PENICHE: A FORTALEZA DO REGIME DE SALAZAR (I)
"A cadeia dos homens bons"
Durante anos foi a prisão de alta segurança de Salazar. A Cadeia de Peniche encheu-se de presos políticos, mas revelou não ser inexpugnável, acontecendo ali a fuga que mais humilhação causou ao regime: a de Álvaro Cunhal e de nove outros membros do PCP, a 3 de Janeiro de 1960. Depois da ameaça de se tornar um hotel, será um museu dedicado à resistência e à liberdade. Esta é a primeira de três reportagens dedicadas à Cadeia do Forte de Peniche e aos homens que ali estiveram presos por lutar contra a ditadura.
António Borges Coelho diz que não se arrepende da decisão que tomou. “Nunca”, garante, firme. E não porque todos o tenham compreendido na altura. Longe disso. No Partido Comunista Português, de que fazia parte, houve muita incompreensão quando ele decidiu não se juntar a Álvaro Cunhal e aos outros nove membros do partido que, a 3 de Janeiro de 1960, se evadiram da Cadeia do Forte de Peniche. Ainda há dias contava ao P2 que Cunhal o tentou convencer por duas vezes a acompanhá-lo na fuga e que só bem mais tarde o desculpou pela recusa. Mas ele, que desde 1 de Outubro de 1957 ocupava um dos espaços do 3.º piso do Bloco C, inaugurado apenas no ano anterior, já decidira que queria uma vida diferente. “Eu não queria continuar a minha vida de funcionário do partido e queria, de facto, seguir uma via de investigação e de escrita, que foi a minha vida”, diz o historiador de 90 anos.
Por isso, quando os dez elementos do PCP deixaram o edifício, um a um, debaixo do capote do guarda Jorge Alves, que os ajudou, Borges Coelho e três outros presos daquele piso permaneceram em Peniche. Os fugitivos encerraram-nos nas celas, que só podiam ser trancadas por fora, mas é claro que os guardas da cadeia de alta segurança não acreditaram na inocência dos que ficaram para trás. É claro que tinham de saber o que ali fora planeado, debaixo das barbas dos carcereiros. As represálias vieram logo a seguir.
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Mas para já ainda era noite. Aquela noite de Inverno de 3 de Janeiro de 1960, em que o jantar até fora melhorado porque havia sobras do que as famílias tinham trazido para a época natalícia. E Borges Coelho lembra-se de um gira-discos que chegara, cerca de um mês antes, ao Bloco C — uma das “melhorias” que tinham sido introduzidas, recentemente, depois de alguma pressão internacional sobre a situação dos presos políticos. “A primeira vez que o gira-discos tocou parecia música chinesa. A malta ligou os discos com uma rotação diferente e em lugar de nos darem Tchaikovsky, parecia música chinesa. Até que lá descobrimos o engano”, conta. Naquela noite sossegada, mas carregada de tensão por todos os que sabiam o que estava prestes a acontecer, o gira-discos também tocou. E continuou a tocar enquanto o guarda que estava de serviço, mas não envolvido na fuga, era sedado com clorofórmio, e enquanto Borges Coelho e os detidos que ficavam eram fechados, um a um, nas suas celas.
- Especial multimédia: A fortaleza do regime de Salazar
“A luz ficou acesa toda a noite. Duas horas depois da fuga, veio o guarda republicano a render e veio o guarda prisional. Ao dar a volta e passar em frente ao refeitório, a luz estava acesa e ouvia-se o gira-discos, já com o disco pendente a rodar. Ele começa aos gritos, a chorar, a dizer: ‘Ó da guarda, fugiram os presos.’ E os guardas republicanos, uns dez ou doze, começam a disparar as metralhadoras ao acaso. E o guarda a chorar veio espreitar as celas e ficámos aquela noite toda à espera. Veio a GNR, veio a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], vieram cães a cheirar as roupas. Da minha sala, que dava directamente para o pátio e para o porto, sentia os carros a chegar, a partir. Ao cabo de três horas, fiquei tranquilo. Eles tinham conseguido, senão o aparato tinha acabado.”
