terça-feira, 27 de novembro de 2018

Ameaças de morte, cocos e um porco empalado: a história de Pandit, o homem que melhor conheceu os indígenas da ilha Sentinela



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Os nativos da Baía de Benguela mataram um missionário dos EUA e tudo à cerca deles parece estar envolto em mistério. Mas um explorador da Índia já esteve com eles. Esta é a sua história.


TN Pandit

Corria o ano de 1967 quando o Ministério dos Assuntos Tribais indiano decidiu dar um salto no escuro: estabelecer contacto com a até então misteriosa tribo da ilha de Sentinela do Norte, um pequeno ponto de terra “plantado” entre a Índia e o Myanmar, considerada a ilha mais isolada do mundo: não só pela disposição geográfica, mas porque os seus (quase desconhecidos) habitantes matam todos quantos dela se aproximam como agora aconteceu com um missionário dos EUA. Trilok Nath Pandit, que na altura tinha teria trinta e poucos anos, já era um respeitado antropólogo e, como trabalhava como dirigente regional do próprio ministério, foi escolhido para liderar a equipa de vinte pessoas que se ia aventurar.
As intenções demoraram pouco tempo a virarem prática e em menos de nada, Pandit e a sua equipa já estavam num barco, a caminho da ilha, sem saberem bem o que ia acontecer. O antropólogo, hoje com 84 anos, escreveu num ensaio sobre a sua experiência o seguinte: “Levávamos presentes, tachos, panelas, grandes quantidades de côco, ferramentas metálicas como martelos e facas compridas. Trazíamos também connosco três homens Onge (outra tribo local), na esperança que eles pudessem ajudar-nos a traduzir o que eles diziam e a forma como agiam.” O excerto pode levar a crer que já se sabia muito sobre o assunto, mas não, tudo era apenas uma grande incógnita.
Da primeira vez que ambos os lados se cruzaram, os indígenas revelaram-se tímidos, a crer pelo que foi escrito. O antropólogo relata que “escondiam-se na vegetação” e davam poucos (ou nenhuns) sinais de que quisessem fazer o favor “ao homem civilizado” — mas isso não demoveu os intrépidos investigadores. Contudo, só 24 anos depois é que o ambos os lados se aproximariam pela primeira vez.

“Fico muito triste”, mas “ele insistiu e pagou com a sua vida”

Pandit pode ter demorado 24 anos para conhecer a tribo de Sentinela do Norte, mas foi num instante que recentemente os seus membros voltaram às notícias. O mundo inteiro “redescobriu” estes indígenas que viveram dezenas de milhares de anos num estado de quase completo isolamento por culpa de um outro homem: John Allen Chau, o “missionário” norte-americano ao tentar visitar esta ilha (algo completamente proibido pelas autoridades indianas, que gerem o território, porque a mais simples doença ocidental pode dizimar completamente a população de Sentinela do Norte e pela sua violência contra desconhecidos) para lá espalhar o cristianismo.
Pelo que se sabe até agora, Chau, de 27 anos, terá subornado pescadores indianos com 25 mil rupias (cerca de 315€) para que estes o levassem o mais perto possível da ilha, a uns 500 ou 700 metros da praia (segundo declarações de Dependra Pathak, director da polícia dos arquipélagos de Andaman e Nicobar, dadas à CNN). Eles levavam-no e depois o jovem fez o resto do caminho na sua canoa. Chau tentou uma vez e correu mal — foi recebido por uma saraivada de setas. Ficou ferido por uma delas. Dia 16 de novembro voltou a tentar, mas teve de novo de recuar até ao barco, desta vez a nado, porque os indígenas partiram-lhe a canoa. Dia 17 terá feito nova e última investida: os mesmos pescadores que o ajudaram alegam ter visto os membros da tribo a arrastar o corpo do norte-americano até à praia e, depois, um enterro.
A morte de John rapidamente virou notícia pelo mundo fora e o debate começou: seria possível recuperar o corpo? Se sim, como? Haveria resistência? As autoridades locais ignoraram as questões e partiram em busca do cadáver. Ao serem recebidos da mesma forma que quase todos os outros (não esquecer Pandit, mas já lá regressamos) que já tentaram visitar Sentinela do Norte — com flechadas — decidiram esta terça-feira cancelar os esforços.
“Sinto-me muito triste pela morte desse jovem que veio de tão longe, da América. Mas ele errou. Teve várias oportunidades para se salvar. Ele insistiu e pagou com a sua vida”, disse agora o mesmo Pandit à BBC. Não descartando totalmente a hipótese de ainda ser possível resgatar o corpo do jovem norte-americano, o especialista pretende dar especial destaque à ideia de que “eles não são violentos”, pelo contrário, “são pacifistas”. “É incorreto ver as coisas assim [que os indígenas são violentos]. Neste caso, nós é que somos os agressores”, contou o mesmo ao Indian Express. “Somos nós que estamos a tentar entrar no seu território, não o contrário.”

