Galo amanheceu em Lourenço Marques: *
The Cock Crowed in Lourenço Marques: The 7th September and the Other Side of Decolonization in Mozambique
Le Coq a chanté à Lourenço Marques: le 7 Septembre et l’envers de la décolonisation du Mozambique
Benedito Machava
p. 53-84
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Abstracts
This article describes and analyses
the emergence of an African resistance group during the settler uprising
of 7th September 1974 in Lourenço Marques. It examines the trajectory
of the African urban elites that led the resistance (the so-called
Galo, or ‘cock’, group) and the development of a markedly moderate
political imagination, due to the specific circumstances of the urban
area in which they had always operated. They played a determining role
in protecting African populations against the terrorism of the
insurgents and in the recovery of the Mozambique Radio Club, thereby
preventing the escalation of violence in Lourenço Marques.
Index terms
Palavras-chave :
descolonização, elites africanas, imaginário político, insurreição, Moçambique, violênciaKeywords :
Africans elites, decolonization, political imaginary, insurrection, Mozambique, political violenceMots-clés :
décolonisation, élites africaines, imaginaire politique, insurrection, Mozambique, violenceOutline
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Artigo recebido a 11.09.2014
Aprovado para publicação a 13.02.2015
Aprovado para publicação a 13.02.2015
Full text
Introdução
- * Este texto resultou parcialmente da participação do autor num projecto de pesquisa financiado pela (...)
1No
dia 7 de Setembro de 1974 o novo Governo português saído do golpe de 25
de Abril reconheceu oficialmente a FRELIMO como única e legítima
representante do povo de Moçambique (Bragança, 1986). O acordo assinado
na cidade zambiana de Lusaka estabeleceu um governo de transição que
devia preparar as condições para a declaração da independência total a
25 de Junho de 1975. O acordo ignorou as mais de duas dezenas de
formações políticas (partidos e movimentos) que reclamavam um lugar nas
negociações sobre a independência e o futuro do país (Souto, 2011).
Enquanto a esmagadora maioria africana e a ala liberal da comunidade
europeia celebrava efusivamente os acordos de Lusaka, os colonos
conservadores consideraram‑no uma traição do Governo português
(Mesquitela, 1977: 79). Numa tentativa desesperada de deslegitimar o
acordo, os colonos conservadores enfurecidos ocuparam o Rádio Clube de
Moçambique (estação radiofónica nacional) e o aeroporto na capital
Lourenço Marques, autoproclamando‑se Movimento de Moçambique Livre
(MML). Durante os quatro dias que se seguiram à tomada do Rádio Clube,
de 7 a 10 de Setembro, Lourenço Marques foi assomada por uma onda de
violência que reclamou “largas centenas de mortos” (Cardoso, 2014: 303).
- 1 Reconheço que as categorias raciais e de classe, branco/negro, europeu/africano, elites/massas rara (...)
2Embora
muito tenha sido escrito sobre os acontecimentos de 7 de Setembro,
sabemos ainda muito pouco sobre a forma como a população africana de
Lourenço Marques reagiu à insurreição colona.1
Grande parte dos estudos que se debruçam sobre o período de transição
para a independência de Moçambique, entre memórias autobiográficas,
monografias e artigos, oferecem quatro perspectivas sobre o 7 de
Setembro. Uma é a perspectiva dos insurrectos que, em reacção aos
Acordos de Lusaka, decidiram tomar de assalto o Rádio Clube (Saavedra,
1975; Mesquitela, 1977; Passos, 1977; Bernardo, 2003). A segunda é a
perspectiva da liderança da FRELIMO que, estando ainda em Lusaka,
sentiu‑se traída perante os acontecimentos de Lourenço Marques e as suas
possíveis implicações para os termos de transferência de poderes então
assinados na capital zambiana (Couto, 2011). A terceira perspectiva é a
do Exército colonial português que, estando dividido entre a oposição e o
apoio aos insurrectos, acabou chamando para si a responsabilidade de
pôr termo à insurreição (Cardoso, 2014). Por fim, a quarta perspectiva
diz respeito ao sector colonial progressista, que desde princípios da
década de 70 vinha assumindo uma posição cada vez mais anticolonial e,
depois do 25 de Abril, passou para uma posição claramente
independentista e pró‑FRELIMO (Santos, 2006a e 2006b; Souto, 2011).
3O
objectivo deste artigo é oferecer uma quinta dimensão, a dos
protagonistas africanos de Lourenço Marques durante os tumultos de 7 de
Setembro. O artigo examina e descreve a emergência de um grupo de
contra‑insurreição liderado por elites africanas urbanas de Lourenço
Marques, sedeado no bairro suburbano da Mafalala, que desempenhou um
papel importante na supressão da insurreição colona entre 7 e 10 de
Setembro de 1974. Galo, galo amanheceu surgiu como uma senha
que devia ser usada pelos membros da contra‑insurreição, cuja sede
encontrava‑se na casa de Nuno e Teresa Caliano, na Mafalala. Um exame
das dinâmicas sociopolíticas que levaram ao surgimento do Galo, galo amanheceu
(daqui em diante Galo) permite reler os vários alinhamentos que
dominaram a cena política em Moçambique no período conturbado da
transição para a independência.