Para os que ficaram, seguiu-se a transferência para Lisboa, para novas sessões de tortura, em busca de respostas. Borges Coelho foi “para a estátua”, na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, uma prática muitas vezes associada à tortura do sono e que consistia em obrigar o preso a permanecer horas de pé, sem qualquer apoio. Esteve seis meses encerrado nos curros do Aljube, em isolamento total. “Eles tentaram saber o que é que nós sabíamos, e era a represália, pura e simplesmente. O Salazar ficou doido. Foi um acontecimento político de alta importância. Era a cadeia da mais alta segurança e era uma direcção do Partido Comunista que era posta em liberdade. A partir daí, os jornais que chegavam eram todos cortados em notícias de natureza política e interna. Recebíamos rectângulos de jornais.” No regresso a Peniche, todos os livros e papéis que tinha foram apreendidos.
Há mais de 400 anos que Peniche convive com a sua fortaleza. Tudo o que está pintado de amarelo-forte no complexo são espaços originais dos séculos XVI e XVII. O Baluarte Redondo, conhecido pelos presos como “Segredo” e que serviu como espaço de castigo e isolamento durante alguns anos, foi concluído em 1558. Muito, muito antes de o histórico comunista António Dias Lourenço (1915-2010) dali ter fugido, a 17 de Dezembro de 1954.
Quando Dias Lourenço escapou, atirando-se ao mar em pleno Inverno e nadando até à costa, ainda não existiam os blocos A, B e C. Rui Venâncio, da Câmara Municipal de Peniche, explica que entre 1934 e 1954 o Depósito de Presos de Peniche aproveitava apenas as estruturas antigas da fortaleza. “Eram edifícios bastante antigos e degradados, sem grandes condições do ponto de vista da salubridade, nem de segurança. Nesse período houve várias fugas.”
O tocar do apito
Apesar das péssimas condições do espaço, os presos, diz, tinham “alguma liberdade, não podiam sair da fortaleza, mas geriam o seu dia-a-dia, faziam as suas refeições”. Depois de 1954, tudo mudou. Fugas como a de Dias Lourenço abalavam o regime. Era preciso impedi-las. As regras tornaram-se mais apertadas e a repressão foi aumentando. Fizeram-se planos para que o depósito se tornasse uma cadeia à semelhança das que existiam nos Estados Unidos da América — moderna e segura, sem (grandes) hipóteses de fuga. Em 1956, é inaugurado o Bloco C e o “Segredo” deixa de funcionar como sala de isolamento — dois espaços com esse fim são integrados no novo edifício. Em 1961, seguem-se os blocos A e B. O parlatório, novo local de visita dos presos, em que estes estão separados por um vidro de quem os vai ver e sentados em bancos pregados ao chão, é a última estrutura a ser inaugurada, em 1967. Ficara definitivamente para trás o Depósito de Presos de Peniche, a “fortaleza” como era simplesmente conhecida, e estava concluída a Cadeia do Forte de Peniche.
Ao longo de todos estes anos, e nos que se seguiram até ao 25 de Abril de 1974, houve muitas mudanças. A repressão que aumentou com o novo modelo prisional intensificou-se com o início da Guerra Colonial, em 1961, mas suavizou-se um pouco com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, em 1968, para novamente sofrer alturas de grande repressão e acabar por se tornar menos dura, antes da queda do regime. A pressão internacional, a luta organizada dos presos, que se intensifica nos anos 1970, e a criação, em 1969, da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, foram moldando a vida dos prisioneiros.
Em 1957, quando Borges Coelho ali chega, depois de ter sido detido no ano anterior pela PIDE, e de ter sido condenado, no processo colectivo do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil, a dois anos e nove meses de prisão maior, com medidas de segurança “por período não inferior a seis meses”, o Bloco C era ainda uma novidade. Um espaço pensado para isolar ao máximo quem lá se encontrava, com grades no acesso ao piso, grades no acesso ao refeitório, portas maciças para cada uma das oito celas, com um óculo por onde os guardas podiam espreitar para o interior, grades ao fundo do corredor, para a zona especial de três espaços (uma cela individual, onde estava Álvaro Cunhal, e duas salas para serem partilhadas por presos, numa das quais estava Borges Coelho aquando da fuga). As janelas não davam qualquer sensação de liberdade, porque o vidro martelado impedia os presos de ver para o exterior, restando-lhes apenas imaginar a paisagem que se adivinhava pelos ruídos que ali chegavam: o bater do mar, os motores das traineiras, o grasnar sempre presente das gaivotas.
