sexta-feira, 14 de abril de 2017

Portugal: evitando falar sobre escravatura desde 1761


OPINIÃO


Quando é que Portugal finalmente fará o grande debate público que se impõe sobre a escravatura e o seu papel nela?
Foi à saída da exposição sobre Lisboa Cidade Global, no Museu Nacional de Arte Antiga. Uma pessoa abordou-me, apresentou-se, e confessou-se chocada: a exposição era linda, as peças eram magníficas, os quadros que representam Lisboa no século XVI valiam por si só a visita, mas onde estava uma explicação sobre como tinham vindo cá parar aquelas riquezas e, sobretudo, aquelas pessoas? Onde estava explicado o papel pioneiro — e cimeiro — que Portugal teve no tráfego de escravos?
Terá por isso razão Marcelo Rebelo de Sousa quando ontem, no Senegal, afirmou que Portugal reconheceu a injustiça da escravatura nesse ano? Infelizmente, não. Aí começou apenas uma longuíssima trajetória de avanços e recuos para o fim das relações entre o Estado português e a escravatura. E começaram também os silêncios e eufemismos que até hoje se têm substituído a um verdadeiro debate no nosso país sobre a escravatura e o papel dos nossos antepassados nela.A crítica fazia sentido. Nos painéis explicativos havia menções aqui e ali aos escravos. A realidade não foi ignorada — mas, como é infelizmente hábito, demasiado rápido se passou à frente. E, no entanto, eles e elas lá estavam naquelas pinturas. Era impossível não os ver. Aqui, um homem negro acorrentado. Ali, mulheres negras carregando água do Chafariz d’El Rei. Acolá, um escravo cheio de dejetos porque um penico lhe rebentou em cima enquanto o transportava à cabeça. Seria impossível representar a Lisboa do século XVI sem que ela tivesse muitos escravos. O mesmo vale para qualquer cidade portuguesa a partir desse tempo, sobretudo no Novo Mundo. Portugal inaugurou a era moderna da escravatura em massa a partir de África. E foi dos países que mais participou e beneficiou daquele “ímpio e desumano abuso”, como lhe chamou o Marquês de Pombal após a sua abolição parcial a partir de 1761.
Em 1761 Pombal ordenou que passariam a ser livres os escravos que pisassem o solo do reino de Portugal e dos Algarves, dando como razão “os grandes inconvenientes” que da existência de escravos no reino resultavam “contra as Leis e costumes de outras cortes polidas”. A escravatura permaneceu pujante no resto do império português. Quem era escravo em Portugal continuou a sê-lo e, pior ainda, continuou a gerar filhos escravos, até que o Marquês de Pombal publicou em 1773 — aí sim utilizando linguagem forte contra a “infâmia do cativeiro” e os “atrocíssimos crimes” que dela resultavam — uma “lei do ventre livre” segundo a qual os filhos e filhas das escravas nasceriam livres.
É preciso esperar pelo liberalismo e pelos Setembristas de Passos Manuel, Almeida Garrett e Sá da Bandeira — o primeiro governo que em Portugal chamou a si “de esquerda” — para que haja uma tentativa de abolir o comércio de escravos no império. Foi num decreto de 1836 que falava do “infame tráfico dos negros” designando-o como “uma nódoa indelével na história das Nações modernas”, e que teve grande oposição das elites coloniais. Os setembristas duram pouco no governo e só em 1869 (com o “setembrista” Sá da Bandeira a primeiro-ministro) sai uma lei para a abolição da escravatura em toda a jurisdição portuguesa. O dia 29 de abril de 1878 — fará este mês 139 anos — seria o último em que alguém poderia ser escravo em Portugal ou no império. Em 1930 ainda havia em Lisboa gente que tinha nascido escrava.
Marcelo fez bem em referir-se a esta triste história. O problema é que ela não acaba aqui. Nem temporalmente, nem em termos políticos.
A escravatura sob outro nome continuou a ser praticada por portugueses e com caução do Estado português. Entre as duas guerras mundiais a Sociedade das Nações instituiu uma comissão contra os trabalhos forçados: Portugal foi um dos principais investigados por práticas semelhantes à escravatura nas suas colónias. E mesmo depois da IIª Guerra Mundial o uso de mão-de-obra forçada é comum nas colónias portuguesas, pelo menos até ao início da Guerra Colonial — outra atrocidade de que só nos livrámos a partir do 25 de Abril.
E em termos políticos? Aí a história ainda não acabou. Na verdade, ainda nem começou. Quando é que Portugal finalmente fará o grande debate público que se impõe sobre a escravatura e o seu papel nela? Quando é que a boa historiografia e o bom jornalismo que se vai fazendo sobre este assunto levará os nossos políticos a encará-lo de frente? Quando é que aparecerão os museus e as exposições que nos mostrem aquilo que temos até agora evitado ver? Onde estão os nomes dos escravos e as histórias das suas vidas? Tudo isto tarda há demasiado tempo já — e não há como escapar-lhe.
  1. S. Young
      