4Alguns
membros do grupo Galo eram militantes clandestinos da FRELIMO desde a
criação do movimento nacionalista em 1962. Outros eram soldados no
Exército colonial português, alguns na reserva e outros ainda em
serviço. Mas a grande maioria parece ter aderido a partir das várias
células de esclarecimento e mobilização postas a funcionar pelos grupos
pró‑FRELIMO logo após o 25 de Abril. A posição anti‑FRELIMO do sector
colonial mais radical, integrando grupos extremistas e paramilitares,
bem como do movimento Frente Independente de Convergência Ocidental –
FICO (todos integrantes do MML), também teve um efeito na popularidade
da FRELIMO entre a população africana de Lourenço Marques e arredores.
Tudo leva a crer que a euforia da liberdade, a esperança do fim do
regime colonial, a confrontação aberta entre os grupos contra e
pró‑FRELIMO tenham reavivado a memória das humilhações coloniais entre a
população africana de Lourenço Marques. É neste quadro que se pode
situar a grande onda de violência que os africanos levaram a cabo entre 7
e 10 de Setembro, e mais tarde a 21 de Outubro, em resposta à ainda
mais brutal actuação dos grupos coloniais extremistas paramilitares. Mas
a violência do 7 de Setembro foi, em geral, um efeito “natural” do fim
de um regime colonial que sempre assentou na violência. Como sublinhou
Frantz Fanon, a descolonização é sempre um fenómeno violento (2004: 35).
5Com a
crescente popularidade da FRELIMO, especialmente na cidade capital, a
actuação dos colonos conservadores passou do radicalismo político ao
terrorismo urbano e inconsequente, provocando a ira da população
africana. Esta, por sua vez, respondeu com o mesmo nível de violência.
Munidos de catanas, machetes e paus, as populações suburbanas procuraram
marchar em direcção à cidade ‘branca’, deixando uma névoa de destruição
e morte por onde passavam. Porém, o nível de violência teria sido muito
maior se as populações em fúria tivessem chegado ao centro da cidade.
Milhares de colonos se haviam aglomerado nas ruas, sobretudo em frente
ao Rádio Clube. O encontro entre as populações e os colonos (munidos de
armas convencionais) teria resultado num verdadeiro mar de sangue. Foi a
retomada da Rádio e o silenciamento dos locutores insurrectos que
preveniu tal catástrofe.
6No
entanto, a forma como os militantes clandestinos da FRELIMO se
organizaram para retomar a rádio a partir da Mafalala e a rede de
contactos que se estendia a vários bairros do chamado “caniço” ainda não
foram objecto de análise. Tomando como ponto de partida a resistência
organizada a partir da Mafalala, este artigo explora o imaginário
político que animou as elites africanas da cidade capital e as impeliu a
formar um movimento de contra‑insurreição. Defendo que a militância
clandestina a favor da FRELIMO em Lourenço Marques não significa que
tivesse havido uma comunhão no imaginário político entre os
revolucionários da Frente de Libertação e as elites africanas da
capital. Nas condições especificamente distintas do meio urbano da
capital colonial moçambicana floresceu entre estas elites um imaginário
político marcado por um nacionalismo moderado. Embora muitos militantes
clandestinos da FRELIMO em Lourenço Marques vissem o seu trabalho
político como parte da luta de libertação encabeçada pela Frente de
Libertação, quase todos desconheciam os alicerces ideológicos que se
vinham consolidando na Frente, que desde 1969‑70 passara de um movimento
puramente nacionalista para uma verdadeira frente revolucionária de
orientação marxista (Brito, 1991: 138‑153). Nos últimos anos da guerra, a
FRELIMO passou a assumir posições cada vez mais exclusivistas e
vanguardistas, que haviam de se confirmar e consolidar a partir dos
primeiros anos da independência (Darch e Hedges, 1998; Machava, 2011).
Parte da tensão que veio a existir entre a FRELIMO e algumas elites
africanas de Lourenço Marques logo após a tomada de posse do governo de
transição deveu‑se ao descompasso ideológico que a distância e muitas
outras barreiras criaram entre os que lutavam de armas no norte do país e
os que mobilizavam militantes e fundos de forma clandestina no Sul. A
heterogénea composição do grupo Galo da Mafalala é um claro indicador de
que, por inerência das circunstâncias, desenvolveram‑se entre as elites
africanas de Lourenço Marques formas de ver e pensar o futuro de
Moçambique distintas da FRELIMO.
- 2 Estas entrevistas foram feitas no âmbito do projecto “Estilhaços do Império”, do Centro de Estudos (...)
- 3 Agradeço a gentileza do Sr. Le Bon que me permitiu usar os depoimentos, antes mesmo da publicação d (...)
7Este
artigo combina a leitura de fontes arquivísticas, impressas (sobretudo
jornais), biografias e uma série de entrevistas e depoimentos de antigos
militantes clandestinos e alguns protagonistas da Operação Galo. Em
2011 entrevistei, juntamente com Maria Paula Meneses, alguns antigos
soldados africanos ao serviço do Exército colonial em Moçambique e
militantes clandestinos da FRELIMO.2
Em Agosto de 2014 Aurélio Le Bon, um dos líderes do grupo Galo,
convidou‑me a ajudá‑lo na organização do livro sobre a Operação Galo.