Os presos ficavam fechados nas suas celas cerca de 20 horas diárias, saindo apenas para as refeições ou para o recreio, se não estivessem castigados. Mesmo aí, a presença dos carcereiros era omnipresente. “Estavam dois guardas e havia um que estava sempre no meio a passear e dizia: ‘Fale mais alto que eu também quero ouvir’.” Visitas e troca de correspondência só com familiares directos e devidamente autorizados. Borges Coelho, que já namorava com Isaura Silva quando foi preso, não podia ter qualquer contacto com ela, por não serem casados. A família de Murça, quase nunca o visitava, dadas as dificuldades de deslocação. Os namorados tentaram ludibriar a polícia, com Isaura a enviar cartas assinadas como Maria da Conceição Borges Coelho, fazendo-se passar por tia do detido. No arquivo da PIDE constam várias destas missivas, apreendidas pelos agentes que desconfiavam dos termos demasiado carinhosos utilizados por aquela “tia” que escrevia, por exemplo, a 3 de Junho de 1957: “E à noite, nesta tua caminha, abraçavas-te muito à tua tia querida e assim ficavas. Eras como meu filho e hoje o meu amor por ti é ainda mais forte e mais belo porque sofre e eu antes preferia sofrer do que te ver sofrer.” Ou, uma outra, escrita três dias depois: “Estou ansiosa por te abraçar e ter-te junto de mim que tu estás sempre sempre meu sobrinho querido, não há um momento que não pense em ti.”
Logo nesse ano, Borges Coelho começa a pedir autorização para se casar com Isaura. A cerimónia civil, em Peniche, acaba por acontecer a 4 de Janeiro de 1959. Praticamente um ano antes da fuga colectiva. “Eu casei em Peniche, esse foi um acontecimento. Naqueles cinco anos, não há acontecimentos. Os acontecimentos o que são? É tocar o apito, para sair da cama, tocar o apito para formar à porta da cela, para ir tomar o pequeno-almoço, tocar o apito para levantar outra vez e ir outra vez para a cela, tocar o apito para o almoço, se não estamos castigados, uma hora de recreio. E tudo isto, mecanicamente, um dia, outro dia, outro dia. Quais são as alternâncias? Os castigos. As revistas à cela. E o grande movimento que houve junto ao parlatório, com greves, com tudo. Mas o grande, grande acontecimento foi a fuga, quer acontecimento interno quer externo.”
Domingos Abrantes, 82 anos, ri-se e diz que a sua vida prisional também foi indirectamente afectada pela fuga colectiva de Peniche. Membro do MUD Juvenil desde 1953 e do PCP desde 1954, fora preso a 27 de Julho de 1959. “Nesse tempo fui para Caxias, depois para Peniche, logo a seguir à fuga, no princípio de Fevereiro. Fomos reocupar o espaço que tinha ficado vago. Era um regime de cortar à faca. Aquilo era uma coisa... Vingavam-se da gente.” O histórico comunista, que viria a participar, também ele, numa das mais famosas fugas do pré-25 de Abril, diz que, da sua experiência — e ele andou por Caxias, o Aljube e Peniche —, o forte para onde foi transferido a 10 de Fevereiro de 1960 era “o pior” de todos os locais, ultrapassado apenas pelo “segredo de Caxias”, uma cela “subterrânea, sem luz, sem cama”.
Neste primeiro período de detenção, Domingos Abrantes foi várias vezes transferido, de cadeia em cadeia, sem que saiba muito bem porquê. Desde o momento que foi detido nunca falou, nem sequer para dizer o nome, apesar de ter sofrido espancamentos e a tortura do sono. E o relato dos castigos a que foi sujeito revela bem o “jovem com sangue na guelra”, como ele próprio se descreve, referindo-se a este período, disposto a travar uma batalha com o sistema: punido a 26 de Outubro de 1959 “com a pena disciplinar de exercício ao ar livre por espaço de dois dias”, por ter “alterado o sossego indispensável no estabelecimento prisional onde se encontra”; punido a 5 de Fevereiro de 1960 com “proibição de visitas pelo espaço de um mês” por “haver tomado uma atitude de manifesta indisciplina, criticando os serviços do estabelecimento prisional em que se acha recolhido e dirigindo palavras ofensivas ao guarda encarregado da sua condução”; punido a 19 de Maio de 1961 com “privação de exercício ao ar livre por sete dias” por “haver tomado uma atitude de manifesta indisciplina”; punido a 29 de Agosto de 1961 com “20 dias de privação de visitas” e proibição de receber “merendas entregues por terceiros”, por “interferir em assuntos que apenas respeitam à administração interna do estabelecimento prisional”.