Uma lança no porco e a ameaça de morte

De volta a 1991 e ao primeiro grande avanço das expedições de Trilok Nath Pandit. Da mesma forma que hoje o investigador defende o pacifismo da tribo, há 27 anos, quando os conheceu “a sério” pela primeira vez, já pensava da mesma forma, mesmo tendo em conta que nesse primeiro contacto, em que “os invasores” aceitaram as regras dos indígenas e os contactaram dentro do oceano, com água pelo pescoço, “os guerreiros estavam com caras zangadas e fechadas, cheios de armaduras e com os seus longos arcos, prontos a defender o seu território”.
O semblante pesado foi-se dissipando à medida que Pandit e a sua equipa lhes iam dando presentes. Em pouco tempo o clima tornou-se mais leve, pacífico: “Ficámos completamente intrigados, sem perceber porque nos recebiam. Eles é que decidiram criar contacto e seguimos sempre as suas regras. Saltámos dos barcos, e ficámos ali, com água pelo pescoço, a distribuir cocos e outros presentes. Mas eles nunca nos deixaram pisar a sua ilha”, relata o octogenário.
Depois deste primeiro momento, Pandit e a sua equipa — conta o El País —  acabaram por ir à ilha, conheceram as suas casas, utensílios e esse vislumbre fê-los perceber que os ‘sentinelenses’ habitavam aquele sítio há milhares de anos. Nunca se preocuparam demasiado com a probabilidade de serem atacados, mas mantiveram-se sempre cautelosos quando estavam todos juntos, afastando-se deles sempre que os sentissem agitados, por exemplo. Apesar de nunca lhes ter acontecido nada, houve um ou outro momento de tensão. Um deles, por exemplo, aconteceu quando a equipa de investigadores decidiu oferecer-lhes um porco vivo, que amarraram a um tronco de árvore. Pandit conta que assim que o viram prefuraram-no com uma lança e enterraram o corpo. Outro episódio, este mais “assustador”, aconteceu durante uma destas sessões de oferenda.
“Quando estava a dar uns cocos, acabei por me separar do resto da equipa e comecei a deambular”, contou Pandit à BBC. A certa altura cruzou-se com um jovem da tribo: “Ele olhou para mim, fez uma careta, pegou na sua faca e simulou que me cortaria a cabeça. Imediatamente recuei e juntei-me ao grupo. O gesto do rapaz foi bastante claro, não devia abusar.”

Perigo da dizimação e pacifismo

“Os habitantes da ilha de Sentinela do Norte são pacifistas, eles não procuram atacar ninguém. Nem sequer visitam outros sítios nem causam problemas. Isto [o incidente com John] foi um incidente muito raro”, afirmou Pandit. Por muito que aos olhos ocidentais esta tribo pareça violenta e agressiva, a verdade é que é precisamente o ocidental que melhor os conhece que diz o contrário. Na verdade, os ‘sentinelenses’ são infinitamente mais vulneráveis do que possa parecer.
Desde as aventuras de Pandit que governo indiano nunca mais permitiu expedições com oferendas e baniu forasteiros de sequer se aproximarem da ilha. O quase completo isolamento dos indígenas significa que qualquer contacto com “o mundo exterior” possa ser uma ameaça mortal. O isolamento faz com que não tenham qualquer imunidade a doenças convencionais, como a gripe ou o sarampo.
Esta ameaça é levada tão a sério que o próprio Pandit e a sua equipa, quando começaram as primeiras expedições, faziam rigorosíssimos testes físicos para garantir que ninguém se aproximaria dos indígenas com o mais ténue indício de doença — um simples espirro podia dizimar todos os cerca de 250/300 habitantes desta ilha misteriosa (tal como aconteceu na América do Sul, no tempo dos incas, maias e aztecas, quando estes foram dizimados pelos conquistadores espanhóis).
Apesar de todo este trágico e recente episódio, Pandit defende que estas trocas de presentes e aproximações deviam ser retomadas, se bem que nunca de forma a perturbar a ilha. “Devemos respeitar o seu desejo de serem deixados em paz”, afirmou o especialista. Esta visão é a mesma de vários grupos de ativistas como a Survival International, que chegaram a implorar às autoridades para que cessassem todas as tentativas de recuperar o corpo de Chau. Independentemente de terem sido estas palavras ou o simples medo de pôr mais vidas em risco que motivou o cessar de buscas já anunciado, a verdade é que é bastante provável que nunca mais se volte a vislumbrar o corpo de John Chau.

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