Isto me permitiu acesso a uma série de depoimentos de antigos militantes
do Galo, por si recolhidos nas instalações da Rádio Moçambique.3
Luta clandestina e o imaginário político da elite africana de Lourenço Marques
8O
nível de desenvolvimento de Lourenço Marques em relação ao resto do país
possibilitou a existência de uma pequena elite africana urbana. A
bifurcada cidade capital era dividida entre o moderno e ordenado cimento
(ou xilunguine), exclusivamente reservado à população
europeia, e o “caniço”, labiríntico, sem saneamento, e de construções
precárias onde se apinhava a maioria africana como reserva de
mão‑de‑obra barata para o cimento (Penvenne, 1995). Entre 1960 e 1970 o
número de habitantes nos subúrbios de Lourenço Marques passou de cerca
de 123 000 para 360 000 (Sopa, 2013: 36). Era aqui que morava a pequena
elite africana. De facto, o que os distinguia da maioria era um certo
nível escolar e uma formação profissional que lhes garantia posições
subalternas nos serviços da administração colonial, como professores nas
escolas indígenas, intérpretes, enfermeiros, escriturários,
guarda‑livros, entre outros (Honwana, 2010). Uma parte deles havia
adquirido o estatuto de assimilado como uma estratégia para escapar dos
impedimentos de promoção social a que estava voltada a maioria da
população considerada indígena, sobretudo o acesso à educação (Hedges e
Rocha, 1999: 108‑109). Foi entre esta pequena elite africana
(assimilados e não assimilados, negros e mestiços), que emergiu e
cristalizou‑se o sentimento anticolonial e nacionalista entre finais da
década 50 e princípios da década 60. E seria desta elite que sairia
grande parte dos jovens nacionalistas que se juntaram à FRELIMO em
Dar‑es‑Salaam em sucessivas vagas de fugas clandestinas a partir de
1962‑63 (Tembe e Gaspar, 2014: 57).
- 4 Sobre o impacto dessa visita de Eduardo Mondlane, ver Manghezi (2001: 187-210).
9Embora Lourenço Marques tenha sido palco de intensa actividade e contestação política desde a geração de O Brado Africano dos
Albasini até aos jovens do Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos
de Moçambique, a visita de Eduardo Mondlane em 1961 galvanizou grande
parte da elite africana, sobretudo a juventude estudantil da cintura
Lourenço Marques‑Gaza.4
Pode argumentar‑se que grande parte da actividade clandestina de cariz
marcadamente nacionalista começou nessa altura, e intensificou‑se depois
da fundação da FRELIMO um ano depois. No bairro da Mafalala e
arredores, Amaral Matos e Nuno Caliano da Silva foram alguns dos
primeiros militantes clandestinos da FRELIMO. Quando a FRELIMO decidiu
criar a IV Região Militar, a fim de lançar as bases para o
desencadeamento da luta armada no sul de Moçambique, Amaral Matos e Nuno
Caliano, juntamente com José Craveirinha, Malangatana Valente, Luís
Bernardo Honwana, Abner Sansão Muthemba, entre outros, desempenharam um
importante trabalho de mobilização e propaganda a fim de angariar
fundos, conquistar simpatizantes e potenciais militantes. Matias Mboa
refere nas suas memórias que quando foi enviado a Lourenço Marques em
1964 como chefe do Comando Operacional da IV Região Militar, em
coordenação com Joel Maduna Xinana, comissário político da IV Região, o
seu trabalho consistia em consciencialização política, distribuição de
panfletos sobre a FRELIMO e formação de núcleos políticos (Mboa, 2009:
22‑24).
10No
entanto, num depoimento de 1991, Amaral Matos reconhecia que os chefes
das células clandestinas na cidade não se encontravam com frequência,
podendo ter intervalos de meses entre esporádicos encontros (Matos,
1991: 130). De facto, um dos primeiros aspectos que salta à vista nos
depoimentos dos combatentes da clandestinidade é a dificuldade que havia
em manter as linhas de comunicação com Dar‑es‑Salaam. O cerco montado
pela PIDE fazia do trabalho de mobilização na capital e em toda a região
sul da colónia um verdadeiro calvário. A situação ficou ainda mais
difícil depois das massivas prisões de finais de 1964 e princípios de
1965, das quais resultou o desmantelamento da IV Região (Cruz e Silva,
1990). As prisões continuaram a verificar‑se regularmente até 1970‑72, o
que deixou uma grande fissura entre a frente nacionalista sedeada na
Tanzânia e os militantes clandestinos de Lourenço Marques (Brito, 1991:
84). Depois das prisões em Lourenço Marques e do “sequestro” dos 75
“refugiados moçambicanos” na Suazilândia, todos recambiados para as
várias cadeias da PIDE (em particular a penitenciária da Machava), houve
um grande refreamento na fuga de jovens para se juntarem à FRELIMO.
Estes golpes, que resultaram na quebra parcial dos contactos entre o sul
de Moçambique e a FRELIMO, aconteceram numa altura em que a Frente de
Libertação ainda não tinha amadurecido ideologicamente e se encontrava a
braços com a conflituante coexistência de várias tendências ideológicas
e nacionalistas, que culminaram com a grande crise interna de 1968. Os
líderes da luta clandestina em Lourenço Marques, quase na sua totalidade
presos entre 1964 e 1965, e em sucessivas vagas até 1970‑72, não
acompanharam as lutas ideológicas dentro da FRELIMO. Muito menos o
crucial processo de “radicalização do movimento a partir de 1968, da
qual nasceu o projecto de construção do socialismo em Moçambique
independente” (ibidem: 90‑91).