Isolamento e violência
Domingos Abrantes ri-se muito durante a entrevista na sede do PCP, em Lisboa, onde escolheu ser entrevistado. Diz que o longo período em que esteve preso durante a ditadura não o traumatizou. Mas insiste que é preciso não esquecer o que era aquele sistema prisional. Ele não esqueceu. Não esqueceu a sede da PIDE, as cadeias do Aljube e de Caxias. Não esqueceu Peniche. “Era um sistema de isolamento. Se estivesse de castigo, eram 24 horas sobre 24 horas, cheguei a estar um mês sozinho. No dia-a-dia, são 20 e tal horas de isolamento. Tem esse aspecto. Mas o regime prisional era de opressão, provocação, de violência diária, de conflitos diários, para afectar o sistema nervoso, um regime restritivo. O chefe dos guardas, que era o director real, o [Vítor] Ramos, esteve lá 20 e tal anos. Era um pide, um representante da PIDE. Na cadeia — ele tinha estado na Guerra de Espanha — gabava-se de ter pertencido aos pelotões de fuzilamento, dizia em voz alta que não devia haver presos, que era um desperdício para o Orçamento do Estado. A mentalidade... Um corpo de guardas que era treinado e seleccionado por ele. Um guarda que mostrasse alguma humanidade era logo... Uma alimentação péssima. Era todo um sistema prisional organizado para que o preso quando saísse daquela porta não tivesse vontade, o preso ia pensar duas vezes em voltar à mesma actividade. Era um sistema prisional montado para abalar as convicções que tinham levado à cadeia. Mesmo os livros. Muitas vezes era proibido ter livros e um preso sem livros é um problema sério.”
A sua primeira passagem por Peniche termina a 27 de Março de 1961. Regressa a Caxias e em 28 de Novembro desse ano é julgado como desertor pelo Tribunal Militar. Não cumpre a pena a que é condenado (três anos e seis meses de prisão) porque dias depois, a 4 de Dezembro de 1961, participa naquela que seria a última fuga colectiva do regime. Uma fuga com todos os contornos de um bom filme. “Havia uma orientação do partido que era a obrigação de procurar fugir. Era uma orientação, mas há uma grande diferença entre procurar fugir e fugir...” Durante 19 meses planeou-se a fuga, que envolve um dos detidos, António Tereso, fazer-se passar por “rachado” (nome dado aos traidores, que falavam e entregavam companheiros à PIDE) e ganhar a confiança do director da cadeia. Tereso começou a tratar do carro blindado que Adolf Hitler oferecera a Salazar e que se encontrava guardado e parado em Caxias. E propõe que fujam naquele carro, meses depois de os guardas se terem habituado à ideia de o ver circular nos pátios da cadeia na viatura.
No dia marcado para a evasão, apesar dos sobressaltos (um carro da PIDE chega inesperadamente ao recinto quando os presos estavam no recreio, atrasando a fuga), Tereso conduz o carro em marcha-atrás até ao recreio e, debaixo do olhar dos guardas, sete membros do PCP ali detidos entram na viatura, dando início à fuga. “Eles não reagiram”, recorda Domingos Abrantes, um dos presos que escaparam nesse dia. “Acharam que aquilo era uma coisa de garotos, uma brincadeira, que a gente tinha ocupado o carro... Para já, porque o Tereso era uma pessoa da confiança deles. ‘Vários fulanos que se meteram dentro do carro para gozar com a gente ou o caneco, não é?’ Nunca pensaram que ia haver fuga.”
