sábado, 22 de dezembro de 2018

E agora, Lula? Continua a “farsa de uma republiqueta”


NELSON ALMEIDA/AFP/GETTY IMAGES

Esta semana, Lula da Silva recebeu ordem de soltura mas nem chegou a sair da prisão. A decisão de um juiz do Supremo Tribunal Federal foi revogada pelo presidente do mesmo tribunal. O ex-juiz Sergio Moro, responsável pela condenação do antigo Presidente do Brasil e futuro ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, não quis comentar. Já o Presidente eleito congratulou-se com a revogação. Com “um governo de perfil militar, esse impacto da caserna tende a tornar-se maior”, prognostica historiador

Em menos de seis horas, o ex-Presidente do Brasil Lula da Silva esteve, na quarta-feira, com o pé praticamente fora da cadeia de Curitiba para acabar a ver confirmada a sua prisão. Tudo se passou no interior do Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de uma decisão tomada por um juiz e contrariada depois pelo presidente do Supremo. “Essas idas e vindas judiciárias são um capítulo da farsa em que as forças políticas e ideológicas se assenhorearam do que deveria ser a última fortaleza da democracia, que é a preservação do Direito e o respeito à Constituição”, comenta ao Expresso o historiador brasileiro Francisco Marshall.
Foi uma ação movida pelo Partido Comunista do Brasil que esteve na origem da decisão do juiz Marco Aurélio Mello, que, por volta das 14h de Brasília, suspendeu a possibilidade de prender condenados em segunda instância antes do trânsito em julgado, ou seja, esgotadas todas as possibilidades de recurso. O partido pedia que o STF reconhecesse a harmonia entre a Constituição e o artigo 283 do Código de Processo Penal, que só prevê a prisão após o trânsito em julgado. Como fundamento da sua decisão, Marco Aurélio afirmou que a constitucionalidade do artigo em questão não suscita dúvidas.
No entanto, pouco antes da oito da noite, o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu a decisão do colega, esfumando-se, assim, a possibilidade de Lula, preso desde 7 de abril, ser libertado. Ao reverter a decisão, Toffoli argumentou que o plenário do Supremo já tinha decidido anteriormente que era possível a prisão em segunda instância – decisão, que segundo ele, deveria ser respeitada. Marco Aurélio lamentou que a sua decisão tivesse sido revogada, dizendo ao jornal “Folha de S. Paulo” que “a autofagia é péssima para a instituição” e questionando se o Supremo continua a ser a “última trincheira da cidadania”.

“A TRANSGRESSÃO ÉTICA DE MORO É MONUMENTAL”

A libertação de Lula, pedida pelo seu advogado após a decisão do primeiro magistrado, cabia à juíza Carolina Lebbos, que não a quis ordenar de imediato. De resto, a decisão já estava a ser criticada pelos procuradores da Operação Lava Jato, com o coordenador Deltan Dallagnol a afirmar: “A decisão contraria o sentimento da sociedade que exige o fim da impunidade. Ela, na verdade, consagra a impunidade violando pretendentes estabelecidos pelo próprio STF.” Entretanto, já a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recorria da decisão de Marco Aurélio.
O responsável pela condenação de Lula, o ex-juiz Sergio Moro e futuro ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, não quis comentar. Já o Presidente eleito, que toma posse a 1 de janeiro, deu os “parabéns” ao presidente do STF por “derrubar a liminar que poderia beneficiar dezenas de milhares de presos em segunda instância no Brasil e colocar em risco o bem-estar”. E, escrevendo no Twitter, acrescentou que a sociedade “já sofre diariamente com o caos da violência generalizada”.
Francisco Marshall considera que o episódio de quarta-feira acentua a “polarização indevida” da sociedade e um “quadro de passionalidade” que “impede que se veja com lucidez o que importa: os aspetos históricos e rigorosamente jurídicos”. “Como cidadão brasileiro e historiador, vejo um processo marcado pela iniquidade”, avalia. “É notória a fragilidade ética – para não dizer a imoralidade – do juiz Moro, que decidiu o destino de quem, afinal de contas, era o principal oponente capaz de derrotar o político que este Moro vai servir. A transgressão ética de Moro é monumental e ofende quem tenha qualquer tipo de serenidade judiciária ou histórica. É uma farsa de uma republiqueta que o Brasil talvez nunca tenha deixado de ser”, critica.

“A ESCALADA DE PODER DOS MILITARES”

No dia seguinte ao vaivém, o Partido dos Trabalhadores (PT), partido de Lula, acusou o presidente do Supremo de ter cedido a um “verdadeiro motim judicial, com um claro viés político-partidário”. “A decisão tomada às pressas e com precária base institucional demonstra claramente o alinhamento da presidência do Supremo com soluções autoritárias que atendem ao objetivo de calar a voz de Lula no cenário político brasileiro”, lê-se ainda no comunicado do PT.
O historiador contactado pelo Expresso também não ignorou “a escalada de poder dos militares”, “uma vez que Toffoli é monitorizado por generais que acompanharam todo o dia daquela tramitação”. “Desde que Marco Aurélio anunciou a decisão, houve uma mobilização intensa nos quartéis e isso não é nada bom porque o papel dos militares não é ter um voto qualificado pela força mas proteger as fronteiras e garantir a segurança nacional”, denuncia. A situação deverá piorar: com “um governo de perfil militar recentemente eleito, esse impacto da caserna tende a tornar-se maior”, prevê.
Concedendo que “todo o cidadão tem direito à sua expressão”, Marshall contesta que “ela seja realizada dentro da instituição, com a farda” num “quadro pervertido das instituições”. Afinal, continua, “são funcionários que nós pagamos com os impostos e que acabam atuando contra a sociedade, em defesa de interesses que constroem e não realizam pelo voto, mas por uma pressão vinda da força, que é inimiga da democracia”. Os acontecimentos desta semana configuram, por isso, “uma escalada da pressão militar sobre a condução da política brasileira”, resume.

LULA, O “TOTEM” DOS APAIXONADOS INGÉNUOS

No início da semana, ainda antes da decisão tomada e revogada, o presidente do STF marcou para abril do próximo ano uma sessão no Supremo para discutir novamente a figura da prisão após segunda instância. Nessa altura, Lula, que se encontra preso há mais de oito meses, voltará a estar no centro das atenções.
Até lá, continuará aquilo que Marshall chama de “dialética muito ruim entre a ingenuidade dos apaixonados por Lula e os que o odeiam e comemoram tanto a sua prisão como o sofrimento dos que o adoram”. Não deixando de condenar a atitude dos segundos, o historiador contesta igualmente que Lula continue a assumir uma posição de “totem, talvez mesmo de fetiche, para uma parte dos seus correligionários no partido e aliados”. “Eles parecem ter uma esperança infantil de que haverá uma solução jurídica enquanto está claro que não haverá”, conclui.

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