segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Abrimos a gaveta da política de drogas


Sábado, 10 de agosto de 2019
Abrimos a gaveta da política de drogas

Não foi com Bolsonaro que o governo começou a mudar a política de drogas. Quando Temer assumiu, em 2016, as estratégias focadas em redução de danos passaram a dar lugar a uma abordagem mais dura, baseada em internação compulsória de dependentes.

É um modelo que centraliza o tratamento nas comunidades terapêuticas, clínicas antidrogas que são, em geral, tocadas por instituições religiosas, que recebem verba do governo para "recuperarem" os dependentes. Em outras palavras: quanto mais viciados, mais dinheiro. O ministro e ex-deputado Osmar Terra, notório defensor da guerra às drogas, já tinha até um projeto de lei, pronto, que só esperava o momento certo para mudar a Lei de Drogas e instituir a internação compulsória.

Só que havia uma pedra no sapato desse modelo. Não havia evidências suficientes para sustentar a nova política. Apesar de Terra e outros defensores – normalmente ligados à bancada evangélica – falarem em "epidemia de crack" e outras drogas, os dados disponíveis não sustentavam essa afirmação. A solução do governo? Engavetá-los.

O 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, encomendado pela Senad – Secretaria Nacional de Drogas, do Ministério da Justiça –, ficou pronto em 2016. Feito pela Fiocruz, era o maior estudo já feito sobre o tema. Ele ouviu 16.273 pessoas em 351 cidades – e custou aos cofres públicos mais de R$ 7 milhões. Novo problema: ele mostrava que, na verdade, não há epidemia nenhuma.

Segundo os números, só 0,9% da população usou crack alguma vez na vida – um número que está longe do que o governo alardeia como “epidemia”. Para se ter uma ideia, o legalizado álcool é um problema bem mais grave: 66,4% dos brasileiros usaram ao menos uma vez na vida, 43,1% no último ano e 30,1% nos últimos 30 dias.
Descontente com os resultados, o governo abriu uma guerra contra a pesquisa. O ministério da Justiça argumentou que o estudo tinha problemas metodológicos e que, por isso, a Fiocruz não havia cumprido os requisitos do edital. O estudo foi embargado e seus resultados, escondidos.

Só que ele chegou até a gente. O Intercept conseguiu, por meio de uma fonte anônima, uma versão de 2017 da pesquisa. Mesmo com a mudança no governo, ela continuava censurada. Em parceria com a Casa da Democracia, analisamos os resultados e publicamos em abril, pela primeira vez, os números que incomodaram o governo.

Na virada para 2019, Osmar Terra saiu do ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e foi para o da Cidadania. Sob Bolsonaro, ele conseguiu emplacar sua lei de drogas e aumentou a verba para as comunidades terapêuticas – mesmo com denúncias de tortura e trabalhos forçados. Junto com a ministra Damares Alves, assinou contratos com 216 novas clínicas, ao custo de R$ 153,7 milhões por ano para 10.883 vagas.

Diante de valores tão expressivos, não é difícil entender porque o levantamento nacional sobre drogas incomodou o ministro. Em maio, ele disse que “não confiava” no estudo e que a Fiocruz tem “viés de defender a liberação das drogas”.

Avaliamos, então, que era de interesse público divulgar o documento completo. As 528 páginas detalham a metodologia, os resultados e os impactos do uso de drogas – e elas ficaram públicas pela primeira vez no final de maio, quando publicamos a versão de 2017 completa do documento com exclusividade.

O impasse entre a Fiocruz, que realizou o estudo, e a Senad, que o encomendou, foi mediado pela Advocacia-Geral da União. A solução saiu nessa semana: os órgãos decidiram pela divulgação do material para "promover a transparência e acesso aos dados científicos da pesquisa". O estudo completo está aqui.

Para a gente, transparência e acesso aos dados é boa notícia. É por isso que, no Intercept, queremos receber suas denúncias. Acreditamos que publicar informações de interesse público é essencial para responsabilizar e fiscalizar quem está no poder. Com os números sobre drogas públicos – primeiro por nós, e agora pela AGU – pesquisadores e responsáveis por políticas públicas vão poder discutir e avaliar abertamente se a estratégia do governo é realmente a melhor para enfrentar o problema. Só resta saber se um governo que sistematicamente rejeita evidências vai, finalmente, encarar os números que contrariam seus interesses. Nós ficaremos de olho.

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