domingo, 30 de dezembro de 2018

O Meu Cabrito

O Meu Cabrito



Em vésperas do Natal, recebi um presente especial – um cabrito – acompanhado de um enorme saco de batatas. Inferi logo tratar-se de uma sugestão para a ceia natalícia: caldeirada de cabrito.
Sou vegano. De repente, coube-me a responsabilidade de decidir sobre a vida e a morte deste cabrito, proveniente de Malanje. Tinha as quatro patas amarradas pela mesma corda, que lhe passava pelo pescoço, ao ponto de lhe causarem feridas. Estava tão assustado.
Por alguma razão inexplicável, sempre pensei em ter um cabrito como animal de estimação. Este tem o tamanho ideal. Mas a sorte do cabrito tornou-se o meu dilema.
O pequeno animal é de uma voracidade insaciável. Está sempre a comer. Onde o amarrei, no quintal, já se foi todo o verde. Em casa, por incúria minha, são poucas as plantas. E agora, o cabrito a quem concedi a liberdade de circular à vontade quer comê-las todas. Tenho-o alimentado com bananas verdes, e até as batatas que serviriam para o prato em que ele seria o ingrediente principal foram parar ao seu bucho.
Depois há o problema das caganitas e do cheiro. O Dédé sugeriu castrá-lo, para reduzir o mau cheiro. Não faço a mínima ideia se esta é uma sugestão científica ou um mito popular. O Dédé parece ser o único amigo, na presença do cabrito, a vê-lo como um animal de estimação e a procurar uma solução que o salve.
Um pastor amigo explicou-me, depois, que o cabrito exala um odor pungente como forma de atrair fêmeas. Ou seja, quanto mais malcheiroso, mais sexy se torna o macho. Parece ser esta a tese. Entretanto, observou os chifres do cabrito e disse-me que era já velho, sugerindo uma forma de tornar a sua carne mais suculenta: eu devia queimar-lhe o pêlo, e de seguida cozê-lo ou assá-lo com a pele. “Tem mais gosto assim.” Manifestei o meu desânimo. Então, o bom pastor ofereceu a quinta do seu pai como santuário para o meu cabrito.
Mal tive tempo de pensar no assunto, porque os meus amáveis conterrâneos entretiveram-me com uma prolongada discussão filosófica sobre o papel das oferendas na cultura dos Njingas, em Malanje, e as efabulações sobre o cabrito.
Se bem entendi, a questão central da discussão era demover-me da ideia de que se tratava de uma forma de agradecimento pelo meu contributo à resolução de uma questão humanitária. Dos vários provérbios partilhados para aflorar a cultura dos Njingas, retive então, como interpretação académica, a ideia segundo a qual devemos evoluir alicerçados nos bons hábitos e costumes legados pelos nossos antepassados, seguindo sempre o farol da solidariedade e da irmandade. Em kimbundu soa profundo e melhor.
Obviamente, o cabrito faz parte do imaginário angolano sobre a realidade política. É bem conhecido o provérbio segundo o qual o cabrito come onde está amarrado. Este provérbio é mal interpretado pelos nossos políticos e servidores públicos como sendo um apelo popular ao roubo insaciável dos bens públicos nos lugares por si ocupados.
Todavia, a rapacidade do cabrito apenas se apresenta como tal fora do seu habitat natural, como o meu quintal de cimento, onde o verde serve para embelezar. Pelo contrário, a voracidade dos políticos e servidores públicos é criminosa, e milhares de angolanos já perderam a vida por conta daqueles que rapam os cofres do Estado, delapidam o património público e privam todo um povo de recursos indispensáveis para a sua saúde, educação, emprego condigno e consequente bem-estar. Então, não pode haver comparação entre os nossos políticos e os cabritos.
Agora diz-se que esses gatunos insaciáveis são marimbondos. Esses insectos ferram, são perigosos, mas nem por isso devem servir de metáfora animal para os nossos servidores políticos de má fama. Gatuno é gatuno e basta.
Ocorreu-me, no entanto, uma imagem dissociada de qualquer interesse filosófico, mas demonstrativa da brutalidade dos homens. Há dias, durante a minha visita ao Lobito, uma carrinha transportava dezenas de cabritos, com uns cinco ou seis homens espalhados entre os animais, a chicotearem-nos constantemente. Indignado, perguntei aos meus companheiros de viagem, locais, sobre aquela cena. Riram-se todos. Um deles explicou-me que os cabritos continuariam a ser sovados ao longo das oito ou nove horas de viagem até Luanda. Alguns transeuntes riram-se também da minha expressão de incredulidade.
No dia seguinte, já a caminho do Bocoio, parámos numas bombas de combustível, onde encontrámos outra carrinha apinhada de cabritos. Enquanto o motorista a abastecia de combustível, na carroçaria, os homens continuavam a chicotear os cabritos. Perguntei-lhes então sobre o motivo daquela violência. “É para os cabritos se manterem de pé e não adormecerem. Se não, morrem durante a viagem.” Riram-se também. A crueldade estimula o riso em muitos angolanos.
Na palestra sobre os direitos humanos, na comuna do Monte Belo, falei também da crueldade contra os cabritos e todos se riram, com naturalidade. Naquela comuna, a intolerância política recente levou à queima de casas e muita violência entre partidários do MPLA e da UNITA. O assunto da tortura dos cabritos parecia irrelevante, uma vez que estes se destinavam ao abate.
Já na cidade de Benguela, em conversa com a minha amiga Filó, falei-lhe da crueldade contra os cabritos e de como abordaria novamente o assunto na palestra do dia seguinte. Ela contou-me então do aumento da violência doméstica contra mulheres e crianças, bem como da pedofilia, crimes que continuam a não merecer a devida atenção pública.
Compreendi e acedi à sua sugestão, decidindo omitir na palestra seguinte o direito dos animais e abordar o das mulheres e das crianças. Antes, porém, perguntei-lhe onde está a solidariedade entre as mulheres na defesa dos seus direitos, sobretudo das mais vulneráveis?
Enquanto escrevia sobre o meu cabrito – agora baptizado de Cabrito Benjamim –, distraí-me pelo meio a responder a umas mensagens no Facebook. Vi então, com dez dias de atraso, um grito de socorro de um cidadão, com imagens chocantes de uma mulher brutalmente espancada pelo marido, das Forças Armadas Angolanas (FAA), a qual foi entretanto internada no Hospital Militar do Lubango, na Huíla. “Fez-se queixa à polícia e até este preciso momento nada foi feito. Por favor, o indivíduo continua à solta e a fazer ameaças. A senhora corre sérios riscos de vida”, escreveu o denunciante, partilhando os seus contactos e tratando-me por “defensor do povo”. Talvez algum representante do povo, alguma entidade oficial leia esta nota e faça um esclarecimento público.
São inúmeras as denúncias que recebo regularmente, para as quais não tenho solução, porque sou apenas um cidadão empenhado e sem qualquer suporte organizacional. Infelizmente, muitos acreditam que tenho ou represento uma instituição, com alguns poderes secretos e com meios para os ajudar.
Na verdade, nem ao meu dilema sobre o destino do cabrito consigo dar solução.
Viva o Cabrito Benjamim!

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