Quando voltou a ser capturado pela PIDE, a 21 de Abril de 1965, as circunstâncias foram, por isso, diferentes da primeira prisão. Agora já não era apenas o “membro” e “funcionário” do “partido comunista português” (era assim, entre aspas e com minúsculas que a PIDE se referia ao partido ilegal nos seus documentos). Agora era também o fugitivo que humilhara o regime e, além disso, a companheira com quem partilhava a casa clandestina onde ambos viviam, no Montijo, também foi presa no mesmo dia, algumas horas antes. Domingos Abrantes e Maria da Conceição Matos foram ambos sujeitos a duras torturas. A dele, com alguns contornos que, à distância, o fazem rir, mas que naquela altura — cumprindo 16 dias consecutivos de tortura do sono, ameaças de morte, alucinações e a pressão psicológica exercida constantemente pelos agentes que lhe diziam que Conceição já tinha contado tudo (mentira em que nunca acreditou) — o deixaram “perturbado”. Foi quando começou a ser visitado, na sede da PIDE, por um homem de bata branca que lhe dizia ter uma máquina desenvolvida pelos americanos que era capaz de retirar do cérebro todos os pensamentos que lá estivessem guardados. “A certa altura, comecei a ficar perturbado. Sinceramente. Não vou dizer nada a estes bandidos e os gajos vêm cá buscar. Isto foi uma coisa que me perturbou muito. Era a última coisa que me podia acontecer. Estar ali a sofrer e não dizer nada e os gajos porem aqui uma máquina e tirar-me o que cá estava. Repare que eu estou a falar de uma pessoa que está debilitada, que tem menos condições de discernir a realidade, está sujeita a uma enorme pressão, já num estado cadavérico.”
A encenação foi levada até ao limite — carregado em braços por agentes da PIDE para uma sala num piso diferente, colocaram-lhe um capacete na cabeça, ligado a fios eléctricos. Como nada acontecia, desculparam-se com uma avaria. Tentaram o mesmo noutra altura e aí, apesar da fraqueza, o preso percebeu que a máquina era um embuste. Eles admitiram-no e devolveram-no à sala de interrogatórios, onde depositaram um colchão, informando-o de que estava proibido de se aproximar mais de meio metro daquele bem tão desejado. Foram dias de confusão, dor e alucinação, mas Domingos Abrantes ficou com uma certeza: “Nunca se perde a consciência de onde se está.” E, mais, garante: “Quando eles falam, aquilo parece uma campainha. ‘Onde é a casa? Quem são os outros? Quem é o comité central?’ Funciona como uma campainha. É mobilizar forças e energias e, sobretudo, não mostrar medo ou perturbação, que é o fundamental. Se a pessoa mostra medo ou fraqueza, é uma desgraça. Apertam, apertam, nunca mais…”
Depois desta segunda prisão, Domingos Abrantes cumpre praticamente toda a pena a que foi condenado em Peniche. Foi enviado para o forte a 2 de Junho de 1965 e só seria libertado a 23 de Março de 1973. Tal como Borges Coelho, também ele casou ali com a sua companheira, depois de ela própria ter sido libertada da prisão. O casamento, a 18 de Outubro de 1969, foi um mero acto formal, sem direito a convidados nem “boda” e que serviu, sobretudo, para que o casal se pudesse voltar a ver. O isolamento é um dos aspectos que mais refere quando fala desta prisão, apesar de dizer que até o preferia às salas, onde a vida podia ser complicada “porque as pessoas tinham os seus problemas” e os “dramas da vida” no exterior, transmitidos aos presos, “criavam um estado de ânimo difícil”. Não esquece a história triste de Dias Lourenço, de novo preso em Peniche, e assistindo à distância, sem poder intervir, ao avançar da leucemia que lhe mataria o filho de dez anos. Ou que foi a ele, Domingos Abrantes, que a PIDE pediu ajuda para contar a outro preso político, Daniel Cabrita, que a mulher se tinha suicidado. Momentos extremamente dolorosos, mas que lhe trazem à boca a palavra “solidariedade” — um dos aspectos positivos que retirou da sua passagem por Peniche. “[Nestes momentos] A solidariedade, os valores humanos aparecem ali e, sobretudo, porque vivíamos no meio de monstros, haver estes sentimentos humanos é um reconforto. Afinal, a humanidade não é só isto.”
