o acesso ao Estado. O “lambe-botas” é sincero na sua postura. Ele acredita honestamente na ideia de que só a Frelimo é que pode fazer bem ao País, algo que por enquanto é verdade, mesmo que as razões não sejam exactamente as mesmas. O seu ódio a tudo que não é Frelimo é sincero e ele racionaliza-o como amor à pátria ao mesmo tempo que ele racionaliza aquele que critica como “mão externa”.
Vem daí a obsessão com os críticos e a necessidade que o “lambe-botas” tem de sempre os contrariar. Mas não só. É interessante olhar para a própria morfologia dessa reacção aos críticos. Ela raramente é feita com apelo à discussão dos méritos das questões colocadas. O “lambe-botas” reage sempre ao que ele pensa ser a motivação de quem critica: deve ser porque o crítico odeia o governo, ou porque foi orientado por alguma força obscura para atacar, ou qualquer outra razão oportunista. O “lambe-botas” não acredita na utilidade do debate porque, por disposição intelectual, ele está formatado para olhar para a política de forma maniqueísta: existem os bons e os maus. O papel dos bons – portanto, a malta do “lambe-botas” – é, literalmente, de destruir os maus. É tão forte esta disposição que a pior coisa que poderia acontecer a um “lambe-botas” seria, curiosamente, a ausência da crítica. Ele ficava sem missão, o que seria duro. Por isso, uma das suas funções é inventar “críticos” do regime.
Falei da concatenação de mecanismos sociais. Pois, o que acontece, e isto é preocupante, é que somos membros duma cultura política que produz a mediocridade. O acesso aos bens sociais – distribuídos pelo Estado – faz-se por via da lealdade a quem detém o poder político. Isso faz com que o pensamento independente e criativo seja arriscado. Ao mesmo tempo, porém, o sistema “selecciona” quem tem uma disposição natural para este tipo de lealdade – portanto, pessoa com perfil maniqueísta – de tal modo que mesmo quem chega ao topo é, potencialmente, uma pessoa que necessariamente cultiva a mediocridade, pois o principal incentivo não é o desempenho, mas sim a manutenção da prerrogativa de poder. A Frelimo não escolhe nenhum dos seus representantes na base da qualidade do seu pensamento, mas sim na base critérios virados para a reprodução do seu poder. Isto não quer dizer que esses representantes sejam necessariamente pessoas não-inteligentes ou incompetentes. Mas a inteligência e competência são efeitos secundários.
Esta é, em traços gerais, a sociologia do “lambe-botismo”. O curioso é que ela se aplica também aos outros partidos assim como às OSC. O principal impulso é o maniqueísmo e a consequente defesa intransigente duma prerrogativa de poder essencialmente hostil à deliberação. Quando digo que esta sociologia revela o tamanho do desafio à nossa frente refiro-me a isto. A utilidade do pensamento não se mede pela contribuição que ele faz à deliberação, mas sim ao que ele contribui para a defesa de alguma prerrogativa de poder (ou acesso a ele). Para a democracia isto é fatal. O debate na esfera pública não é valorizado como uma oportunidade que cada um de nós tem de no confronto com outras ideias melhorar a sua própria compreensão do que defende. O debate é visto como algo destabilizador. Este é o eco-sistema ideal para a emergência, crescimento e reprodução do “lambe-botas”, pois a sua principal razão de ser é o horror à confrontação de ideias.
O sistema político também não ajuda grande coisa, pois ele não encoraja a abertura de espírito. Os deputados vão ao parlamento não para discutir os méritos dos assuntos apresentados, mas sim para defender o resultado pré-definido, portanto, aprovar para os da Frelimo e não-aprovar para os da Renamo e do MDM. Ele não premeia a autonomia intelectual porque ela pode pôr em risco a prerrogativa do poder. É por essa razão que o ataque ao próprio correligionário é ainda mais virulento, que o diga Samito Machel, pois a última coisa que se quer é revelar fragilidades. Daí também, no caso da Frelimo, os apelos incessantes à coesão que se traduzem em unanimidade e no esconder da crítica na célula, onde, como se sabe, ela também não ocorre, pois ela seria um atentado à coesão.
Assusta-me o que consigo apurar deste exercício de reflexão. Por duas razões. Vejo, por um lado, a maneira como a Frelimo se auto-destrói e, por outro, como este tipo de cultura política inviabiliza o País inteiro. O silêncio do Presidente em relação a Cabo Delgado e a sua preferência pelo supérfluo em ambientes restrictos (encontro privado com outra pessoa inútil, nomeadamente o líder da Renamo) são sintomas desta esclerose. Mesmo a dificuldade que a Comissão Política tem de realmente dar o apoio político e intelectual que o Presidente precisa de ter é sintomática dessa esclerose. Está tudo viciado no sentido de manter e reproduzir a cultura da mediocridade que a sociologia do “lambe-botismo” revela.
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  • Narcisio Macamo Os puxa sacos não vao entender a reflexão do prof.
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  • Lyndo A. Mondlane O ultimo parragrafo è demoledor

