Crenças irreligiosas
Tenho muitos ídolos portugueses. E não me envergonho disso. Um deles é Bento de Espinosa, grande filósofo do século XVII, mais conhecido por Spinoza ... e como holandês. Os pais, pelo que consta, foram judeus portugueses. Mente fina como houve poucas. Gosto dos meus ídolos quando o seu pensamento, mais elaborado do que o meu, me ajuda a fazer desabafos. E hoje quero fazer um desabafo. Quero (voltar a) lamentar a qualidade do debate público no País e, acima de tudo, deplorar os efeitos nocivos da forte presença duma moral bombástica na abordagem dos assuntos da nossa terra. São coisas que me incomodam. O conhecimento é uma condição essencial para o debate de ideias e para a abordagem dum País. Sem isso as coisas ficam muito difíceis. O problema, contudo, é que nem todo o conhecimento é mesmo conhecimento. Há conhecimento e há “conhecimento”. E esta é uma distinção que foi muito bem feita por Spinoza.
Este grande Português – maior, na verdade do que o FC Porto e SL Benfica (em relação ao Sporting não sei muito bem...) – fez três reparos interessantes. O primeiro é fenomenal. Ele disse que se todos os nossos planos – com a ajuda da sorte de todo o mundo – se realizassem com sucesso estaríamos muito menos reféns da superstição. O tipo falou isto há séculos, uma coisa que só Bertrand Russell e Karl Popper séculos depois começaram a apreciar devidamente. Há muito pugilismo de sombra na nossa esfera pública que resulta deste problema, nomeadamente o problema de pensar que todo o bom plano tem que ser coroado de êxito. O outro lado da medalha é pensar que tudo o que corre mal só pode correr mal porque o plano era mau ou as pessoas que pensaram a coisa são más elas próprias. A indústria do desenvolvimento vive disto, o que não é assim tão grave, pois como indústria responde à uma economia política própria que tem que cuidar da sua própria reprodução. As coisas ficam feias quando pessoas que gostariam de debater o País enveredam pelo mesmo caminho e envenenam o ambiente com as suas diatribes contra gente que até pode estar a fazer o melhor que pode, mas tem que se render a um mundo muito renitente que não reaje necessariamente à lógica do nosso raciocínio deficiente. Nas mãos deste tipo de gente conhecimento vira superstição.
O segundo reparo parece inspirado na esfera pública moçambicana. Spinoza escreve sobre o aventureiro, uma espécie de jogador de cartas que vive ansiando pela boa vida e fica extremamente frustrado quando essa boa vida não se concretiza, e inventa todo o tipo de histórias para “explicar” a sua falta de sorte. Ele considera o aventureiro como um indivíduo extremamente susceptível à superstição porque precisa de bodes expiatórios que o ajudem a lidar com as suas expectativas goradas. Não é que seja ilegítimo ansiar por uma vida melhor. Quem não tem essa ânsia? O problema é de pensar que se essa boa vida não se materializa alguém tem de ser culpado por isso e olhar para os assuntos do País sempre com ressentimentos. É incrível como a mesma pessoa que pode resmungar contra a pobreza de crianças desamparadas consegue, no post seguinte, colocar fotos de bebidas, comidas ou passeios turísticos que marcam a distância social que o separa daqueles cuja sorte ele instrumentaliza para vituperar contra supostos maus. O problema de fundo, na verdade, é este de bodes expiatórios, o conforto que dá encontrar culpados para tudo, culpados ao estilo de Jean-Paul Sartre que via o inferno nos outros, não como os Índios evocados por Claude Levi-Strauss que diziam que o inferno somos nós. Em pesquisas sobre a medicina tradicional nos anos noventa ouvi algo semelhante dum curandeiro em Chicumbane que me disse que não havia maus espíritos, só pessoas más...
