terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

As mesas do poder


O PÚBLICO reconstrói o mapa das casas de restauração por onde andaram e andam, no último meio século, os políticos. E mostra as mesas em que foram tomadas decisões sobre o presente e o futuro do país.
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Não há nada ou quase nada que não se resolva em Portugal à volta de um belo cozido ou de um prato de bom bacalhau, regados a vinho, claro. É assim em família, é assim nos negócios e é assim também na política. Daí que, de actos formais ao mundo dos bastidores, a história da política portuguesa esteja associada a restaurantes que, em momentos diferentes ou ao longo de décadas, foram os preferidos por personalidades que se destacaram como bons garfos.
Em Lisboa, na Rua das Portas de Santo Antão, o Gambrinus é uma instituição com 80 anos. Por lá passou já a quase totalidade da elite política, mas também económica, cultural. Tudo. Consta mesmo que só Salazar não entrou. O Gambrinus ficou referenciado no mundo mediático dos congressos partidários, sobretudo aquando do XXXV do PSD, em 2014, que decorreu no Coliseu dos Recreios. A então presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, decidiu ir almoçar ao Gambrinus, tendo sido seguida por uma parafernália de câmaras de TV e jornalistas que acamparam à porta.
Mas o Gambrinus viveu já de tudo e serviu todos. De resto, até Américo Thomaz, regressado do exílio brasileiro, o frequentou com a família. E mesmo o inacessível Cavaco Silva, que fugia de restaurantes, lá entrou e comeu.

Cavaco na parede

O Gambrinus é um dos dois locais em Lisboa onde há memória de Cavaco ter restaurado o estômago. O outro é a Varina da Madragoa, que, pela sua proximidade da Assembleia da República, é uma espécie de refeitório de políticos. E é talvez o único restaurante com o exclusivo de ter na parede uma foto de Cavaco à mesa, numa das suas salas.
Pelo Gambrinus passou também, como não podia deixar de ser, Mário Soares, provavelmente o político mais gastrónomo de Portugal. Era o local escolhido por Soares para conversar com empresários e banqueiros. Eram vulgares os almoços com Jardim Gonçalves, também um habitué daquela casa de restauração.
Outra instituição gastronómico-política chama-se Tavares, no Chiado, conhecido por “Tavares Rico”. Era-o já em pleno salazarismo. Dizem os entendidos nesta coisa dos garfos e do poder que o Tavares não conseguiu perceber o 25 de Abril e adaptar-se à democratização. Por isso, foi perdendo visibilidade e políticos. Mesmo assim, foi muito frequentado depois de 1974. Era o restaurante de Sá Carneiro em Lisboa, um estatuto que o Tavares partilhava com o Escondidinho, no Porto. Foi lá que o líder do PSD e primeiro-ministro almoçou antes do voo fatídico de 4 Dezembro de 1980.

Cronómetro na cozinha

O Aviz, hoje na Rua Duque de Palmela, merece também o estatuto de instituição no roteiro da política à mesa. A sua época de glória foi passada no Chiado, quando o edifício do velho Hotel Aviz, na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Picoas, deu lugar ao moderno centro comercial Imaviz e ao Hotel Sheraton, nos anos 60. Na sua primeira fase, funcionou como residência de Calouste Gulbenkian, que marcou a história do Aviz pela sua exigência e obrigou mesmo a que a cozinha fosse apetrechada com um cronómetro, para que os seus ovos quentes do pequeno-almoço chegassem perfeitos à mesa.
O Aviz era tão próximo do poder que, reza a história desta casa, os ovos e as galinhas eram comprados à governanta de Salazar, Maria de Jesus Freire. Durante décadas, foi propriedade de Carlos Monjardino. Logicamente, Soares frequentava-o. Entre os convidados que lá levou conta-se a pintora Vieira da Silva, que era da família dos fundadores no velho Hotel Aviz. A pintora podia ver ali em exposição as baixelas do antigo hotel que tinha conhecido na sua infância.
Este restaurante foi palco da reunião à volta do prato em que Soares decidiu dissolver a Assembleia, em 1987, depois da moção de censura do PRD, abrindo a porta à primeira maioria absoluta de Cavaco Silva. Foi nas suas mesas também que Soares levou a cabo encontros decisivos para a organização do congresso Portugal, que Futuro?, uma tentativa de precipitar o fim do cavaquismo, não fora o então líder do PS, António Guterres, distanciar-se dessa estratégia, preferindo ganhar tempo para preparar um projecto alternativo enquanto oposição. No dia do congresso, refira-se que Cavaco comia caracóis no Alentejo.
A lógica dos proprietários de restaurantes que estavam no círculo político levou também ao sucesso do Faz Figura, em Santa Apolónia, que pertenceu a Gomes Mota, antigo dirigente do PS. Os socialistas iam lá muito, a começar por Soares. Mas também os militares de Abril. Outro lugar de elite frequentado por Soares foi o Pap'Açorda, quando funcionava no Bairro Alto. Foi um dos muitos restaurantes que tiveram a sua vida e fama associada a Soares, assim como O Galito, em Carnide, o Giuseppe Di Verdi e o Nobre, estes dois na Calçada da Ajuda, que eram hiperfrequentados pelo então Presidente da República.

