sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Crenças irreligiosas

Crenças irreligiosas
Tenho muitos ídolos portugueses. E não me envergonho disso. Um deles é Bento de Espinosa, grande filósofo do século XVII, mais conhecido por Spinoza ... e como holandês. Os pais, pelo que consta, foram judeus portugueses. Mente fina como houve poucas. Gosto dos meus ídolos quando o seu pensamento, mais elaborado do que o meu, me ajuda a fazer desabafos. E hoje quero fazer um desabafo. Quero (voltar a) lamentar a qualidade do debate público no País e, acima de tudo, deplorar os efeitos nocivos da forte presença duma moral bombástica na abordagem dos assuntos da nossa terra. São coisas que me incomodam. O conhecimento é uma condição essencial para o debate de ideias e para a abordagem dum País. Sem isso as coisas ficam muito difíceis. O problema, contudo, é que nem todo o conhecimento é mesmo conhecimento. Há conhecimento e há “conhecimento”. E esta é uma distinção que foi muito bem feita por Spinoza.
Este grande Português – maior, na verdade do que o FC Porto e SL Benfica (em relação ao Sporting não sei muito bem...) – fez três reparos interessantes. O primeiro é fenomenal. Ele disse que se todos os nossos planos – com a ajuda da sorte de todo o mundo – se realizassem com sucesso estaríamos muito menos reféns da superstição. O tipo falou isto há séculos, uma coisa que só Bertrand Russell e Karl Popper séculos depois começaram a apreciar devidamente. Há muito pugilismo de sombra na nossa esfera pública que resulta deste problema, nomeadamente o problema de pensar que todo o bom plano tem que ser coroado de êxito. O outro lado da medalha é pensar que tudo o que corre mal só pode correr mal porque o plano era mau ou as pessoas que pensaram a coisa são más elas próprias. A indústria do desenvolvimento vive disto, o que não é assim tão grave, pois como indústria responde à uma economia política própria que tem que cuidar da sua própria reprodução. As coisas ficam feias quando pessoas que gostariam de debater o País enveredam pelo mesmo caminho e envenenam o ambiente com as suas diatribes contra gente que até pode estar a fazer o melhor que pode, mas tem que se render a um mundo muito renitente que não reaje necessariamente à lógica do nosso raciocínio deficiente. Nas mãos deste tipo de gente conhecimento vira superstição.
O segundo reparo parece inspirado na esfera pública moçambicana. Spinoza escreve sobre o aventureiro, uma espécie de jogador de cartas que vive ansiando pela boa vida e fica extremamente frustrado quando essa boa vida não se concretiza, e inventa todo o tipo de histórias para “explicar” a sua falta de sorte. Ele considera o aventureiro como um indivíduo extremamente susceptível à superstição porque precisa de bodes expiatórios que o ajudem a lidar com as suas expectativas goradas. Não é que seja ilegítimo ansiar por uma vida melhor. Quem não tem essa ânsia? O problema é de pensar que se essa boa vida não se materializa alguém tem de ser culpado por isso e olhar para os assuntos do País sempre com ressentimentos. É incrível como a mesma pessoa que pode resmungar contra a pobreza de crianças desamparadas consegue, no post seguinte, colocar fotos de bebidas, comidas ou passeios turísticos que marcam a distância social que o separa daqueles cuja sorte ele instrumentaliza para vituperar contra supostos maus. O problema de fundo, na verdade, é este de bodes expiatórios, o conforto que dá encontrar culpados para tudo, culpados ao estilo de Jean-Paul Sartre que via o inferno nos outros, não como os Índios evocados por Claude Levi-Strauss que diziam que o inferno somos nós. Em pesquisas sobre a medicina tradicional nos anos noventa ouvi algo semelhante dum curandeiro em Chicumbane que me disse que não havia maus espíritos, só pessoas más...