O terceiro e último reparo, o mais importante na verdade, o reparo que me inspira neste texto, diz respeito ao que Spinoza chama de crença em ideias bastante difusas de Deus. A este tipo de crenças ele dá o nome de “irreligiosidade”, um termo diferente de “ateu” ou “agnóstico”. Uma pessoa “irreligiosa” não é quem não acredita em Deus ou quem não tem opinião sobre esse assunto, mas sim uma pessoa que tem falsas crenças. Como autor deste texto tomo a liberdade de me apropriar das ideias de Spinoza para dizer que a esfera pública moçambicana está sob o controlo de “irreligiosos”. São pessoas com um sentido muito peculiar e confuso de moral que vivem apregoando a sua confusão como escudo contra uma discussão sã de ideias. São pessoas que se creem detentoras duma moral absoluta, que confundem o seu próprio posicionamento com a verdade e, por isso, acham que toda a gente que emite uma opinião diferente da sua não é apenas de tendência política e ideológica diferente, mas sim gente não só equivocada como também intelectualmente oportunista.
Não fiz bem as contas – aliás, não fiz nenhumas contas – mas acima de 80% do que passa por discussão nos fóruns por onde tenho passado não é mais, nem menos do que a defesa fundamentalista e fanática de pontos de vista morais mal digeridos. Porque este é outro problema. Há honrosas excepções na nossa esfera pública. Há intervenções que denotam uma visão coerente do mundo – por exemplo, pessoas que criticam o que está mal a partir duma visão marxista das coisas – visão com a qual não precisamos de concordar, mas coerente e legítima. Podemos não concordar com essa visão, mas nada nos confere o direito de pôrmos em causa a integridade intelectual e moral de quem a defende. No geral, porém, somos bombardeados por opiniões de cunho moralista emitidas por pessoas que não fazem a mínima ideia do edifício moral dentro do qual elas pensam estar a argumentar, pessoas que vivem se contradizendo, mas alegres na convicção de que têm razão.
Fazem-me lembrar o escritor francês Molière que uma vez disse que detestatava muito estar equivocado quando sabe que tem razão. Podia ter sido moçambicano; português é que não foi, sobretudo português do século XVII...
Tenho muitos ídolos portugueses. E não me envergonho disso. Um deles é Bento de Espinosa, grande filósofo do século XVII, mais conhecido por Spinoza ... e como holandês. Os pais, pelo que consta, foram judeus portugueses. Mente fina como houve poucas. Gosto dos meus ídolos quando o seu pensamento, mais elaborado do que o meu, me ajuda a fazer desabafos. E hoje quero fazer um desabafo. Quero (voltar a) lamentar a qualidade do debate público no País e, acima de tudo, deplorar os efeitos nocivos da forte presença duma moral bombástica na abordagem dos assuntos da nossa terra. São coisas que me incomodam. O conhecimento é uma condição essencial para o debate de ideias e para a abordagem dum País. Sem isso as coisas ficam muito difíceis. O problema, contudo, é que nem todo o conhecimento é mesmo conhecimento. Há conhecimento e há “conhecimento”. E esta é uma distinção que foi muito bem feita por Spinoza.
Este grande Português – maior, na verdade do que o FC Porto e SL Benfica (em relação ao Sporting não sei muito bem...) – fez três reparos interessantes. O primeiro é fenomenal. Ele disse que se todos os nossos planos – com a ajuda da sorte de todo o mundo – se realizassem com sucesso estaríamos muito menos reféns da superstição. O tipo falou isto há séculos, uma coisa que só Bertrand Russell e Karl Popper séculos depois começaram a apreciar devidamente. Há muito pugilismo de sombra na nossa esfera pública que resulta deste problema, nomeadamente o problema de pensar que todo o bom plano tem que ser coroado de êxito. O outro lado da medalha é pensar que tudo o que corre mal só pode correr mal porque o plano era mau ou as pessoas que pensaram a coisa são más elas próprias. A indústria do desenvolvimento vive disto, o que não é assim tão grave, pois como indústria responde à uma economia política própria que tem que cuidar da sua própria reprodução. As coisas ficam feias quando pessoas que gostariam de debater o País enveredam pelo mesmo caminho e envenenam o ambiente com as suas diatribes contra gente que até pode estar a fazer o melhor que pode, mas tem que se render a um mundo muito renitente que não reaje necessariamente à lógica do nosso raciocínio deficiente. Nas mãos deste tipo de gente conhecimento vira superstição.
