Os intelectuais da verdade
Estes são os irmãos siameses dos intelectuais do óbvio. Enquanto os últimos resistem à complexidade do mundo com a moralização oportunista do conhecimento, os primeiros confundem o exercício de reflexão sobre as ideias que constitutem o mundo com a produção da verdade. Dito doutro modo, têm uma concepção positivista da ciência que se define como a procura pelas verdades absolutas por detrás da constituição do mundo. A solução dos problemas do mundo dependeria da identificação dessas verdades e ciência só é ciência quando ela se entrega a esse exercício. Tal como os intelectuais do óbvio, os intelectuais da verdade detestam a incerteza e, por isso, precisam dum conceito de verdade que, na verdade, de científico pouco tem.
A ciência é método, não resultado. Ela começa e termina na reflexão sobre como produzir conhecimento, como entender fenómenos, como avaliar as coisas da vida. O resultado a que chega só interessa por aquilo que ele permite perceber em relação à forma como se chegou a ele! Isto não quer dizer que resultados não sejam importantes. Ter uma vacina depois de todo o processo de pesquisa é importante; ter uma explicação para o impacto da corrupção na qualidade do ensino depois da pesquisa é importante. Mas nenhum destes resultados constitui “verdade” se por “verdade” entendemos algo fundamental em relação ao mundo e sem o qual o mundo deixaria de funcionar. A “verdade” da ciência é apenas um artefacto da maneira como sabemos, não a descrição da essência das coisas. É com este conceito de “verdade” que um intelectual normal trabalha, razão pela qual ele não tem muito medo da incerteza. O intelectual normal tem maior interesse no processo, não no resultado.
A vida do intelectual da verdade floresce onde o consenso é valorizado e a dissidência é vista como uma ameaça. Consenso é coisa de maiorias. Está no DNA das maiorias aliviarem os seus membros da dor de pensar por si próprios. Isso processa-se melhor onde existe uma “verdade” garantida pelo intelectual e que se alimenta dum processo único de reflexão que não é posto em causa para não destabilizar o grupo. Para o intelectual da verdade, tudo aquilo que não encaixa na “verdade” é má fé, burrice ou prova inequívoca de que alguém estará contra o bem. É dessa maneira que as maiorias exercem a sua tirania. Elas usam a “verdade” como a sua bandeira. Quem não se idenfica com essa bandeira é visto não como um adversário, mas sim como um inimigo. Isso explica porque há pouco debate entre intelectuais em Moz. Defendemos bandeiras diferentes, por isso, somos inimigos uns dos outros. Mesmo os intelectuais sem alinhamento partidário funcionam assim. A sua pode não ser a bandeira dum grupo, mas defendem um conceito de “verdade” inabalável e resistente à realidade dos factos.
Por detrás de tudo isto há uma micro-sociologia que descreve a constituição do espaço da intelectualidade da verdade. É a tendência natural das pessoas de se juntarem a grupos. No nosso País isso é imperioso também por uma questão de sobrevivência. Do ponto de vista político, os grupos que interessam são os partidos e a sociedade civil. Há três coisas que ocorrem nesse processo. Primeiro, quem se junta a qualquer destes grupos não o faz necessariamente por algum compromisso com um princípio político. Muitas vezes é por oportunismo ou conveniência. Não existe, hoje, nenhum princípio político que distinga os três partidos políticos ou a sociedade civil. As motivações para alguém se juntar a eles são profanas, mesmo na sociedade civil a principal motivação, salvo honrosas excepções, é o rendimento.
Uma vez lá dentro, esta é a segunda coisa, a necessidade de identificação torna-se na principal razão de ser membro. Isto faz com que alguém queira ser mais Frelimo do que a própria Frelimo, ou mais Renamo do que a própria Renamo. Na sociedade civil ser membro significa cultivar a hostilidade em relação ao governo e o silêncio cúmplice em relação à oposição. É por isso, por exemplo, que a sociedade civil moçambicana nunca se pronunciou energicamente contra o recurso à violência pela Renamo e, quando o fez, acusou a todos no estilo “ambos os dois erraram...”. Isto consegue-se de duas maneiras. Uma consiste em seguir a manada, portanto, nunca divergir, nem pôr em causa a opinião da maioria (no Facebook há muito disso: pessoas que no passado, por exemplo, celebravam Guebas, hoje festejam Nyusi com o mesmo fervor...). Daí a importância da disciplina interna. A Frelimo consegue cobrar melhor esta disciplina porque tem, teoricamente, benesses a oferecer. A Renamo e o MDM conseguem menos porque também têm pouco a oferecer, daí que sejam vítimas constantes da deserção (não é porque não há “democracia”; é porque estes partidos nao têm como adocicar a disciplina partidária). A outra consiste em hostilizar os outros grupos, portanto, outros partidos e grupos da sociedade civil. Você é tanto mais membro quanto você for capaz de ridicularizar os outros, não quanto você for capaz de abordar o País com base no compromisso com algum princípio. Parecendo que não, um dos principais entraves à paz reside aqui mesmo. A mentalidade de grupo não é amiga do compromisso. Mas o compromisso é essencial na política, sobretudo num contexto democrático. Onde o exemplo de debate político é a diabolização do adversário, não há como desenvolver interesse em debater objectivamente. Nesse contexto, as “verdades” servem de escudo contra o debate.
