O sistema de justiça em Angola, com excepções à regra, tem sido tão arbitrário que castiga à toa os desfavorecidos e produz regularmente autênticas palhaçadas judiciais.
Por exemplo, a 15 de Fevereiro, o Tribunal Supremo ordenou a libertação provisória de dois missionários africanos, Burns Musa Sibanda (Zâmbia) e Passmore Hachalinga (Zimbabué), detidos desde o dia 29 de Dezembro passado, na Comarca de Viana, deferindo um pedido de Habeas Corpus. Note-se, todavia, que, embora a decisão do Tribunal Supremo seja acertada, o tempo que demorou a decidir é demasiado para este tipo de providência de emergência. Na realidade, os missionários foram presos ilegalmente a 29 de Dezembro de 2017, e o Habeas Corpus, intentado a 3 de Janeiro de 2018. Contudo, a ordem para os libertar é dada um mês e meio depois. Em rigor, um Habeas Corpus deve ser instantâneo, e a deliberação deve demorar no máximo uma semana.
No dia da sua detenção, os pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia foram inopinadamente confrontados com mandados de captura à porta do tribunal, quando se dirigiam à sala de audiências para ouvirem a leitura da sentença, na qualidade de arguidos no caso de rapto inventado pelo pastor Daniel Cem. O juiz António Francisco, da 13.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no Kilamba Kiaxi, decretou a prisão preventiva de ambos, e estes acabaram por entrar na sala de audiências algemados.
Os dois pastores, que se comunicam em português através de intérpretes, foram acusados e condenados a penas de três anos e seis meses cada, por calúnia e difamação, como co-autores de uma carta anónima, em português, que circulou ao nível da direcção da Igreja Adventista do Sétimo Dia. A mesma carta alegava a simulação do rapto pelo pastor Daniel Cem, o que ficou claro durante o julgamento e levou o Ministério Público a pedir a absolvição dos réus.
O mesmo Ministério Público também considerou ilegal a detenção dos dois pastores, nos seguintes termos constantes do acórdão do Tribunal Supremo: “O mandado de captura emitido pelo juiz ‘a quo’ funda-se na quebra de caução, ora não tendo sido imposta aos requerentes tal medida de coacção a prisão dos mesmos afigura-se-nos ilegal.”
Por sua vez, o Tribunal Supremo nota que o crime de difamação e calúnia, de que os pastores foram acusados e pronunciados, “prevê penas de 3 dias a 4 meses e multa até um mês e de três dias a um ano e multa correspondente (…)”, e, para o efeito, o referido crime “não admite outra medida de coacção pessoal se não a de Termo de Identidade e Residência (…)”.
Pelo exposto, afigura-se ilegal a caução aplicada aos requerentes, e a consequente prisão por quebra, porquanto, pela moldura penal do crime cometido, em nenhum caso se lhes podia aplicar tal medida de coacção, muito menos a de prisão.
Tanto o Ministério Público como os juízes do Tribunal Supremo referem que os pastores Sibanda e Hachalinga recorreram da sentença condenatória e, por conseguinte, a execução da mesma é suspensa até à decisão de recurso na instância superior. Assim, podem aguardar em liberdade pela decisão do Tribunal Supremo.
“Intentámos o Habeas Corpus a 3 de Janeiro passado e o juiz António Francisco só respondeu a 15 de Janeiro (tramitação do processo junto do Tribunal Provincial), tendo justificado a demora pela falta de energia eléctrica no tribunal”, explica o advogado Bruce Filipe.
O advogado explica ainda o seguinte: “Fizemos uma participação contra o juiz e também levantámos o incidente de suspeição. Todos os actos praticados pelo juiz António Francisco fogem à regra do direito e são altamente suspeitos. Não sabemos qual é o móbil da sua postura.”
Acresce que, apesar de a decisão do Tribunal Supremo ser clara e de execução imediata, tem havido dificuldades no cumprimento da mesma. Os pastores ainda não tinham sido libertados a 27 de Fevereiro de 2018. Isso é incompreensível e constitui uma clara desobediência às instruções dos juízes do Supremo. Aparentemente, “há manobras do juiz e do seu pessoal administrativo, nomeadamente da escrivã Fernanda Borges”, denuncia o advogado Bruce Filipe.
“O cartório ora diz que ainda não recebeu ordens do juiz de causa, António Francisco, para cumprir com a decisão do Tribunal Supremo, ora diz que o processo está a tramitar no gabinete do juiz”, continua o advogado.
Bruce Filipe refere que cabe ao juiz de causa emitir o mandado de soltura, e que este não o faz. “É um processo que deve demorar 24 horas”, afirma.
Naturalmente, o juiz António Francisco está a cometer um crime por cada dia a mais que deixa os pastores na prisão e não os manda libertar.
Enche-nos de perplexidade ver a forma desassombrada como os juízes de primeira instância não obedecem à lei, cometem crimes e continuam a exercer funções como nada se passasse. Compete à PGR começar a instaurar processos-crime às exorbitâncias dos juízes, e ao Conselho Superior da Magistratura tomar medidas sérias a este respeito.
Enquanto os juízes angolanos não respeitarem a lei e os cidadãos, mil discursos de João Lourenço equivalerão a zero.
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