O segundo reparo parece inspirado na esfera pública moçambicana. Spinoza escreve sobre o aventureiro, uma espécie de jogador de cartas que vive ansiando pela boa vida e fica extremamente frustrado quando essa boa vida não se concretiza, e inventa todo o tipo de histórias para “explicar” a sua falta de sorte. Ele considera o aventureiro como um indivíduo extremamente susceptível à superstição porque precisa de bodes expiatórios que o ajudem a lidar com as suas expectativas goradas. Não é que seja ilegítimo ansiar por uma vida melhor. Quem não tem essa ânsia? O problema é de pensar que se essa boa vida não se materializa alguém tem de ser culpado por isso e olhar para os assuntos do País sempre com ressentimentos. É incrível como a mesma pessoa que pode resmungar contra a pobreza de crianças desamparadas consegue, no post seguinte, colocar fotos de bebidas, comidas ou passeios turísticos que marcam a distância social que o separa daqueles cuja sorte ele instrumentaliza para vituperar contra supostos maus. O problema de fundo, na verdade, é este de bodes expiatórios, o conforto que dá encontrar culpados para tudo, culpados ao estilo de Jean-Paul Sartre que via o inferno nos outros, não como os Índios evocados por Claude Levi-Strauss que diziam que o inferno somos nós. Em pesquisas sobre a medicina tradicional nos anos noventa ouvi algo semelhante dum curandeiro em Chicumbane que me disse que não havia maus espíritos, só pessoas más...
O terceiro e último reparo, o mais importante na verdade, o reparo que me inspira neste texto, diz respeito ao que Spinoza chama de crença em ideias bastante difusas de Deus. A este tipo de crenças ele dá o nome de “irreligiosidade”, um termo diferente de “ateu” ou “agnóstico”. Uma pessoa “irreligiosa” não é quem não acredita em Deus ou quem não tem opinião sobre esse assunto, mas sim uma pessoa que tem falsas crenças. Como autor deste texto tomo a liberdade de me apropriar das ideias de Spinoza para dizer que a esfera pública moçambicana está sob o controlo de “irreligiosos”. São pessoas com um sentido muito peculiar e confuso de moral que vivem apregoando a sua confusão como escudo contra uma discussão sã de ideias. São pessoas que se creem detentoras duma moral absoluta, que confundem o seu próprio posicionamento com a verdade e, por isso, acham que toda a gente que emite uma opinião diferente da sua não é apenas de tendência política e ideológica diferente, mas sim gente não só equivocada como também intelectualmente oportunista.
Não fiz bem as contas – aliás, não fiz nenhumas contas – mas acima de 80% do que passa por discussão nos fóruns por onde tenho passado não é mais, nem menos do que a defesa fundamentalista e fanática de pontos de vista morais mal digeridos. Porque este é outro problema. Há honrosas excepções na nossa esfera pública. Há intervenções que denotam uma visão coerente do mundo – por exemplo, pessoas que criticam o que está mal a partir duma visão marxista das coisas – visão com a qual não precisamos de concordar, mas coerente e legítima. Podemos não concordar com essa visão, mas nada nos confere o direito de pôrmos em causa a integridade intelectual e moral de quem a defende. No geral, porém, somos bombardeados por opiniões de cunho moralista emitidas por pessoas que não fazem a mínima ideia do edifício moral dentro do qual elas pensam estar a argumentar, pessoas que vivem se contradizendo, mas alegres na convicção de que têm razão.
Fazem-me lembrar o escritor francês Molière que uma vez disse que detestatava muito estar equivocado quando sabe que tem razão. Podia ter sido moçambicano; português é que não foi, sobretudo português do século XVII...
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