11Enquanto
a FRELIMO se consolidava como uma frente de orientação marxista de
cariz revolucionário, em Lourenço Marques o imaginário político dos
nacionalistas clandestinos e das elites africanas que continuavam a
ganhar consciência política foi tomando características próprias. A
distância entre Dar‑es‑Salaam e Lourenço Marques, ferozmente imposta e
guarnecida pela PIDE, era muito grande. Duas importantes arenas
condicionaram e enformaram o imaginário político das elites africanas da
capital: a cadeia da Machava e a interacção cada vez maior entre as
elites africanas e o grupo progressista de intelectuais europeus
antifascistas, designados Democratas de Moçambique.
- 5 Entrevista com Gonçalves Chachuaio, ex-preso político na Machava. Maputo, 5 de Junho de 2011.
- 6 Para uma compreensão do cativeiro como um espaço de fermentação do imaginário político entre detido (...)
12Muitos
antigos presos políticos que passaram pela penitenciária da Machava
consideram a cadeia a sua “escola nacionalista.” Do contacto com outros
presos politicamente mais maduros e militantes de primeira linha da
Frente de Libertação, muitos presos vieram a conhecer a FRELIMO e os
objectivos da sua luta. O exemplo do enfermeiro Gonçalves Chachuaio é um
caso ilustrativo. Condenado a 6 anos de prisão na penitenciária da
Machava em Dezembro de 1965, Chachuaio envolveu‑se ali com questões
políticas pela primeira vez. Partilhou a cela com vários nacionalistas
presos. Foi a partir desses contactos que Chachuaio conheceu os
estatutos e o programa da FRELIMO, viu pela primeira vez as cores da
bandeira do partido e ouviu os hinos da luta.5
De facto, a penitenciária, enquanto espaço de violência por excelência,
era também uma importante arena de consciencialização e actividade
política.6
Nas palavras de um outro preso político, Amós Mahanjane, foi grande a
actividade de consciencialização política entre os prisioneiros:
“aqueles que entraram e que não tinham nada a ver com política,
incluindo religiosos, se tornaram políticos” (Mussanhane, 2012: 137).
- 7 Entrevista com ex-presos políticos Francisco Muchave, Ananias Tivane e Zefanias Mangue, Xai-Xai, a (...)
- 8 Entrevista com Pedro Bule, por Clinarete Munguambe, Maputo, a 3 Maio de 2013. Entrevista com Auréli (...)
13Durante
o período de cárcere, com raras excepções, os prisioneiros perderam o
rasto da evolução da luta armada e as transformações por que passou a
Frente de Libertação. Todos os antigos presos políticos da Machava que
entrevistei foram unânimes em afirmar que durante a sua prisão não
tinham meios de saber notícias sobre a evolução da FRELIMO.7
Os presos que foram soltos antes de 1974 não voltaram a desempenhar
qualquer actividade política até ao golpe de 25 de Abril. Como afirmou
Rui Nogar, solto em 1968, “outra actividade não tivemos, até porque não
havia orientações muito claras em relação à luta. A Frelimo que lutava
estava ainda muito distante” (Chabal, 1994: 177). Abner Sansão Muthemba,
solto em 1969, reforça: “durante os três anos passados sob vigilância
fora da cadeia não podíamos sair da cidade sem autorização da polícia
nem sequer chegar, por exemplo, ao Bairro da Machava. Todas as
quartas‑feiras eu devia apresentar‑me à PIDE” (Mussanhane, 2012: 204).
Muitos eram evitados pelos amigos e vizinhos, por medo de serem
implicados e importunados pela PIDE, como conta Albino Magaia: “depois
de sairmos da cadeia, houve pais que aconselharam os filhos a não
contactar comigo porque era perigoso. Os vizinhos também afastaram‑se,
tinham medo de mim” (ibidem: 97). Os que conseguiram singrar
nos empregos ou nos estudos (alguns com a ajuda da própria PIDE)
descobriram que embora a situação fosse difícil, começavam a abrir‑se
algumas brechas no sistema colonial que davam algumas possibilidades
materiais e sociais nunca antes sonhadas para os africanos.8 Quase ninguém que havia sido preso e solto depois de 1965 conseguiu fugir para se juntar à FRELIMO.
- 9 Para uma comparação do programa e estatutos da FRELIMO, ver Reis e Muiane (1975: 47-65), que contém (...)
14Muitos
dos primeiros panfletos que continham o programa e estatutos da FRELIMO
com os quais os combatentes da clandestinidade em Lourenço Marques
trabalhavam eram da época do I Congresso. Uma comparação com o programa e
estatutos revistos depois do II Congresso de 1968 revela uma profunda
transformação da FRELIMO em resultado do avanço e desafios da luta
armada.9
Como acima referi, a liderança da FRELIMO que saiu reforçada depois do
II Congresso tinha uma inclinação marcadamente marxista e
revolucionária. Era revolucionária no sentido em que já não via a luta
como um simples passo para a liquidação do colonialismo, mas como um
processo para a transformação radical da estrutura socioeconómica de
Moçambique. A partir de 1970, toda a análise política da FRELIMO sobre a
situação de Moçambique assentava numa ideologia marxista, em que todos
os aspectos sociais, políticos e económicos eram analisados em termos de
contradição de classes e em vocabulário revolucionário (Brito, 1991:
148). Nem na prisão, nem nos limitados espaços de actuação política que
ainda restavam em Lourenço Marques, a maturação política dos africanos
ganhou tendências revolucionárias. Para muitos, o grande objectivo da
luta continuava a ser a liquidação do regime colonial e o ascender à
independência. A cada vez maior interacção entre a ala progressista da
comunidade europeia e as elites africanas da capital reforçou e enformou
esse imaginário político moderado.