    Sim, daquilo que mais precisamos é de mais estigmas sobre os portugueses. E que tal o historiador (?) e político frustrado (ainda bem para o País) questionar-se sobre o papel de africanos que escravizavam e vendiam africanos? Quando haverá esse debate nos países da costa ocidental de África?
  2. Margarida Paredes
      
    Muito bem Rui, só faltou dizer que Marcelo perdeu uma oportunidade histórica de pedir desculpas aos africanos pela responsabilidade de Portugal na que terá sido a maior ferida da humanidade, o tráfico e comércio de escravos.
  3. jmbmarte
      
    (3) todo – mas todo – o trabalho envolvido no progresso civilizacional, contabilizará a força de trabalho a sul, não como aquela que ‘enriqueceu o norte’ (porque a riqueza não residiu nela, mas na sua organização enriquecedora pelo norte, do mesmo modo que a ‘riqueza em minério’ dos subsolos africanos é uma riqueza da tabela de Mendeleiev, é uma riqueza conceptual, não ‘fáctica’: ocidental, não africana), mas aquela que a força de trabalho do norte – a revolução filosófico-científica e tecno-industrial ocidental, pós-helénica, pós-judaica e pós-cristã – resgatou de uma existência milenar: precisamente, a existência servo-escrava.
  4. jmbmarte
      
    (1) pioneiro na escravatura, Portugal? Exactamente o oposto: pioneiro na sua cessação histórica.O amigo historiador com tique de esquerda está umas dezenas de milhares de anos atrasado no calendário. Vá ver Os Dez Mandamentos, do Cecil de Mille. E depois vá até à África negra islâmica estudar história contemporânea da escravatura. E reserve lá os choquezinhos auto-punitivos da esquerda 'pós-colonial' à saída de exposições, para outra freguesia. Deixe de soprar balões de bom menino que são um trivial anacronismo, incapaz - por pura xenofobia - de compreender 'o outro': o Outro histórico, o facto de o esclavagismo ser (até Marx o dizia) um modo de produção ancestral, e só haver cessado (e, com ele, começado a moralina vistosa das ‘pessoas chocadas’) em épocas muitíssimo recentes:
    1. jmbmarte
        
      (2) muitíssimo recentes: das quais fomos pioneiros, nós. É um problema de história, e não de moral – de passado, e não de presente (excepto na apanha de tomate em espanha e em muita roça do hemisfério sul, sempre que isso saia mais barato a gente sem escrúpulos, mas não faça disso ‘História’): não é, pois, um problema político, e a sua politização à esquerda, a sua actualização para o presente, é uma forma soez de capitalizar ideologicamente sobre o sofrimento das vítimas, postumamente instrumentalizadas a oportunas aliadas para as ‘boas causas’. Se quer actualidade, vá à África islâmica, e sossegue as boas pessoas de exposição a respeito de geografias, de histórias, de antropologias e de ideologias. E, quando o historiador pós-colonial quiser finalmente contabilizar todo – mas todo –
    2. Margarida Paredes
        
      Portugal foi pioneiro sim, foi pioneiro ao transformar homens em mercadoria, foi pioneiro em traficá-los no que terá sido a maior migração forçada do mundo, foi pioneiro em escravizar africanos nas américas e a memória dessa ferida que foi escravizar homens negros para o engrandecimento de uma civilização branca e ocidental é uma das nossas responsabilidades históricas.
  5. Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta
     
    Um tema importante para a nação que mais escravos transportou no atravesso Atlântico. Como descreve o artigo, fenómenos de escravatura persistiram até à libertação das colónias. Eu passei a minha infância numa delas (Angola) e recordo situações em que o arranjo colonial pisava esse risco. Esse tipo de escravatura suavizada parece-me a mim estar e levantar a cabeça nos arranjos neocoloniais dentro da União Europeia. Nascer endividado é um convite à subalternizarão hereditária. O séc XXI terá afinal a sua própria versão destes grilhões à nascença. Seria interessantíssimo revisitar a história da escravatura de uma forma abrangente - recordando a vasta gama de abusos que emergem quando se promovem arranjos governativo em que as pessoas não nascem todas iguais.
    1. jmbmarte
        
      sim, nascer endividado por Sócrates não tem piada nenhuma. Que dívida=escravatura tem lugar nos delírios da retórica 'económico-política', e marca uns pontos, mas é falso. Até porque as dívidas - pagam-se. A não ser que não sejam dívidas. A esquerda ainda hesita sobre essa divertida ontologia. Quanto aos 'escravos angolanos' - tem a certeza de que leu o seu marx bem? É que uma certa retórica empolada sustenta que proletários são escravos, servos são escravos... só escravos é que não são escravos? Quanto ao tráfico: também não me apetece (segundo a sua lógica) ser herdeiro da hereditariedade da culpa negreira ocidental e portuguesa, está a ver? E sabe porquê? Porque precisamente 'Portugal' não é o que foi, mas o que deixou de ser, por ruptura com o ancien régime.



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