sexta-feira, 15 de novembro de 2019

SOBRE A HEROICIDADE DO AGENTE BULE: ALGUNS ASPECTOS JURÍDICOS!

• Contextualização:
Circula nas redes sociais, desde o fim da tarde ontem (14), o retrato de Isildo Bule, agente da Polícia de Trânsito da República de Moçambique, que a meio de uma chuva torrencial e com ventos fortes, esteve a regular o trânsito na Avenida Eduardo Mondlane, na Cidade de Maputo.
Um acto, por muitos, visto como de heroicidade pela entrega e abnegação do jovem agente, que mesmo exposto ao perigo tanto pela circulação de viaturas como pelo volume de água turva que descia em velocidade do Bairro de Alto-Maé, passando por ele, até à Baixa da Cidade.
Sensibilizados com o acto, que não obstante se circunscrevesse nas obrigações/funções próprias do agente da polícia, muitos, e cada um a sua maneira, começaram a render homenagem a Bule, até que empresas, na manhã de hoje (15), lançassem campanha de oferta de brindes ao agente.
Foi a campanha referida acima que, de algum modo, fez surgir, em oposição aos que exaltam Bule qualificando-o herói, os que contestam a heroicidade do agente, considerando a campanha de tais empresas absurda e, por isso, desnecessária já que Bule estava a cumprir o seu dever.
Dentre vários críticos houve quem: (i) colocou em causa a partilha, sem autorização da imagem do agente, qualificando-a como criminosa; (ii) considerou as ofertas como contrárias ao princípio da probidade pública; (iii) falou que Bule, por não estar devidamente trajado e poder, por conta disso, colocar em causa a sua saúde, merece abertura de procedimento disciplinar.
- VAMOS POR PARTES:
1. Quanto à partilha da fotografia de Bule:
O direito à imagem é havido como direito de personalidade (arts. 70.º e 79.º do CC) que, perante a sua essencialidade, goza até de protecção constitucional (art. 41.º CRM). Regra geral, nos termos postos do n.º 1 do art. 79.º do CC, «O retrato (ou, simplesmente, a imagem) de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela».
Porém, a regra acima apresenta uma excepção no n.º 2 do mesmo artigo, ao referir que: «Não é necessário consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o CARGO QUE DESEMPENHE (…) ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que haja decorrido publicamente».
Portanto, sobre a publicação e partilha da imagem/retrato do agente Bule sem o seu consentimento não representa qualquer problema jurídico, até porque nos termos do n.º 3 do mesmo artigo (interpretado a contrário senso), da reprodução do retrato de Bule, não resultou em prejuízo para a sua honra, reputação e decoro. Pelo contrário, o acto honrou-lhe bastante.
2. Quanto à violabilidade(?) da Lei da probidade pública:
Foi também referido que Bule, caso aceitasse os presentes, estaria na condição de violação do art. 9.º Lei n.º 16/2012, de 14 de Agosto – Lei da Probidade Pública (LPP), pois viola o dever de integridade pública, nos termos do qual o servidor público não pode aceitar ofertas que ponham em causa a sua liberdade de acção, credibilidade, autoridade da Administração Pública, etc.
Do exposto acima não se conclui que, caso Bule aceite as ofertas viola o dever de probidade pública. Entretanto, a LPP no n.º 1 do art. 41.º estabelece, imperativamente, que Bule enquanto servidor público, «(…) não deve, pelo exercício das suas funções, (…) receber benefícios e ofertas, (…) de entidades singulares ou colectivas, de direito moçambicano ou estrangeiro».
Todavia, nos termos do art. 42.º da LPP, a Bule seria lícito receber tais presentes se: (i) os mesmos fossem para se integrar no património do Estado, não sendo superiores a 200 salários mínimos; (ii) se enquadrassem na prática protocolar que não lese à boa imagem do Estado; (iii) tivessem sido dados a Bule em uma sua data festiva, como aniversário, casamento, baptismo, contanto que não ultrapassem a um 1/3 do salário pago a si pelo Estado (n.º 2, art. 41.º LPP).
3. Quanto ao possível procedimento disciplinar:
A CRM estabelece, nos termos do n.º 2 do art. 84.º, que «O trabalhador tem direito à protecção, segurança e higiene no trabalho». Sendo Bule agente da polícia é, por isso, funcionário público é regulado pelas normas aplicáveis àqueles que estejam numa relação de emprego público.
É nas als. g) e x) do n.º 1 do art. 43.º da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto – Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE) que encontramos como deveres especiais do funcionário e agente do Estado «apresentar-se ao serviço (…) com aprumo (…) que permitam desempenhar correctamente as tarefas» e «usar com correcção o uniforme previsto na lei».
Ora, a violação de um dever profissional equivale a uma infracção disciplinar. O EGFAE, nas als. g) e h) do art. 97.º refere que: é aplicável a sanção de multa ao funcionário ou agente do Estado que: «Não use com correcção o uniforme prescrito na lei» e «Não se apresente ao serviço limpo, asseado e aprumado», apontando isso, no n.º 1 desse artigo, como negligência ou falta de zelo.
Entretanto, a Bule, assumindo-se que não se apresentou com aprumo, não aplicar-se-ia multa, uma vez que não havia intenção dolosa, estava na prestação de serviços relevantes ao Estado e falta não produziu qualquer efeito, o que lhe faz gozar de uma atenuante nos termos das als. d), e) e g) do n.º 1 do art. 102.º do EGFAE, aplicando-se, assim, a sanção imediatamente mais branda, no caso, a repreensão pública (art. 96.º), o equivalente à crítica (al. b), n.º 1, art. 94.º).
Notas finais:
Ainda que assumamos que Bule estava no exercício de suas obrigações, a sua entrega e abnegação devem ser congratuladas, pois, faltam-nos exemplos como os de Bule no nosso país. Ele foi incontestavelmente um herói, convenhamos. Os presentes orientados para Bule, podendo colidir com a LPP, podem ser canalizados à família ou esperar que ele se case, baptize ou realize outra festa, já que a LPP realiza uma enunciação exemplificativa de datas festivas.
Comentários
  • Markito Baltazar Obrigado pela aula!!
  • Abinelto Bié Grande aula, irmão! Sempre oportuno e sereno. Sempre a tratar os assuntos de forma pormenorizada.

    Great!
  • Mwenemutapa Fernando Dizer que faltam exemplos é um exagero demais, gee. Há muitos e muitíssimos exemplos. Na Matola, seu município domiciliar, há professores dando aulas por baixo de árvores e alunos sentados nos troncos ou no chão mesmo. Estes são também heróis. Enfermeiros de Muxungue, de Muidumbe, Mocimboa da Praia, Buzi, Gorongosa só para citar alguns distritos, trabalham em situações perigosíssimas e o Ivan diz que FALTAM-NOS exemplos. Faltam-te ou não os conhece ou conhecia?
    Hoje fui aplaudir semáforo da minha rua por NUNCA ter QUEIMADO, evitando assim muitos acidentes de viação.
  • Marcolino Sigolho Vilanculos Obrigado Ivan. Abraço
  • Djaha Dzaka Tembe Aqui há mais transcrição de consignado na letra da lei em derimetrimo do espírito da lei.

    Alguns podem até não perceber que para além da letra, existe o espírito da lei. Portanto, haja calma.

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