15A
interacção entre os Democratas de Moçambique e as elites africanas de
Lourenço Marques intensificou‑se durante o período da repressão da PIDE.
Um dos momentos mais importantes dessa aliança foi o julgamento em
Março de 1966 dos militantes da FRELIMO que haviam sido presos entre
1964 e 1965, no âmbito da frustrada tentativa de montar a IV Região.
Apesar de a maioria ter sido condenada pelo tribunal militar, a actuação
dos advogados que se bateram pela sua defesa constituiu um ato notável
de desafio à ordem colonial (Souto, 2007: 372). Os Democratas viam na
defesa daqueles militantes um ato de afirmação da sua posição política
antifascista. Para as elites africanas, a aliança com os europeus
liberais era um importante escape às limitações impostas pela PIDE e
pela subjugação racial própria da sociedade colonial, não apenas para
actividades políticas mas também para a criatividade cultural e
artística.
16Nos
momentos conturbados, mas também excitantes da actividade política
entre finais dos anos 50 e princípios de 60, houve grandes amizades
entre algumas elites africanas e europeus progressistas, com profundas
implicações na formação do pensamento político em ambas as partes. Por
exemplo, pessoas como Luís Bernardo Honwana, Albino Magaia e Malangatana
Valente mantiveram fortes laços de amizade com progressistas como
Pancho Guedes, Bertina Lopes, Virgílio de Lemos, Rui Nogar, entre
outros. Este constituía, em grande parte, o mesmo ciclo de amizades que
se estendia até ao bairro da Mafalala onde residiam Amaral Matos e Nuno
Caliano (líderes do grupo Galo).
17É
preciso enfatizar que, do ponto de vista formal, não houve uma aliança
política entre os Democratas enquanto grupo de oposição e os
nacionalistas da clandestinidade enquanto militantes da FRELIMO. Como
alerta Amélia Souto, a repressão da PIDE e a sua infiltração nas células
clandestinas tinha “tornado extremamente difícil qualquer contacto
político directo com eles por membros fora do grupo” (ibidem:
367). Rui Baltazar, membro dos Democratas, foi um dos únicos que
conseguiu participar no primeiro encontro com os elementos da FRELIMO
aquando da sua tentativa de penetração no Sul, devido à grande amizade
com alguns elementos nacionalistas, nomeadamente Rui Nogar (ibidem:
368). A aliança entre europeus progressistas e as elites africanas
deu‑se mais ao nível das relações e contactos pessoais, bem como na
percepção mútua de que todos estavam no mesmo lado da trincheira contra o
regime colonial‑fascista. Foi esta aliança que definiu a natureza do
imaginário político que inspirou e sustentou o grupo Galo em Setembro de
1974. A liderança do Galo vislumbrava um Moçambique independente no
qual africanos e europeus haviam de juntar forças na construção de um
país novo. E essa independência não significava um corte radical com
Portugal, mas a reconfiguração das relações entre o novo país e o antigo
poder colonial. Para melhor entendermos este posicionamento, é
importante examinar detalhadamente o imaginário político dos Democratas e
a forma como ele influenciou o pensamento político das elites africanas
logo depois do 25 de Abril, altura em que todos os grupos começaram a
expor publicamente os seus ideais políticos.
O 25 de Abril e a efervescência política em Lourenço Marques
- 10 “Os leitores e o golpe de Estado: duas perguntas”, Notícias, 28 de Abril de 1974.
18Muitos
colonos celebraram efusivamente a queda de Marcelo Caetano, pois o fim
do fascismo significava o fim de meio século de ditadura em que boa
parte das liberdades civis se encontravam suprimidas. Mas era uma
celebração ambígua, pois a grande maioria dos colonos devia a sua
posição social e os privilégios da sua condição de cidadãos de primeira
ao regime colonial.10
Mas o que mais aterrorizava a maioria dos colonos, em particular os
conservadores, era a ideia de um “preto” vir a governar Moçambique. A
ideia de que a FRELIMO era um bando de terroristas estava enraizada na
consciência de muitos, resultado de uma sistemática propaganda colonial e
do silêncio sobre a natureza da guerra. O suposto “comunismo” dos
“turras” era outra causa de grande assombração (Rita‑Ferreira, 1988;
Thomaz e Nascimento, 2012).
- 11 “O discurso de Spínola não chegou ao Xipamanine”, Tribuna, 29 de Julho de 1974.
- 12 “Manifesto do GUMO”, Notícias, 29 de Abril de 1974.
19Para a maioria africana o significado do golpe era pouco claro.11
Foi preciso uma intensa actividade de mobilização e esclarecimento
levada a cabo por simpatizantes da FRELIMO para a maioria africana
compreender a real dimensão da situação política da colónia (Mboa, 2009:
52). Para as elites africanas o golpe era uma clara oportunidade para
se lançarem na luta pela autonomia de Moçambique. Foram justamente as
elites africanas que criaram os primeiros movimentos políticos e
assumiram publicamente um posicionamento em relação ao futuro do país,
como o caso do Grupo Unido de Moçambique (GUMO), liderado por Máximo
Dias e Joana Simeão.12
Da leitura dos jornais da época ressalta a emergência de múltiplos
grupos e movimentos políticos pelo país, a partir de Maio de 1974,
especialmente em Lourenço Marques, na Beira e em Nampula.