Finalmente, a micro-sociologia da intelectualidade da verdade promove a polarização. A polarização é um processo interno dos grupos. As pessoas ficam iguais umas às outras, valorizam o mesmo tipo de informação, usam as mesmas fontes, cultivam o mesmo estilo de argumentação, etc. Isto é, alimentam-se de informação que sustenta e conforta as suas crenças. Com a “verdade” bem definida pelos seus intelectuais, tudo o que têm a fazer é gravitar em torno dela, resistir a ideias diferentes e, até, perseguir quem veicula outras “verdades”. Há um certo sentido em que a polarização seria, no fundo, o maior entrave à nossa política. Ela fecha as mentes dos actores políticos tornando-os hostis a ideias diferentes por uma questão de princípio. A política torna-se num jogo de soma zero. Ou é o que eu quero, ou então perdi.
Com esta breve descrição dá para ver porque a intelectualidade da verdade não faz bem ao País. Ela priva o País de alternativas na tomada de decisões. É fácil, por exemplo, supor que o processo das dívidas ocultas tenha sido também vítima disto. Uma vez definido o que se queria, a micro-sociologia tratou de fechar o grupo a outras ideias. Imagino que as várias pessoas sensatas que participaram nisto tenham sido domesticadas pela dinâmica da maioria. Deve ter ficado arriscado dizer algo que pudesse ser interpretado como sinal de fraqueza, falta de compromisso com o grupo, fragilização do grupo em relação aos seus adversários (inimigos). Não foi inventado por Guebuza. A Frelimo gloriosa aperfeiçuou algo necessário a um grupo armado (1964-74), mas extremamente nocivo a uma formação política (a partir de 1975...). É a mesma coisa com a Renamo. Com o MDM funciona um outro elemento: o sentimento de constante vitimização. A forma tenaz e obstinada como o Presidente Nyusi “negociou” com o malogrado líder da Renamo tem pouco a ver com confiança e interesse pela paz. Aquilo foi o encontro de duas pessoas que representam formações políticas que funcionam, basicamente, da mesma maneira. Não confiam em ninguém fora de si e só aceitam alguém de dentro que concorde com tudo o que eles dizem. Movem-se quando a sua existência está em risco e aceitam compromissos, sem contudo abdicar da sua “verdade”.
O resultado disto tudo é a tomada frequente de más decisões como foi o caso com as dívidas ocultas. É a mesma coisa com o acordo de paz definitiva. Aos membros resta apenas o papel de defender as más decisões até com a própria vida porque, sim, a intelectualidade da verdade é, no fundo, uma forma de fanatismo. O papel do membro é de manter a fé, fingir acreditar que tudo vai dar certo ou, já agora, que Moz tem tudo para dar certo. Como alguém pode acreditar numa ideia tão vazia de sentido no contexto moçambicano só os espíritos dos nossos antepassados é que sabem. Uma sociedade onde o consenso está acima de tudo é uma sociedade suicida. Ela não tem lugar para intelectuais normais porque estes definem-se justamente pelo horror que têm à opinião da maioria. O valor do intelectual normal não está em ele ter razão ou ser detentor da “verdadeira” verdade. O valor reside no efeito positivo que as suas dúvidas podem ter na maioria. Se com as suas dúvidas o intelectual normal consegue que a maioria reflicta melhor sobre o que quer fazer, a chance de as maiorias produzirem melhores decisões aumenta.
Então, quando eu, por exemplo, questiono a paz definitiva não é porque sei como se faz a paz ou tenho melhor ideia do que a paz devia ser. Estou a convidar a maioria a reflectir melhor sobre a decisão que tomou (ou se for antes, sobre a decisão que quer tomar). Estou a convidar a maioria a considerar alternativas, a livrar-se da doença da polarização. Está todo o mundo entregue ao exercício de manifestação da fé que a coisa funcione. Isso é bom como documento cívico, mas não basta e pode ser até irresponsável. A paz tem a ganhar com quem a questiona do que com quem apenas manifesta fé e bate palmas. Não se trata do tipo de questionamento feito pelos Nyongos da nossa terra, mas sim do questionamento do processo que nos levou a ela. E a razão disso é simples: não é a paz que interessa, mas sim o tipo de paz.
Só que lá está, os intelectuais da verdade não gostam disso. Isso colocaria em causa a coesão dos grupos. E os grupos são mais importantes do que o País, razão pela qual a paz, entre nós, é um bem elusivo.
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