Segundo texto da serie
Porque Fecharam as Empresas Moçambicanas? - A Voz do Povo (2)
A voz do povo é a voz de Deus. Esta expressão pretende significar que aquilo que o povo diz só pode ser verdadeiro. Deve ser por isso que os artistas que se inspiram no povo para produzir a sua arte são praticamente imperecíveis. As suas músicas, a sua criação plástica, a sua dança e a sua poesia são reapropriadas pelo povo para perpetuar essa sua voz, essa sua sabedoria, que não seriam mais do que a voz e a sabedoria de Deus. Creio que a maioria das pessoas tenta prestar muita atenção ao que o povo diz. Existe no entanto um pequeno detalhe que, para mim, parece essencial verificar: Essa “voz” é genuinamente do povo? Não será dum sector específico com um elevado poder de amplificação “sonora”? Esta asserção parece-me importante para aquilatar a fonte da “voz” do que é comum referir-se como a principal causa do encerramento das empresas em Moçambique.
É facto incontroverso que um número considerável das unidades fabris que circundavam a Cidade de Maputo encontra-se em situação de inactividade económica. O mesmo fenómeno pode ser observado um pouco por todo o país.
As cidades de Maputo e Matola estiveram rodeadas por uma dinâmica cintura industrial em que se destacavam os sectores dos têxteis, vestuário, calcado, indústria metalo-mecânica, indústria alimentar e de bebidas. Estes sectores constituíram, durante vários anos, os alicerces da indústria moçambicana. Trata-se de unidades fabris que, outrora, proporcionaram emprego e riqueza, cuja lista é necessariamente longa: Vidreira de Moçambique, Texlom, Cifel, Mabor, Química Geral, Soveste, Cometal-Mometal, Metalbox, várias empresas de confecções. Esta lista inclui apenas aquelas de que imediatamente me lembrei.
A partir dos meados da década de 70, estas empresas começaram a evidenciar situações de crise, consubstanciadas na incapacidade de responderem às exigências e demanda do mercado. Esta situação levou algumas dessas empresas a anunciar e, em não poucos casos, a concretizar o seu encerramento, o que veio a aprofundar-se com a abertura do mercado moçambicano, que coincidiu com o lançamento do Programa de Reabilitação Económica (PRE), em finais da década de 80.
Recorrentemente, a explicação que se encontra para a ocorrência destes encerramentos é que aquelas empresas teriam sido geridas de forma incompetente pelas pessoas que haviam sido incumbidas da sua direcção. Porque a grande vaga de encerramentos coincidiu com o início de um vasto programa de privatizações empreendido pelo Governo moçambicano, alega-se ainda que a falência daquelas unidades industriais se deveu, fundamentalmente, a uma gestão ruinosa e dolosa por parte das administrações nomeadas pelo Estado. Esta gestão ruinosa e danosa destinar-se-ia, segundo os mesmos analistas, a delapidar e a desvalorizar as empresas para que, logo a seguir, esses gestores as pudessem adquirir, no processo de privatizações em curso, a um preço de banana. Em consequência, e como se diz em shangana, as pessoas que tiveram a (pouca) sorte de gerir essas empresas têm sido postas a viajar mesmo continuando no mesmo lugar. Pode-se assumir que esta é a voz do povo. Só que, como sugeri, talvez fosse importante verificar a genuinidade da voz. Se calhar é apenas um pequeno sector da sociedade que está interessada em fazer outras pessoas viajarem estando sentadas no mesmo lugar, como se diz na minha terra.
Estas alegações encontram provavelmente suporte numa escola de pensamento que se está a generalizar, que tenta explicar fenómenos complexos com simples acusações de feitiçaria. Se um facto ocorre e para ele não temos explicação, a tendência que vem ganhando terreno é arranjarmos um bode expiatório que nos deixe confortados. Há pobreza em Moçambique? Pois claro, com tantos corruptos que temos! Um determinado projecto não teve os resultados que se esperavam? Claro, alguém roubou o dinheiro! Poucas vezes paramos para apreender os fenómenos na sua verdadeira complexidade. Porque é que o projecto só pode falhar devido a roubos? Ele foi bem desenhado? Correspondia verdadeiramente à demanda dos utilizadores? Tinha sustentabilidade? Ou dependia do apoio permanente dos doadores? Estou a tentar dizer uma coisa que toda gente sabe instintivamente: que existe uma multiplicidade de factores que concorrem para a ocorrência de um determinado fenómeno.
Sem pôr de parte a eventualidade da ocorrência de fenómenos de gestão fraudulenta, interessa-me, no entanto, expor e analisar outras causas que possam estar na origem da falência da indústria moçambicana, que se prolonga até aos dias de hoje. Uma análise estrutural ajudaria, talvez, a preparar melhor as empresas moçambicanas para os desafios do futuro que o processo da União Aduaneira encerra. A análise estrutural conduzir-nos-ia a examinar o contexto interno e externo que determinou as ineficiências estruturais das empresas moçambicanas, até ao ponto da sua total incapacidade para responderem às dinâmicas do mercado
É assim importante compreender o quadro em que se deu o encerramento de quase todas as unidades económicas a que nos estamos a referir. Como é que o processo de privatizações pode ter induzido tal fenómeno? Terão, as privatizações algo a ver com a colagem da economia moçambicana ao sistema neo-liberal e consequente abertura dos mercados? Estariam as empresas moçambicanas dimensionadas para operar num ambiente de concorrência plena e aberta? Provavelmente seja de admitir a hipótese de, num ambiente em que o concorrente da UFA, por exemplo, deixou de ser apenas a FACOBOL, para passar a ser toda a indústria de calcado no mundo, a UFA não ter tido uma estrutura de custos que a capacitasse a concorrer adequadamente, por exemplo, com as imitações de adidas vindas da Ásia. O seu encerramento não se justificaria, nestas condições, apenas com base nas alegações de roubos ou gestão incompetente, mas sim devido à mudança da conjuntura e paradigmas económicos. No próximo texto hei-de tentar expor o ambiente em que surgiu e se desenvolveu a indústria moçambicana.
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