20No
fervor das exaltações políticas do pós‑25 de Abril que passaram a
dominar Lourenço Marques e Beira, e à medida que iam decorrendo as
conversações entre o Governo português e a FRELIMO, a aliança entre os
Democratas e os vários nacionalistas, militantes e simpatizantes da
FRELIMO tornou‑se formal e aberta. Milagre Mazuze, ex‑preso político,
lembra que com a abertura política pós‑25 de Abril, “reuníamos em casa
dos militantes com os democratas de Moçambique; eles diziam que
democrata é Frelimo” (Mussanhane, 2012: 615). Estrategicamente, o
Movimento dos Democratas de Moçambique (MDM) assumiu o controlo de quase
toda a imprensa, incluindo o Rádio Clube.
21A
16 de Maio, uma delegação do grupo dos ex‑presos políticos, líderes da
luta clandestina em Lourenço Marques, fez uma importante viagem a
Dar‑es‑Salaam para se encontrar com a direcção da FRELIMO. Segundo
Fernando Couto, a viagem teria sido feita a pedido do general Costa
Gomes que queria que aquele grupo convencesse a FRELIMO a aceitar a paz e
o cessar‑fogo imediato. A delegação incluía Rui Nogar, José
Craveirinha, Matias Mboa, Josefate Machel, Malangatana Valente e Rogério
Djawana. Porém, a viagem não correu sem dissabores. Em Dar‑es‑Salaam
A delegação foi recebida por Joaquim Chissano no aeroporto de Dar‑es‑Salam, sendo “efusivamente abraçados”. Já na sede da FRELIMO a recepção será bem mais fria. Eram vistos como mensageiros do novo poder em Portugal, vindos da “zona ocupada” e portadores de mensagens e intenções pouco claras. Logo à chegada, na capital tanzaniana, um representante da FRELIMO revelou à imprensa que a sua organização estava preparada para “ouvir o que os antigos prisioneiros políticos tinham para dizer, mas que eles não se poderiam considerar como representantes da FRELIMO. (Couto, 2011: 311)
22As
declarações do representante da FRELIMO em Dar‑es‑Salaam são uma clara
indicação de que a Frente de Libertação que os ex‑presos políticos
haviam conhecido em princípios dos anos 60 já não era a mesma. As
intensas batalhas internas pelo poder, as dissidências e os desafios da
luta armada haviam endurecido a liderança da Frente. Mas mais importante
ainda, o facto de a Frente não ter o controlo directo dos espaços
urbanos, onde a luta armada nunca havia chegado, reforçou ainda mais a
desconfiança em relação a todos os movimentos políticos oriundos das
cidades (Borges Coelho, 1998). Na verdade, a FRELIMO assumiu até
recentemente uma posição exclusivista de que apenas os que lutaram de
armas contra o regime colonial são os verdadeiros nacionalistas e
legítimos representantes do povo de Moçambique (Souto, 2014: 282).
Matias Mboa sublinha a ansiedade e a incerteza que assomou os ex‑presos
políticos na véspera do encontro com a FRELIMO em Dar‑es‑Salaam. E
lamenta o fim da amizade que um dia o ligou a Samora Machel, com quem
fugira em 1963 para a Tanzânia (Mboa, 2009: 54‑57).
23A 5
de Junho, um segundo grupo seguiu para Dar‑es‑Salaam. O grupo regressou
a Moçambique com instruções sobre a necessidade de realizar campanhas
de esclarecimento às populações e divulgar o programa da FRELIMO. Matias
Mboa propôs e dirigiu a criação da primeira sede nacional do Partido
FRELIMO, que foi construída no antigo bar Vasco da Gama, na Avenida
Angola (ibidem: 58). Foi através destes grupos de
esclarecimento que jovens como Aurélio Le Bon, Pedro Bule, Betinho
Chissano, Joel Libombo, Chico Seita, Miguel da Mata, Quina Lima, entre
outros, passaram a conhecer a FRELIMO e engajaram‑se na sua
popularização. Apesar de terem trajectórias diferentes – uns estudantes
do liceu, outros militares no Exército colonial – todos vieram a assumir
um importante papel na formação do Galo.
- 13 “Carta aberta aos Moçambicanos”, Tempo, 12 de Maio de 1974.
- 14 Sobre a experimentação do projecto socialista nas zonas libertadas levada a cabo pela FRELIMO, uma (...)
24No
entanto, um exame dos discursos dos Democratas e das elites africanas
permite captar um pensamento político moderado. Um pensamento em que se
imaginava um Moçambique independente que mantivesse fortes ligações
económicas, culturais, e até políticas com Portugal. Imaginava‑se a
FRELIMO no poder, mas em estreita cooperação com os elementos mais
progressistas da comunidade europeia. A mais clara visão política de um
Moçambique independente formulada pelos Democratas veio da pena de
António de Almeida Santos, proeminente líder do grupo dos Democratas de
Moçambique. Numa longa “Carta aberta aos Moçambicanos”, Almeida Santos
dirigiu‑se aos seus compatriotas “de origem europeia” com o intuito de
esclarecê‑los sobre a situação política de Moçambique e indicar as
possíveis alternativas que a comunidade branca tinha: “coexistir na base
do estatuto de convivência multirracial que tiver sido negociado,
partir, ou deixar‑se cair na tentação de um movimento de resistência
tipo rodesiano.13”
A primeira alternativa era a sua favorita, sendo que as duas últimas
eram, na sua opinião, uma “rematada loucura.” Desacreditando as várias
formações políticas que emergiam em Moçambique, às quais considerava
“embriões de partidos que carecem de sentido”, Almeida Santos urgia os
seus compatriotas a aceitarem um governo de maioria dirigido pela
FRELIMO. Para ele era totalmente inútil fazer um plano de
autodeterminação que não visasse a transferência de poderes à FRELIMO.