Antes das selfies

Conta a história que, nessa altura, as pessoas telefonavam para o Nobre a perguntar se Soares tinha marcado mesa para esse dia para irem lá e o verem. Ainda não havia selfies, mas partilhar o restaurante com o Presidente era então uma experiência de proximidade. Mudando-se para o Campo Pequeno e chefiado por Justa Nobre, viúva do fundador, o Nobre é um restaurante que continua a ser frequentadíssimo por políticos.
Tem na sua agenda de clientes dois ex-primeiros-ministros: Pedro Passos Coelho e José Sócrates. Este último, enquanto esteve no poder e sendo um apaixonado por cozinha italiana, frequentava com assiduidade o Mezzaluna, hoje fechado, e o Il Gattopardo, a funcionar no topo do Hotel Dom Pedro, ambos na zona das Amoreiras.
Igualmente habitué do Mezzaluna era Miguel Relvas, outro político-gastrónomo que também era frequentador regular de outro famoso restaurante do poder, o Solar dos Presuntos, na Rua das Portas de Santo Antão. Nascido no ano do 25 de Abril, o Solar era, e é, frequentado por políticos de todas as cores. Logo no início do seu percurso governativo, Relvas era lá visto, assim como o então primeiro-ministro Durão Barroso. O Solar foi um dos sítios de Soares, mas também de outro socialista que é tido como bom garfo, António Costa.
Na sua fase de presidente da Câmara de Lisboa, e quando instalado no Intendente, Costa ia também com frequência ao Cova Funda. Mas fez entrar nos seus roteiros gastronómicos da política os chefs e passou a sentar-se à mesa de novas casas como as de Olivier, José Avillez, Henrique Sá Pessoa.
Restaurante muito frequentado por Costa é o Adega da Tia Matilde, em Entrecampos, em cujas paredes está instalado numa fotografia à mesa. Começou a frequentar com assiduidade a Tia Matilde com o dirigente do PCP Ruben de Carvalho, para quem este restaurante é uma espécie de cantina, assim como já foi o Polícia, nas Avenidas Novas.

O farnel de Cunhal

No Tia Matilde, Ruben de Carvalho faz parte da mobília. É praticamente o único dirigente do PCP que se assume como um bom garfo. Isto num partido que foi liderado durante décadas por Álvaro Cunhal, de quem não há memória que frequentasse restaurantes. Só comia fora em casa de amigos, mesmo assim raramente. E mesmo quando se deslocava em trabalho político pelo país, levava farnel e comia-o no carro, com o motorista e os seguranças.
O Tia Matilde é mesmo um dos mais democráticos restaurantes de Lisboa, frequentado por todas as cores políticas. De Ferreira do Amaral a Marques Mendes, de Mário Lino a João Soares, de Jorge Sampaio a Marçal Grilo, todos se sentaram às suas mesas. Passando por João Cravinho, que introduziu no mapa da gastronomia política lisboeta do final do século XX o restaurante O Cacilheiro, a funcionar junto às Docas de Alcântara, num barco. Foi este o palco dos almoços que a Cravinho liderava com personalidades da esquerda do PS, durante os últimos anos da governação de António Guterres. Um conjunto de figuras socialistas que ficou conhecido então como “o grupo do Cacilheiro” e que integrou o deputado do PS Alberto Martins.
Igualmente democrático na clientela é o Júlio dos Caracóis, em Marvila, onde já petiscou grande parte da classe política, alguns com direito a foto na parede, como, por exemplo, Vieira da Silva.
Na outra ponta da cidade, em Belém, fica outros dos palcos do poder à mesa, o Vela Latina, em Belém, que, com o rio como pano de fundo, foi já cenários de encontros de campanhas eleitorais e de assinatura de acordos políticos. Foi lá que Manuela Ferreira Leite apresentou o seu mandatário para as legislativas de 2009, Paulo Mota Pinto. Por lá passaram, e passam, figuras como Marques Mendes, Fernando Catroga, Leonor Beleza.
Se há restaurantes com abrangência de paleta política nos seus frequentadores, também há restaurantes ligados aos partidos. E neste domínio o PSD é mestre. Há mesmos casas que são um prolongamento da sede nacional da São Caetano à Lapa. Um deles foi o Conventual, na Praça das Flores. Eram frequentes os dirigentes do partido e tinha como habitué Marques Mendes. Outra instituição gastronómica ligada ao PSD é o Pabe, na Duque de Palmela.