Visitas inesperadas
Antes do início das obras que estão a transformar e fortaleza num museu, Mário Araújo regressou à antiga cadeia onde esteve preso cerca de quatro meses, para falar com o P2. Diz que ainda hoje não lhe é fácil entrar ali. “Este aspecto físico de que desfrutamos, eu nunca o desfrutei, porque nós entrávamos por aquela porta e os guardas prisionais e os GNR, para não exagerar, eram às dezenas”, diz. No pátio que funcionava como recreio para os detidos dos blocos A e B e de onde, durante a prisão, só conseguia ver o céu e as gaivotas que sobrevoavam a cadeia, vê-se agora o mar, pela entrada aberta. “Este ambiente hoje não é festivo, mas é calmo. É quase convidativo a entrar. Naquela altura era terrífico. Chegávamos à entrada e éramos logo revistados. Alguns tinham de tirar as calças e virar o rabo e tal. É uma tentativa de humilhação, nós tínhamos de ser fortes. Estávamos trabalhados para isso, tínhamos mentalidade para aceitar essas coisas, mas que era uma tentativa de humilhação infame, é verdade. E estas coisas que são pequenos aspectos da vida prisional não chegam a toda a gente. Os testemunhos cada vez vão sendo menos, as pessoas vão sendo menos, as pessoas vão passando por esta vida.”
Há coisas difíceis de explicar, continua o homem da Cova da Piedade, de 83 anos, como o que faz a um homem ficar privado da paisagem e alimentar-se apenas de sons. “À noite, as traineiras que iam para o mar faziam tac-tac-tac. Era comovente. E a chegada. Era como se estivéssemos lá e fizéssemos aquela viagem de ida e volta também na traineira. Isto para quem ouve esta narração parece uma coisa de somenos, mas eram momentos que nós guardamos, ainda hoje. Aquilo era uma coisa que tocava. Criava em nós sensações de liberdade exterior que não tínhamos, não se via nada. O que víamos aqui era o céu e as paredes.”
E, às vezes, caranguejos que aterravam no pátio, nos dias de tempestade. “A partir de Setembro e até Dezembro, Janeiro, o mar agitava-se de uma maneira feroz. Vocês vão ver a distância entre este espaço aqui e a muralha, e a água vinha e trazia caranguejos vivos que vinham bater aqui [no pátio do recreio]. O que eram as ondas… E por baixo [do bloco A] isto é do género da Boca do Inferno. Os pedregulhos que estão por ali são revoltos pela água e batem por baixo, onde a gente dormia… Onde a gente tinha a cama, o dormir era acidental. Em pleno Inverno, as condições eram terríveis.”
Ainda hoje, inconformado, Mário Araújo diz que foi preso por ter ajudado “a montar uma escola”. Apesar de, na altura da sua prisão, em 1967, já pertencer ao PCP, foi em Peniche que desenvolveu os seus conhecimentos políticos. “Estive [aqui] com o amigo Adelino Pereira da Silva, que me politizou, aqui nestes recreios. Podíamos falar dois, não podíamos falar três, mas arranjávamos sempre maneira, até pela correspondência nas mortalhas, pelos livros, nas lombadas, essas coisas. E este Adelino informou-me o que era o partido, enraizou-me o partido”, conta. Se já “havia fascínio”, diz, ali ganhou suporte para as suas convicções.
Quando Mário ali chegou, Adelino Pereira da Silva já se encontrava em Peniche desde 24 de Março de 1964. Acompanhado por Mário, José Pedro Soares e Clemente Alves — dois outros ex-presos políticos, que ali estiveram nos anos 1970 e cujas histórias serão contadas na próxima edição do P2 — também ele percorre os espaços que foram o seu universo durante quase seis anos. Mário encolhe os ombros: “O Adelino é um manancial de vivências dentro da cadeia. Ele não escreve, não quer escrever. São sentimentos, são vivências…”
Adelino não escreve, mas conta, quando lhe perguntam. Basta que queiram ouvir.
Conta, por exemplo, que, em criança, a casa dos seus pais já servia de apoio para reuniões da direcção do PCP e que era um vaivém de “tios e tias” que entravam e saíam, como Pires Jorge ou Dias Lourenço. E que assim que entrou para o partido, em 1959, tinha então 20 anos, a primeira tarefa que lhe deram, sem que sequer o sonhasse, estava relacionada com a fuga colectiva de Peniche. “Foi ir tirar a carta de condução”, diz. Na clandestinidade, responsabilizou-se pela montagem de várias tipografias clandestinas e, no final daquele ano, dizem-lhe que vá dar, finalmente, uso à carta que o partido o ajudara a obter em duas semanas. “O Pires Jorge diz-me: ‘Vais ter uma tarefa que é, vais fazer os trajectos, vês as alternativas todas, entre Lisboa e Peniche’.” Só quando aconteceu a fuga, é que o jovem funcionário do PCP percebeu o que andara a fazer. “O resto é conhecido”, sorri.