Mas seria um poder partilhado. Lê‑se nas entrelinhas da carta que
haveria espaço para uma participação da comunidade branca (certamente os
liberais) na constituição desse novo governo, e a preservação dos
“equilíbrios” culturais, económicos, e governativos do regime anterior.
Desconhecedor do projecto de transformação social que a FRELIMO já vinha
experimentando nas chamadas “zonas libertadas” e que seria uma das
bases da sua política exclusivista e vanguardista,14
Almeida Santos dizia, com convicção, que “não me parece que o primeiro
governo negro possa vir a estar interessado em desmantelar os
equilíbrios étnicos, económicos e directivos da época precedente. Se o
fizesse, ele, que tivera o consenso do mundo, num ápice colheria o seu
repúdio (ibidem).
25Esta
mensagem, que resfriava os anseios da comunidade colona em relação à
natureza do governo independente de Moçambique, era também um alerta à
liderança da FRELIMO sobre as consequências que haviam de advir da
possibilidade de um governo exclusivista que não integrasse outras
forças políticas e económicas. Alguns Democratas partilhavam a esperança
de uma solução federativa, que melhor possibilitasse a “preservação dos
equilíbrios da época precedente” (ibidem), ou como diziam os
conservadores “um Moçambique que se mantenha fiel às raízes portuguesas,
na alma e na cultura” (Mesquitela, 1977: 116).
26Na
altura em que escreveu a carta Almeida Santos ainda não estava a cargo
da comissão de descolonização, que poucos meses depois havia de assinar
os termos de transferência de poder à FRELIMO. Em Lusaka não houve
sequer espaço para colocar a possibilidade de federação. Nem sequer o
longo período de transição, o qual se esperava que fosse de 3 a 5 anos.
Na carta, Almeida Santos dizia que “só por impensável inabilidade se
cogitaria de uma passagem do testemunho político dissociada da
necessária gradação e adaptação aos novos equilíbrios sucedâneos.” E
concluía que “tudo se há‑de fazer com a urgência possível, mas também
com a demora necessária” (ibidem). Ao fim, fez‑se tudo com a
necessária urgência e com a possível rapidez, pois a transição durou
apenas 9 meses. Victor Crespo, o almirante que assumiu o cargo de
alto‑comissário no governo de transição, também confessou com amargura
anos mais tarde que a transição durou muito pouco tempo (Crespo, 1984:
329).
27Embora
Almeida Santos não representasse a diversidade de posições dentro do
MDM, a sua palavra era carregada de muito peso dado o grande capital
social que ele tinha entre europeus progressistas e elites africanas.
Pedro Bule, militante do Galo no bairro do Infulene, lembra a grande
influência que Almeida Santos tinha entre os jovens da sua geração nos
subúrbios da capital:
- 15 Pedro Bule, em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
Almeida Santos teve um papel preponderante na própria pacificação, um papel fundamental. [...] Nós tínhamos um conceito de FRELIMO, que o Almeida Santos incutiu‑nos, que afinal de contas muitos brancos também estavam do nosso lado. [...] A gente via a postura dos Democratas, sobretudo quando se agudizou o movimento da formação dos partidos políticos reaccionários.15
- 16 Sobre a trajectória política de Domingos Arouca, ver Peixoto e Meneses (2013).
28A
carta de Almeida Santos teve ressonância entre as elites africanas que
também partilhavam a visão de um Moçambique plurirracial que mantivesse
os “equilíbrios da época precedente”, ao mesmo tempo que abria mais as
oportunidades sociais para a maioria empobrecida. Domingos Arouca, o
primeiro africano de Moçambique a graduar‑se em Direito, ex‑preso
político e um dos mais respeitados intelectuais africanos entre a elite
africana de Lourenço Marques, também publicou uma série de artigos nos
jornais para acalmar os ânimos políticos que agitavam o país.16
A mensagem dos seus artigos, entre apelos à sociedade em geral assim
como para a liderança da FRELIMO, não fugia muito da de Almeida Santos.
Defendia a entrega do poder à FRELIMO sem delongas, porque esta
representava a vontade do povo. Mas também apelava à FRELIMO para que
fosse paciente para com aqueles que ainda não estavam seguros com a
ideia de um governo de maioria africana. No dia 7 de Setembro, antes do
início dos tumultos, Domingos Arouca afirmava:
- 17 “Combatamos demagogias falsas e oportunistas”, Diário de Notícias, 7 de Setembro de 1974.