A cave do PSD

Prolongamento da sede do PSD é mesmo O Comilão, em Campo de Ourique. Foi, e é, uma espécie de cantina das direcções do PSD, e dos líderes Fernando Nogueira, Marques Mendes, Luís Filipe Menezes e Passos Coelho. Só Cavaco e Manuela Ferreira Leite não usaram a sala privada da cave para jantares de trabalho político.
Também ligado à liderança social-democrata está o Café In, em Belém, onde foram assíduos Marques Mendes e Menezes. Já os actuais dirigentes, a começar por Passos, usam os restaurantes do chef José Avillez para levar convidados.
Um registo ainda para as salas de restauração ligadas ao poder, mas que funcionam em hotéis. Comecemos pelo restaurante do Hotel Tivoli, um dos preferidos de Sá Carneiro. Passemos pelo Hotel Ritz, cujo buffet foi uma espécie de cantina dos ministros de Cavaco. Já o Hotel Altis, muito usado pelos socialistas para reuniões políticas e jantares do partido e da bancada parlamentar, tem em Freitas do Amaral um assíduo comensal. Por fim, destaquem-se os restaurantes do Hotel Flórida e do Hotel Eduardo VII, de cujas mesas Jorge Sampaio foi habitué.
No roteiro gastronómico político da capital entra também a linha da antiga Costa do Sol, quer em Oeiras, quer em Cascais. No primeiro concelho, destaque-se o Os Arcos, em Paço de Arcos, frequentado por todos, com Soares à cabeça. E, claro, o Mónaco, em Caxias, onde após ser eleito Presidente da República, em 1985, Soares convidou Cavaco Silva para almoçar.
Um gesto de pacificação, depois de uma dura campanha eleitoral em que o PSD apoiou Freitas do Amaral. Foi uma tentativa de, à volta do prato, serenar as tensões acumuladas entre ambos desde que Cavaco ganhara o congresso da Figueira da Foz e pusera fim ao Governo do bloco central, dando início à sua década de poder como primeiro-ministro.

O escritório de Sá Carneiro

Já em Cascais não pode deixar de ser citado num roteiro de gastronomia do poder, o English Bar, hoje chamado Restaurante Cimas, no Monte Estoril. Na sua varanda agora destinada a fumadores, Sá Carneiro chegou a montar escritório para encontros políticos. Mas o English Bar foi frequentado pelo poder desde Marcello Caetano a Mário Soares.
E foi na mesma sala usada por Sá Carneiro que Pedro Santana Lopes, então primeiro-ministro, e Paulo Portas, ministro de Estado, da Defesa e dos Assuntos do Mar, almoçaram para ficarem registados pela comunicação social, em 2004.
Emblemático também é a Choupana, em São João do Estoril, frequentado por inúmeros políticos, a começar pelos do topo da hierarquia de Estado, de Thomaz a Soares. Assim como, em Cascais, O Pescador, por cujas mesas passaram gerações da política portuguesa.
Quem não pode ficar de fora de um roteiro dos restaurantes do poder é Marcelo Rebelo de Sousa, hoje Presidente da República, que é conhecido pela sua frugalidade, que o leva a alimentar-se muitíssimas vezes de sanduíches de queijo e de bolachas Maria.
Logo após o 25 de Abril, podia ser visto a almoçar ao fim-de-semana com os seus companheiros de direcção do PSD, Magalhães Mota e Sousa Franco, no Apeadeiro, perto da casa onde ainda vive.
Senhor de hábitos sólidos, Marcelo tem sido também cliente ao longo de décadas do Restaurante Visconde da Luz, no jardim do mesmo nome, no centro de Cascais. Esta casa é tão da sua eleição que, ao longo dos anos, tem tido sempre à sua espera uma mesa ao canto da sala.

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