O terceiro e último reparo, o mais importante na verdade, o reparo que me inspira neste texto, diz respeito ao que Spinoza chama de crença em ideias bastante difusas de Deus. A este tipo de crenças ele dá o nome de “irreligiosidade”, um termo diferente de “ateu” ou “agnóstico”. Uma pessoa “irreligiosa” não é quem não acredita em Deus ou quem não tem opinião sobre esse assunto, mas sim uma pessoa que tem falsas crenças. Como autor deste texto tomo a liberdade de me apropriar das ideias de Spinoza para dizer que a esfera pública moçambicana está sob o controlo de “irreligiosos”. São pessoas com um sentido muito peculiar e confuso de moral que vivem apregoando a sua confusão como escudo contra uma discussão sã de ideias. São pessoas que se creem detentoras duma moral absoluta, que confundem o seu próprio posicionamento com a verdade e, por isso, acham que toda a gente que emite uma opinião diferente da sua não é apenas de tendência política e ideológica diferente, mas sim gente não só equivocada como também intelectualmente oportunista.
Não fiz bem as contas – aliás, não fiz nenhumas contas – mas acima de 80% do que passa por discussão nos fóruns por onde tenho passado não é mais, nem menos do que a defesa fundamentalista e fanática de pontos de vista morais mal digeridos. Porque este é outro problema. Há honrosas excepções na nossa esfera pública. Há intervenções que denotam uma visão coerente do mundo – por exemplo, pessoas que criticam o que está mal a partir duma visão marxista das coisas – visão com a qual não precisamos de concordar, mas coerente e legítima. Podemos não concordar com essa visão, mas nada nos confere o direito de pôrmos em causa a integridade intelectual e moral de quem a defende. No geral, porém, somos bombardeados por opiniões de cunho moralista emitidas por pessoas que não fazem a mínima ideia do edifício moral dentro do qual elas pensam estar a argumentar, pessoas que vivem se contradizendo, mas alegres na convicção de que têm razão.
Fazem-me lembrar o escritor francês Molière que uma vez disse que detestatava muito estar equivocado quando sabe que tem razão. Podia ter sido moçambicano; português é que não foi, sobretudo português do século XVII...
Yorumlar
  • Celso Jossefa Sugestões professor.
  • José Teixeira Saúdo, acima de tudo, essa subalternização de Spinoza face ao magno Sporting. Mas essa dele ser português ... olhe, só lhe posso agradecer atribuir-me tamanho antepassado.
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  • Filho da Patria Caro professor é verdade o que diz no seu post, mas não conheço ninguém que não assuma os seus postulados como verdades, incluindo o próprio professor, e os defenda sempre como sendo as posições mais acertadas para descrever os factos, ainda que essas mesmas pessoas não assumam isso expressamente. Para mim, o mal maior não é a existência da crítica mal formulada, porque essa sempre vai existir com maior ou menor pendor na interacção entre actores sociais, mal ou bem-intencionada, mas sim a procura constante de como tornar essa crítica “insignificante” através de acções concretas, divulgação dessas acções, transparência e integridade em todas elas. Vou-lhe dar um exemplo, dentre muito que poderia citar, diz-se que o Chefe do Estado do qual é assumidamente fã é rico, mas ninguém sabe o quanto é rico e como ficou rico embora se conheça os grupos económicos em que está envolvido, porque essa informação não é do conhecimento público porque não existem instrumentos que permitem obter tais informações. Logo, inevitavelmente, provoca-se a especulação e o aproveitamento (consciente ou não) dos tais críticos que se diz serem “inconsequentes” que caem sobre ele que nem lobos famintos. Mas, acredito eu que, se houvesse transparência, não eliminaria a crítica menos elaborada, mas criaria um ambiente onde falar “mal” do Guebuza não teria a atenção que tem hoje. Eu tenho defendido que, por muito que se apresentem teorias pormenorizadamente elaboradas para explicar o comportamento das pessoas e se apregoe as mesmas aos quatro ventos, para mim a boa comunicação é resposta para este mal entre os Homens e para muitas outras coisas, e a boa comunicação envolve uma série de factores, como a vontade de comunicar, transparência, honestidade, solicitude, etc.
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  • Elisio Macamo caro José Teixeira, ao que tudo indica ele tem mesmo essa proveniência. nasceu na holanda, mas o pai nasceu e cresceu em portugal. é por isso que se escreve o seu nome de várias maneiras. eu fico com inveja...