A família na prisão
Adelino Pereira da Silva montou uma casa na clandestinidade com a companheira designada pelo partido, Alice Capela, e acabam a viver como casal. Quando ele é preso, a 31 de Janeiro de 1963, já tinham um filho em comum, de quase três anos. Tinham mudado de casa naquele dia, por suspeitarem de que estariam já sob vigilância, mas Adelino insistiu em regressar à antiga morada para ir buscar alguns papéis que lá deixara. Alice pressente o pior e tranca a porta, não o quer deixar sair. “Não vais porque eu tenho um pressentimento de que vais lá ficar”, disse-lhe ela. “Andei ali a rabiar atrás dela até que lhe consegui tirar a chave e fui mesmo.” A PIDE prendeu-o quando metia a chave à porta do antigo apartamento.
Em Dezembro desse ano, Alice e a mãe dela também são detidas e a criança acompanha-as. Passa cerca de três meses entre os muros de Caxias, antes de, perante as ameaças da PIDE de que o pequeno Alfredo seria entregue a um orfanato, acaba por ir viver com um tio.
Por esta altura, já Adelino sofrera pesadas torturas, no vaivém entre o Aljube e a António Maria Cardoso. Espancamentos, 14 dias de tortura do sono, com uma curta interrupção para descansar ao fim do sétimo, tortura psicológica, com a audição de gravações de choros de criança e gritos de mulher, que imaginava serem Alice e Alfredo. Numa carta que envia a uma tia, em Junho de 1963, e que a PIDE guarda no seu ficheiro, deixa antever o sofrimento a que fora sujeito, ao escrever, referindo-se ao seu estado de saúde: “São precisamente tais complicações, estas e outras que vão surgindo, que nos podem encurtar a vida. Embora a devamos defender com todas as nossas forças, isso não nos deve assustar, de maneira alguma. Devemos ser calmos e ter sangue-frio, quer nestas quer noutras situações difíceis! Há dias em que me vejo obrigado a meter na cama. Dão-me tonturas, perco o equilíbrio, tendo já caído algumas vezes, quando não consigo ou não tenho tempo de amparar-me. Começam as pontadas fortes e agudas nos pulmões e coração, ao mesmo tempo subindo também a temperatura. Quando isto sucede, fico completamente esgotado, dado o esforço físico que tenho de fazer. Mas isto passa. Com calma vai. Não passa num mês, passa num ano, mas há-de passar!”
Adelino só seria julgado a 13 de Fevereiro de 1964, sendo condenado a três anos de prisão maior e medidas de segurança. Durante o julgamento tenta ler uma declaração de quase 17 páginas que é uma verdadeira acusação ao regime a apologia do PCP, e é levado “à porrada para o calabouço do tribunal”. Entra na Cadeia do Forte de Peniche no dia 24 de Março e, em Abril, é de novo julgado, sem sequer estar presente, por falsificação e uso de documentação falsa. O cúmulo jurídico das duas condenações salda-se em quatro anos. Vai cumprir, contudo, quase seis, graças às medidas de segurança.
Miolo de pão, sabão e cigarros
No forte colocam-no na cela 4 do pavilhão B, em regime de “observação”. “Quando chego aqui sou despojado de tudo. Sou enfiado ali e a única coisa que me dão são os sapatos e a roupa que trazia vestida. Não tinha nada para escrever, nada para ler. Nada.” O período de “observação”, que deveria durar seis meses e durante o qual o preso estava impedido de comunicar com os outros detidos, prolongou-se, no caso dele, por mais de cinco anos. Para se distrair, construiu dois jogos de xadrez com miolo de pão e jogava sozinho, horas a fio. Mas a proibição de contactar com os companheiros detidos era contornada nos raros momentos em que se cruzavam — no recreio, à hora das refeições — e Adelino acabou por assumir uma das tarefas mais importantes dentro da cadeia: as comunicações.