    O sistema roça a perversao

    E em tudo isto a victima è o pais e seus habitantes que nao progressam como deveriam
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  • Régis Rembeleki Se não inicio o comentário com um elogio é por presumir que seja dispensável.
    Primeiro dizer que o conceito que se tem, inclusive eu de lambebotismo era de certa forma deturpado na medida em que tal fenômeno ocorre quando alguém defende um posicionamen
    to da Frelimo sem importar se é ou não exequível.
    Segundo, o que sempre me espantou é que todo que se opõe a um posicionamento da oposição é taxado como lambebotas, mesmo que resulte de um exercício racional e aparentemente não faça parte ou anseie entrar para o circuito neopatrimonialista. Tal como constatou e concordo, os "críticos" acérrimos e de plantão ao governo, a Frelimo e ao Presidente Filipe Nyusi ou ao lambebotas que os apoia acaba sendo um lambebotas na seguindo o raciocínio maniqueísta, pois vê o que vem de outra facção como sendo mau e por se combater.
    A cultura do lambebotismo pode ser a força motriz dos críticos e defensores das diferentes facções, com destaque para a Frelimo, Renamo e o Mdm.
    Há necessidade de se fazer política com raciocínio e ciência, competência e não apenas confiança política se querem que este país realmente progrida. Não é o ataque ou meramente a mudança do partido ou indivíduo no poder que tirará o país do marasmo no qual se encontra, mas sim a reforma ou reinvenção de todo sistema político nacional para que ideias sejam debatidas e não pessoas, tal como sempre o deputado da Renamo António Muchanga o faz, postura a qual os da Frelimo se ancoram quando respondem-no. Meu país precisa ser repensado e reinventado.
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  • Noe Nhancale "a pior coisa que poderia acontecer a um “lambe-botas” seria, curiosamente, a ausência da crítica. Ele ficava sem missão," profundo!
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  • Ilidio Da Silva Profunda reflexão Prof Elisio Macamo
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  • Antonio Gundana Jr. Que o Altíssimo ilumine Moz nessa dura e longa empreitada de consolidação da democracia. É que as coisas estão a chegar a uns níveis em que só se pode deixar nas mãos de Deus mesmo a mudança!
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  • Walter Bastos Bastos Professor Elisio Macamo, este texto não só revela esta cultura a Moçambique, mas de forma análoga à Angola. A cultura da mediocridade e do lambebotismo são as consideradas correctas pelo partido da situação. Criaram até um defensor-ferrenho contra os "detratores do sistema", que rebate em hasta pública as opiniões de quem confronta e critica o sistema. Como Portugal dividiu-se entre os que legitimavam os roubos de Angola, por terem benesses e uma franja solidária ao povo angolano que vendo a miséria deste, criticava a ostentação abusiva dos governantes angolanos em Portugal. Para contrapor este último grupo, inventou-se a figura de "Embaixador Itinerante" (nunca antes visto desde que tomei consciência da organização política dos Estados, salvo ignorância minha ou falta de informação). Esta figura quase se instalou em Portugal pelo facto de tornar-se uma praça dos debates sobre Angola. A ideia era branquear a imagem de Angola, sobretudo no exterior e abarruar todos aqueles que se exprimiam contra os excessos da governação, mesmo com situações bastante visíveiss. O mais triste é que além deste tal Itinerante havia um grupo eleito de lambe-botas portugueses, vestindo capas de consultores qur tinham o mesmo fim.
    Para promover a cultura da mediocridade, o MPLA criou ainda os chamados "Comités de Especialidades do Partido", exemplo: Comité de Especialidades dos Sociólogos, dos Economistas... Numa verdadeira aberração à ciência, uma vez que ambas não coabitam (ideologia e ciência).
    Estas e outras formas de promoção e ascensão social de muitos em Angola torna-os reféns de pensamento e cometem crimes hediondos contra a ciência, a vida e contra a honestidade; uma forma estranha de "legitimar" a ascensão social, mas que na realidade matam o espírito crítico, científico que deve caracterizar um homem de ciência. Em consequência deste recrutamento de consciências, vemos tanta gente formada sem ideias nem senso crítico, não por não saberem, por terem as consciências presas...
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    • Elisio Macamo a cultura não é exactamente de lambebotismo. o lambe-botismo revela uma cultura política que promove a mediocridade por se concentrar demasiado na defesa da prerrogativa do poder. é este processo que precisamos de entender. o lambe-botas em si não é assim tão importante.
    • Walter Bastos Bastos Elisio Macamo, grato, professor!
      Essa cultura política também revela a mediocridade de quem promove. Tal como retratam a alegorias do "rabo de palha" e do "rabo preso": ...Que tal ficarmos entre nós e assim ninguém fala das fraquezas do outro!... E lá vamos nós, com práticas antiquadas num século tão desafiador.
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    • Elisio Macamo pois, é isso. seria interessante aprofundar a análise com uma descrição mais etnográfica. por exemplo, há toda uma teia de crenças que se torna numa prisão para as pessoas. à medida que vão inventado inimigos da pátria, instrumentalizados, paus mandados, invejosos, etc. eles vão criando um mundo da fantasia dentro do qual se sentem confortados e podem ganhar novas energias para cultivar a mediocridade...
    • Walter Bastos Bastos Elisio Macamo e aprofundando esta análise estaríamos evitando que os "sistemas políticos" recrutem membros, ou ao menos diminuir potenciais "recrutados" para se juntarem aos "lesa-pátria".
      Apesar de ser uma prática do comunismo (se não é a nosso favor, é contra), ainda acredito que não era isso que Marx e Engels perspectivaram.
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  • Elísio de Sousa Este artigo lembra-me vagamente a obra de um célebre autor cujo título é “Mein Kampf”.
    O resto, podem googlar.
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  • Chibanga Victor Ora viva Elísio Macamo. Muito obrigado por nos proporcionar, em poucas palavras, uma radiografia do lambebotismo em Moçambique. Realmente, o lambebotismo tornou-se uma corrente discursiva que, muita das vezes, atua para combater a crítica da classe intelectual, em defesa do governo do dia. Esta corrente teme que haja uma sociedade onde predomina o debate crítico, acima de tudo , contraditório. Por isso, o governo tem procurado fazer com que a esfera pública funcione como uma religião, em que todos fazem a mesma oração. Pos, querem fazer da sociedade uma orquestra em que cada um de nós se harmonize com com o discurso oficial. E ainda que o discurso oficial seja desprovido de alguma racionalidade, sempre procuram reproduzir esse discurso, de como se tratasse de uma oração de proveniência divina.
    O grande problema, é que existe um falso discurso que se apoia na ideia de que a crítica deve surgir dentro da Frelimo e não fora do partido. Mesmo assim, a crítica que se faz dentro do partido deve ser feita com medida, de modo a não extrapolar a disciplina partidária. Os que extrapolam a tal disciplina consequentemente são considerados como "mão externa".