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  • Elisio Macamo caro Clayton Johnam, acho que se equivoca. há uma grande diferença entre formular um argumento que nos parece plausível - considerando todos os elementos ao nosso alcance - e declarar esse argumento como verdade. pode não conhecer ninguém que não faça isso, mas isso não significa que não haja, nem que o que diz seja verdade. a essência da discussão não é demonstrar que a verdade está connosco. se fosse isso, não haveria discussão (aliás, acontece entre nós). a essência da discussão é pôr essa verdade a descoberto. neste texto não estava a falar apenas da crítica mal formulada. estava a falar da crítica moralmente motivada. esse tipo de crítica é que parte do princípio de que detém a verdade e que, logo, todo o indivíduo de opinião diferente tem falta de integridade intelectual ou é oportunista. e, francamente, o facto de achar que uma coisa vai sempre existir não faz dela boa, nem devia necessariamente significar que tenhamos de a aceitar. pessoalmente, acho que é possível fazer uma crítica melhor. possível e necessário. finalmente, não concordo que o problema da qualidade do debate tenha a ver com a falta de comunicação por parte de quem devia comunicar (tanto mais que este não era o meu tema). o facto de alguém não ceder informação não justifica que eu invente histórias ou que parta do princípio de que tudo vale como opinião.
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  • Filho da Patria Professor, desculpa, eu acho que tudo vale o que vale como opinião, ora se essa opinião se adequa aos factos em análise é outra coisa, não quero com isso dizer que defendo opiniões destituídas de moralidade, mas estas também ajudam-nos a perceber os fenómenos a nossa volta e a formular soluções para resolver os problemas. Acha que a comunicação não ajuda a minimizar isso, então quais as suas sugestões para acabar com este flagelo de críticas que julga amorais?
  • Elisio Macamo caro Clayton Johnam, não tenho a certeza se o entendo. também não tenho a certeza em relação ao que entendeu do meu texto, sobretudo quando diz que considero certas críticas amorais. pensei que tivesse tornado claro que critico formas de debater que partem do princípio de que defendem uma posição moral e que por causa disso é superior. não critico opiniões "destituídas de moralidade". pensei também que o meu texto, ao criticar esse tipo de crítica, estivesse a sugerir formas de debelar o mal. talvez fosse bom reler o texto. abraços
  • Filho da Patria Desculpa professor acho que continua limitar-se a criticar o tipo de critica que cerca o nosso debate sem apresentar propostas concretas para resolver problema!
  • Andre Mahanzule Caro claiton eu pessoalmente gosto muito do debate e aconselho-o, se me permite, a propor-lhe mais leitura para se informar melhor e nao se refastelar na preguiça solicitando consultorias baratas junto do Professor para, quica, entender a filosofia. Tanto quanto aprendi, e foi muito pouco, a filosofia nao trás sugestões para o q quer q seja, ela limita-se a questionar mesmo sem o respectivo ponto de interrogação. De sorte q caro Claiton leia, leia muito mais e continue a ler q, quem sabe, há sempre uma luz no fundo do túnel. Quanto a mim, só sei q nada sei.
  • Filho da Patria Caro Andre Mahanzule eu o permito que aconselhe a ler mais e a procurar investigar mais sobre diversos temas, não o permito que me chame de preguiçoso e que estou a solicitar consultorias baratas ao ilustre professor, este tipo de palavreado é que estraga de facto o debate de ideias. Eu sou por natureza e por alguma experiencia, ainda que pouca, uma pessoa pragmatica que gosta de saber das propostas de solucoes quandos certos problemas sao levantados. E obrigado por recordar Socrates, gosto muito dele.
  • Elisio Macamo caro Clayton Johnam, acho que não entendeu o meu texto. o que escreveu no seu ante-penúltimo comentário revela isso. como não corrigiu esse equívoco não sei como o ajudar.
