Sociologia do lambe-botismo
Existe um equívoco entre nós sobre os chamados “lambe-botas”. Consiste na ideia de que o impulso de defender os detentores do poder atacando quem os critica corresponde a uma estratégia profissional para garantir posições no Estado. Não há dúvidas de que esse cálculo existe, mas ele não me parece essencial para explicar a existência deste tipo de gente. O que explica o fenómeno é uma concatenação de mecanismos sociais que diz muito sobre o tipo de sociedade que somos e o que teremos de fazer para vencer as várias batalhas à nossa frente.
O ponto central para explicar isto é o papel central do Estado na distribuição de bens sociais, o mais importante dos quais é o emprego de prestígio. Por razões histórico-políticas, o aparelho do Estado impôs-se como a principal vaca leiteira. Nos tempos da Frelimo gloriosa o acesso ao Estado dava-se por via do partido e da associação ao seu discurso revoluccionário. Isso atraíu os que acreditavam nesse discurso, mas também os que fingiam acreditar para garantir a sua própria existência. Criou-se nesses tempos uma relação discursiva oportunista com quem controlava o aparelho do Estado e que se radicalizou com a abertura política. Esta, teoricamente, abria a possibilidade de outros “senhores” controlarem o acesso ao Estado, o que teria consequências mais do que desastrosas para os detentores do poder que sempre dependeram desse Estado para a sua própria reprodução com a agravante de que o discurso socialista os havia impedido de acumularem riqueza e garantir a viabilidade do partido Frelimo com outros meios.
Nestas circunstâncias, “proteger” o Estado desses outros passou a ser um dos elementos centrais da acção política. Não é a primeira vez que escrevo sobre isto. Já tentei explicar, por exemplo, o que a gente chama de corrupção um pouco nestes moldes. Dentro deste tipo de cultura política todo o enriquecimento de membro da Frelimo que pudesse ser justificado como uma maneira de evitar que as riquezas caíssem nas mãos “erradas” era bem vindo mesmo que fosse por meios ilegais e imorais. Então, o “lambe-botas” não é necessariamente aquele que quer tirar benefício pessoal dos ataques que ele faz aos outros. Isso é um efeito secundário. O “lambe-botas” é um indivíduo movido pela lealdade genuína a quem está no poder e que ataca quem critica como forma de proteger o acesso ao Estado. O “lambe-botas” é sincero na sua postura. Ele acredita honestamente na ideia de que só a Frelimo é que pode fazer bem ao País, algo que por enquanto é verdade, mesmo que as razões não sejam exactamente as mesmas. O seu ódio a tudo que não é Frelimo é sincero e ele racionaliza-o como amor à pátria ao mesmo tempo que ele racionaliza aquele que critica como “mão externa”.
Vem daí a obsessão com os críticos e a necessidade que o “lambe-botas” tem de sempre os contrariar. Mas não só. É interessante olhar para a própria morfologia dessa reacção aos críticos. Ela raramente é feita com apelo à discussão dos méritos das questões colocadas. O “lambe-botas” reage sempre ao que ele pensa ser a motivação de quem critica: deve ser porque o crítico odeia o governo, ou porque foi orientado por alguma força obscura para atacar, ou qualquer outra razão oportunista. O “lambe-botas” não acredita na utilidade do debate porque, por disposição intelectual, ele está formatado para olhar para a política de forma maniqueísta: existem os bons e os maus. O papel dos bons – portanto, a malta do “lambe-botas” – é, literalmente, de destruir os maus. É tão forte esta disposição que a pior coisa que poderia acontecer a um “lambe-botas” seria, curiosamente, a ausência da crítica. Ele ficava sem missão, o que seria duro. Por isso, uma das suas funções é inventar “críticos” do regime.
Falei da concatenação de mecanismos sociais. Pois, o que acontece, e isto é preocupante, é que somos membros duma cultura política que produz a mediocridade. O acesso aos bens sociais – distribuídos pelo Estado – faz-se por via da lealdade a quem detém o poder político. Isso faz com que o pensamento independente e criativo seja arriscado. Ao mesmo tempo, porém, o sistema “selecciona” quem tem uma disposição natural para este tipo de lealdade – portanto, pessoa com perfil maniqueísta – de tal modo que mesmo quem chega ao topo é, potencialmente, uma pessoa que necessariamente cultiva a mediocridade, pois o principal incentivo não é o desempenho, mas sim a manutenção da prerrogativa de poder. A Frelimo não escolhe nenhum dos seus representantes na base da qualidade do seu pensamento, mas sim na base critérios virados para a reprodução do seu poder. Isto não quer dizer que esses representantes sejam necessariamente pessoas não-inteligentes ou incompetentes. Mas a inteligência e competência são efeitos secundários.
Esta é, em traços gerais, a sociologia do “lambe-botismo”. O curioso é que ela se aplica também aos outros partidos assim como às OSC. O principal impulso é o maniqueísmo e a consequente defesa intransigente duma prerrogativa de poder essencialmente hostil à deliberação. Quando digo que esta sociologia revela o tamanho do desafio à nossa frente refiro-me a isto. A utilidade do pensamento não se mede pela contribuição que ele faz à deliberação, mas sim ao que ele contribui para a defesa de alguma prerrogativa de poder (ou acesso a ele). Para a democracia isto é fatal. O debate na esfera pública não é valorizado como uma oportunidade que cada um de nós tem de no confronto com outras ideias melhorar a sua própria compreensão do que defende. O debate é visto como algo destabilizador. Este é o eco-sistema ideal para a emergência, crescimento e reprodução do “lambe-botas”, pois a sua principal razão de ser é o horror à confrontação de ideias.
O sistema político também não ajuda grande coisa, pois ele não encoraja a abertura de espírito. Os deputados vão ao parlamento não para discutir os méritos dos assuntos apresentados, mas sim para defender o resultado pré-definido, portanto, aprovar para os da Frelimo e não-aprovar para os da Renamo e do MDM. Ele não premeia a autonomia intelectual porque ela pode pôr em risco a prerrogativa do poder. É por essa razão que o ataque ao próprio correligionário é ainda mais virulento, que o diga Samito Machel, pois a última coisa que se quer é revelar fragilidades. Daí também, no caso da Frelimo, os apelos incessantes à coesão que se traduzem em unanimidade e no esconder da crítica na célula, onde, como se sabe, ela também não ocorre, pois ela seria um atentado à coesão.
Assusta-me o que consigo apurar deste exercício de reflexão. Por duas razões. Vejo, por um lado, a maneira como a Frelimo se auto-destrói e, por outro, como este tipo de cultura política inviabiliza o País inteiro. O silêncio do Presidente em relação a Cabo Delgado e a sua preferência pelo supérfluo em ambientes restrictos (encontro privado com outra pessoa inútil, nomeadamente o líder da Renamo) são sintomas desta esclerose. Mesmo a dificuldade que a Comissão Política tem de realmente dar o apoio político e intelectual que o Presidente precisa de ter é sintomática dessa esclerose. Está tudo viciado no sentido de manter e reproduzir a cultura da mediocridade que a sociologia do “lambe-botismo” revela.
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