    Diante desta situação, quer me parecer que estamos perante a um governo que teme dialogar de forma clara com as diferentes correntes de conhecimento. Estamos perante um sistema de governação que se fecha na mediocridade, e que tem vergonha de acatar boas ideias provinientes dos estudos desenvolvidos pelos cientistas sociais. Sendo assim, estamos inseridos num sistema de governação que não gosta aprender com os erros dos outros.

    Mesmo em relação à situação de Cabo Delegado, muitos cientistas sociais advertiram que as sucessivas descobertas dos recursos minerais poderiam transformar o país numa bênção ou maldição, se não houver políticas claras e eficazes de distribuição dos recursos minerais. Só que muitos desses estudiosos receberam duras críticas por parte dos lambebotas.
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    • Elisio Macamo o problema é que não é uma questão do governo. isto é transversal, mas nota-se melhor quando vem do governo. é toda uma postura "nacional". a renamo e a sociedade civil têm, também, os seus lambe-botas. a única diferença é que estes não são bobos da corte porque lá não há corte...
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  • Brazao Catopola "O lambe-botas é movido por uma lealdade genuína a quem está no poder". Certo! Daí entre os ditos leais ao partido criarem a seguir alas do "lambe-botas". Aqueles que apoiam aquele(s) que esteve(iram) no poder e aqueles que apoiam os que estão no poder. A fome vai nos matar aqui muito cedo. Gosto!! Vou expostar está observador para um grupo ali que não aceita outros pensares...
    • Gito Katawala Brazao Catopola
      Em Nyanja (Cinyanja) existem dois termos para descrever essas atitudes. Um dos termos foi "nacionalizado" nos cânticos revolucionários do nosso tempo. O termo "kapilikoni". Basicamente se usa para descrever ou distinguir o agitador, o i
      ntriguista e queixinhas. O outro termo é o "chawichi". O chawichi é aquele que está sempre a falar bem do anfitrião da "sadaca", ou seja, festa. Onde há "comeretes e beberetes" há sempre um diligente que mesmo não sendo membro da família ou acompanhante do MC, se destaca em querer estar no cargo da distribuição da comida ou de impedir que as crianças se apoderem dos nacos principais. O chawichi às vezes chega voluntariar-se para ser o distribuidor da comida.
      Bom, pensei que com o teu background em antropologia fosses entender a metáfora. Os lambebotas sempre existiram na nossa tradição... Hehehe.

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