As mensagens podiam ser coladas com sabão no tanque onde os presos iam lavar a roupa. Ou dentro de uma peça de roupa a secar no estendal. Ou deixadas escondidas nas zonas que partilhavam, como o refeitório ou o quarto de banho. Ou atiradas dentro de bolinhas de miolo de pão (Dias Lourenço também usara miolo de pão para disfarçar os cortes que ia fazendo na porta do “Segredo”, quando dali fugira) no recreio. Para o exterior, minúsculos papéis preenchidos com letra ainda mais microscópica eram escondidos em peças de roupa ou em cigarros. Ele, que não fumava, começou a fumar, para ter acesso às mortalhas em que escrevia mensagens. O primeiro lápis que recebeu, ainda no Aljube, foi dentro de um cigarro.
Às vezes, os guardas apanhavam estas mensagens, seguindo-se os castigos. E estes, recorda Adelino, podiam acontecer por qualquer razão. Ou porque os presos decidiam partilhar comida que a família lhe enviara — o que nesta altura era proibido —, porque diziam algo que não deviam ou por algum comportamento que desagradava aos guardas durante as visitas. “Nós éramos castigados constantemente”, diz.
Adelino chega a Peniche já depois do início da Guerra Colonial, quando a repressão na cadeia aumentou. E a luta dos presos se intensificou. Houve levantamentos de rancho, quando os presos se recusavam a comer. “Fizemos um durante três dias, recusávamo-nos a comer porque a comida era intragável. A sopa, por exemplo. Aquilo não era sopa. Espetava-se a colher e ela ficava de pé. E o cheiro era intragável. O peixe normalmente era aquele chicharro que eles não queriam, que vinha da lota. Aquilo cheirava a fétido que tresandava e começámos a protestar.” E houve verdadeiras sessões de gritaria colectiva de “temos fome, temos fome” e “melhores condições prisionais”, que chegaram a ser acompanhadas por familiares e moradores de Peniche no exterior da cadeia. Tudo combinado para acontecer em simultâneo, graças ao sistema clandestino de troca de mensagens.
A 6 de Abril de 1966, casa-se com Alice por procuração. O documento que oficializa o acto dá-o como residente na Cadeia do Forte de Peniche e ela na Cadeia de Caxias. Só depois do casamento puderam começar a corresponder-se. Quando saiu em liberdade condicional, a 10 de Outubro de 1969, Alice tinha sido libertada apenas no mês anterior.
Ele saiu sozinho, mas, como era dia de visita, apanhou boleia para Lisboa. António Borges Coelho também saíra sozinho e não esquece esse momento. “Fui o primeiro preso a sair depois da fuga. Quando cheguei à porta, antes de atravessar aquela ponte de saída, uma mulher de pescadores aproximou-se de mim. Eu vinha com duas malas que carregava, estava o chefe dos guardas e os guardas à porta e perguntou-me o que estava a ver, o que estava a acontecer. ‘Está a sair, não está?’ Estou. ‘Então deixe-me dar-lhe um abraço.’ Ali, nas barbas dos guardas, foi dos grandes abraços da minha vida. Digo-vos sinceramente: nessa altura, tinha dificuldade em atravessar um largo. Desequilibrava-me. Estava de tal maneira habituado aos cinco anos a lá estar metido que não conseguia atravessar calmamente um largo.”
Mário Araújo tinha uma comitiva à espera. Atrasaram-se um pouco, mas, quando ele já desesperava, “apareceram umas dez ou doze pessoas, em três ou quatro carros”. Para trás ficava a cadeia que ainda hoje lhe provoca “um estremecer de sentimentos, uma amálgama de sensações, que é indizível”.
Há sempre coisas novas que lhe vêm à memória. Pequenas histórias. Como aquela da menina que, enquanto a mãe visitava o marido detido em Peniche, ficou no exterior a passear com o avô, sem saber que o pai estava ali dentro. Olhando a enorme estrutura do forte perguntou o que era aquilo. “O avô diz-lhe: ‘aquilo é uma cadeia.’ E às duas por três, a menina: ‘Uma cadeia assim tão alta? É uma cadeia dos homens maus, ali os homens são maus’.” O avô, recorda o velho resistente, deu-lhe a resposta que foi depois partilhada através do vidro do parlatório com o pai da criança e transmitida aos companheiros: “Não, aquela é a cadeia dos homens bons.”
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