Por Tavares Braz
Já foram, hoje nem tanto, muito famosas as não poucas histórias caricatas decorrentes da relampejante ocupação das casas dos colonos brancos em debandada, no pós-independência, que revolucionariamente baptizamos como nacionalizações, desde prédios e casas de rendimento, escolas, hospitais, seminários, missões e igrejas católicas.
Era o milho mergulhado na inútil banheira, junto de um poço de muito pouca água; era o parquet a servir de lenha em dias de chuva; era a varanda traseira da flat a servir de local para pilar; enfim, era o subverter dos espaços e o esventramento de toda a casa, ao jeito de quanto maior, melhor, pois, assim se arranjava um espaço para a criação de pequena espécie. Emblemático, negando-se a uma amnésia colectiva, está a crónica do incontornável Mia Couto com o título “Um pilão no 9º andar”.
Estas lembranças me ocorrem ao olhar, mesmo que de soslaio, para certas escolas aqui da cidade de Quelimane e, infelizmente, também da minha terra, Gurúè. Nesta e abreviando caminho, me recordo do aquário colocado mesmo defronte à principal entrada (porta) da Escola Secundária do Gurúè, onde, ao tempo de Colégio do Imaculado Coração de Maria, nos deliciavam a vista os coloridos peixinhos, saindo e entrando por entre as pedras ornamentais, indiferentes à estátua de uma santa erigida mesmo no centro, de cujo pote sobraçado ia jorrando continuamente água.
Já Escola Secundária, se começou por prolongados períodos sem limpeza com consequente esverdeamento da água, já pútrida, e a anunciada morte dos peixinhos; adiante, se transformou o aquário em depósito das águas das chuvas usadas para a limpeza do gabinete do director e da secretaria, que ficam mesmo à entrada e que não deviam ficar senão limpas, pois não havia datas certas para a visita das “estruturas”.
Foi o fim de um lindo aquário – haverá, por acaso, o equivalente a aquário nas nossas muitas línguas bantu?
Voltando às escolas da cidade de Quelimane, a capital provincial da Zambézia, noto que os campos cobertos e mistos, para a prática de futebol e basquetebol, das escolas secundárias gerais 25 de Setembro e Patrício Lumumba, e o da actual Universidade Católica de Moçambique, faculdade de ciências sociais, só escaparam à vandalização, que à frente esmiuçarei, porque o colono, nem sei se precavendo de nós, colocou um piso de alcatrão, até hoje incólume, e uma estrutura metálica em ferro galvanizado para receber a cobertura das chapas de zinco, aqui, aqui e ali, ali desmentindo a sua atemporalidade.
Tanto assim é que tiveram sorte diferente os dois campos de futebol e basquetebol e uma caixa de saltos, uma especialidade do atletismo, situados longe da coberta, na Escola Secundária Geral 25 Setembro.
É que, um certo director provincial de educação, ao que parece no tempo da junção com a cultura, ainda estava para vir o desenvolvimento humano, cujo nome infelizmente me escapa, ao chancelar as obras de construção de um centro internato misto, porque deserdada, a educação, dos antigos Lares dos Continuadores e da Sagrada Família, retomados pela igreja católica, entendeu que os referidos campos e a caixa de saltos eram coisa do colono, que nunca se havia lembrado daquele remanescente terreno para as obras por ele ora indicadas, e mandou arrasar tudo, sobrando para a posteridade as tabelas em providencial betão.
Ainda em Quelimane, mas no actual Instituto Industrial e Comercial 1º de Maio, mais comercial que industrial, dada a precariedade das suas oficinas, de máquinas obsoletas há muito fora de uso, apenas lembrando a áurea passagem da DANIDA, Organização Governamental Dinamarquesa, e com aulas práticas apenas de se fazerem pagar extraordinariamente, pois aos alunos não aproveitam, repousa colonialmente uma piscina há muito fora de uso, quase se empatando aos anos da independência.
De sujas e pútridas águas, lavadas pelas da chuva, a piscina, à semelhança do conjunto das oficinas das várias especialidades então ali ministradas, mereceu também a atenção dos dinamarqueses, que, inclusivamente, patrocinaram um estudo a uma empresa de hidráulica, tendo obtido como sugestão conclusiva ser mais racional e viável a construção de uma nova piscina.
Aonde morreram os passos subsequentes, se havidos, desconheço. A verdade é que ali vai ficando a piscina, de vez em quando roubando a uma família uma incauta criança que se atreveu a mergulhar sem saber nadar.
É pois perante este triste mas real quadro que não deixo de me perguntar: mas, porquê? Será por serem heranças desmerecidas? Se merecidas ou se não, a verdade é que se tratam, nuns casos, se tratavam, noutros exterminadores casos, de muito gratas heranças.
Pena, na verdade, é de se terem tratado de coisas que para nós são de somenos importância, podendo, por isso, nem existir.
A provar o que atrás deixo escrito é a realidade das nossas muitas novas escolas, cuja construção apenas contempla as salas de aula, bloco administrativo e a casa do director, havendo esta, nunca constando da planta a construção de um pequeno campo que seja, de terra batida ou de jogos de salão – nem quero falar de sanitários ou água canalizada.
As aulas de educação física se resumem à rotineiros números de ginástica e cansativas correrias por entre as árvores, nas escolas mais antigas, da inconclusiva directiva presidencial de “um aluno, uma árvore”, ameaçando fazer desaparecer o sempre tão desejado pátio escolar, berço de toda a sorte de jogos e brincadeiras.
Perguntando de outro modo: será que não merecíamos mesmo as heranças aqui apontadas?
DIÁRIO DA ZAMBÉZIA – 30.07.2018
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