  • Andre Mahanzule Caro Clauton queira por favor perdoar-me o palavreado um tanto indelicado de q me devo ter servido pra me dirigir a si. Permita-me porém recordar-lhe q os saberes subdividem-se em diversos campos e cada um deles tem o seu objecto. V.Excia há de se recordar q o Professor é filosofo e ainda q ele tenha as soluções q tanto lhe exige nao compete a ele dar-lhas. Que-las? Pergunte ao Professor Castel Carlos Nuno Castel-Branco, este tem respostas e faz questão de partilha-las com todos. Entenda q o Professor Macamo apenas problemátisa as constatações dele dai a dificuldade em lhe ajudar na medida em q tanto quanto julgo q sei, a filosofia nao tem respostas. Perdão Professor se lhe deturpo qqr coisa. Senhor nao sou digno de q entreis em minha casa, uma palavra basta.
  • Filho da Patria Andre Mahanzule, esta perdoado! ok compreendo a sua explicacao sobre cerne da filosofia, esta de facto nos ajuda a refletir e questionar sobre o mundo a nossa volta, mas realmente eu gosto de debates onde se apresentam solucoes claras sobre os problemas, ainda que a viabilidade dessas solucoes possa ser discutida. A partir dai julgo que comecamos a evoluir para possiveis caminhos para resolucao dos males!
  • Andre Mahanzule Obrigado Clayton Johnam a tua inquietação é ate certo ponto legitima, ele peca apenas por procurar resposta no lugar errado. Por outro lado o Clayton nao esta a entrevistar o Peofessor esta num debate de ideias para o que é convidado a contrapor-se ou concordar e nao exigir respostas de quem humildemente levantou questões de reflexão. 3. O clayton quase q se torna intransigente com os seus gostos, eles nao vem ao caso em minha modéstia opinião. Em qqr banquete, os encomodados mudam-se, nao é de bom tom impormos os nossos gostos num determinado assunto. Nao me leve a mal mano.
  • Filho da Patria Hehehehe Andre Mahanzule achei graça mesmo este seu último post. Mas não lhe reconheço nenhum mandato para responder em nome do professor, a não ser que ele assim o deseje e manifeste aqui expressamente. Continua com o apetite voraz em me adjectivar não sei porquê, agora sou "intransigente" e acha que estou incomodado com alguma coisa e que devo escolher outro forum para expor as minhas preocupações e que ainda estou a impor os meus gostos. Com base em que premissas chega a estas conclusoes? Não é primeira vez troco impressões com o professor e ele felizmente tratou-me com respeito mesmo não concordando com as minhas opiniões. Pelo respeito que tenho por ele e por este espaço vou ignorar a forma pouco ortodoxa, como me tem estado a tentar chamar atenção e deixar de lado a vontande que tenho de lhe responder no mesmo tom. Bom fim de semana.
  • Alcídes André de Amaral As vezes me sinto um pouco desconfortado quando me vejo sempre na necessidade de concordar! Parece me que é mais cómodo dizer "eu Concordo com o professor" do que "eu não concordo". Mas não tenho, por agora, uma terceira via para além destas duas. Então, eu concordo com o professor. Na verdade a nossa esfera pública é muito enraizada em opiniões rigorosas e quase inabalável a ponto de não se ter nenhuma dúvida desta nossa opinião. Tomamos os debates como uma troca de "Fé" que no fim do dia ninguém sai com mais ou com menos do que entrou por estarmos exatamente a se guiados pela "fé". Assim falamos, falamos e falamos quando confrotado com o contrário, procuramos um suposto Demónio como bode expiatório! Tem que haver sempre um culpado pela nossa insuficiência argumentativa nis debates
  • Andre Mahanzule Muito obrigado caro
    Clayton Johnam defacto longe de mim partir em socorro do ilustre professor Elisio Nguenha mas longe de mim mesmo tamanha é a magnitude só seu conhecimento pra eu advogar a seu favor. Termino mesmo por aqui e desejo-lhe boa sorte na sua odisseia caro Clayton, sem voracidades ou quaisquer outras interpretações na medida em q, tal como disse uma vez, só sei q nada sei. Tou fora.
  • Faustino MamboJr Caro Andre Mahanzule os seus discursos em algum momento demonstram uma confusao a respeito de quem é Elisio Macamo. Desculpe se a minha visao for erronea, mas parece estar a confundir Elisio Macamo (Sociólogo), do Severino Elias Ngoenha (Filósofo).
  • Andre Mahanzule Tem razão caro MamboJr tem toda razão andei a confundir as duas figuras, muito obrigado meu caro

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