Agora é a própria Frelimo que entre nós tem a palavra, a ela cabe aconselhar e dirigir. Neste momento em que nos sentimos todos irmãos é altura exacta de fazermos promessas pelo futuro. Evitar a violência a todo o transe, tentar compreender as ideias dos que se encontram ainda desajustados e não alcançaram ainda totalmente o que significa viver num país em que muitas ordens e valores se modificaram por completo e tendem ainda a modificar‑se mais. Não podemos impor a eles, de rajada, os nossos credos políticos, porque isso seria negar o significado mais intrínseco do conceito de democracia. Mas podemos tentar o diálogo franco e aberto em que todas as dúvidas e desconfianças encontrem respostas honestas e capazes.17
29Domingos
Arouca queria certamente instar os colonos, sobretudo os conservadores
que já abandonavam o país, a confiar na FRELIMO. Mas ao mesmo tempo
queria assegurar que a FRELIMO em que ele acreditava havia de conduzir o
país pelos caminhos projectados pelos ideais de convivência
multirracial, inclusão participativa, tolerância, e progresso para
todos. Afinal eram estes os ideais que tanto popularizaram a FRELIMO
entre as elites africanas e europeus progressistas. Os primeiros
nacionalistas urbanos que cedo se aperceberam da radicalização da
FRELIMO e da sua tendência marxista tiveram que conter a sua decepção.
No regresso da sua última visita a Dar‑es‑Salaam, o líder do trabalho de
esclarecimento político e criação de células da FRELIMO na região sul
do país, Matias Mboa, teve uma delicada conversa com o seu colega Ângelo
Chichava sobre a escolha do socialismo como modelo político e
económico. Estava assustado com o socialismo, que para si era “o mesmo
que dizer comunismo” (Mboa, 2009: 63).
30Os
temores de Matias Mboa viriam a confirmar‑se logo depois da proclamação
da independência. Mas naquele momento, nas vésperas do Acordo de Lusaka,
ainda não se vislumbrava a colisão entre a visão moderada das elites
africanas urbanas e dos Democratas com o exclusivismo da Frente de
Libertação. Trabalhando ombro a ombro, as elites africanas e os europeus
progressistas criaram as condições para a implantação da FRELIMO no sul
de Moçambique. E travaram uma intensa batalha contra o reduto colonial
extremista, do qual foram vítimas de perseguição e atentados de morte.
- 18 “Os Democratas de Moçambique denunciam atentado contra Dr. Pereira Leite”, Notícias, 22 de Junho de (...)
- 19 “Na Praça de Touros: Grandiosa manifestação de apoio à FRELIMO”, Tribuna, 5 de Agosto de 1974.
31A 23 de Junho, o advogado Pereira Leite, do MDM, saiu ileso num atentado bombista ao seu carro.18 Cinco dias depois, o Self
(a cantina dos estudantes universitários) foi vandalizado pelos
extremistas da Associação Moçambicana Armada, que tentava destruir a
bandeira da FRELIMO ali hasteada). Os jornais Tribuna, Notícias e Tempo também
foram vítimas de uma série de ataques bombistas. O terrorismo urbano
dos extremistas paramilitares, sobretudo a perseguição dos membros do
MDM, da LEMA e dos líderes do trabalho de esclarecimento, recrudesceu
depois da realização, a 4 de Agosto, de um comício em apoio à FRELIMO na
Praça de Touros.19
E foi neste clima tenso que se iniciou a última etapa das negociações
entre o Governo português e a FRELIMO, em inícios de Setembro em Lusaka.
Procurando apoiar a FRELIMO, um segundo comício foi organizado no
Estádio Salazar (hoje Estádio da Machava).
- 20 Pedro Bule, em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
- 21 Albino, por exemplo, fugiu para Suazilândia (Mussanhane, 2012: 99).
- 22 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
- 23 Matias Mboa em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
32Ao
saberem do grande comício, os Dragões da Morte dirigiram‑se ao estádio.
Certamente pretendiam abrir fogo contra a multidão, como viriam a fazer
nos subúrbios horas depois. Os manifestantes dispersaram‑se ao saber
que os “reaccionários” estavam a caminho.20
Alguns dos principais líderes do MDM e da LEMA não mais puderam voltar
para as suas casas no cimento. Muitos refugiaram‑se no “caniço”, em
particular na Mafalala. António Sumbana, Ângelo Chichava, Albino Magaia,
entre outros ex‑presos políticos que mantinham uma ligação directa com a
FRELIMO, também foram ameaçados de morte e tiveram que fugir.21 A casa de Sumbana, que servia de sede aos militantes da FRELIMO, foi vandalizada e muito material de propaganda destruído.22 Matias Mboa encontrava‑se já em Lusaka.23
Os militantes que mantinham directa comunicação com a FRELIMO e
recebiam orientações a partir de Dar‑es‑Salaam haviam abandonado
Lourenço Marques nas vésperas do 7 de Setembro. Embora Amaral Matos e
Nuno Caliano fizessem parte da liderança dos militantes da FRELIMO, não
comunicavam directamente com a FRELIMO. Mas por terem permanecido na
cidade em ebulição, acabaram assumindo a responsabilidade de acolher os
europeus que fugiam dos terroristas e dirigiram as estratégias de defesa
dos subúrbios contra as investidas chacinadoras dos extremistas
paramilitares. Foi nesse contexto que emergiu o grupo Galo da Mafalala.
A Base Galo da Mafalala
- 24 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
33Revoltada
com a tomada do Rádio Clube, que cheirava a golpe contra a FRELIMO,
Gabriela Valério foi ter com o namorado, Aurélio Le Bon, nas primeiras
horas do dia 8, trazendo duas facas. Entregou uma ao Le Bon, instando‑o a
“fazer alguma coisa.” Ambos decidiram ir ter com os líderes dos grupos
de esclarecimento, Matias Mboa (na Matola) e António Sumbana (no
Xipamanine). Não os encontrando, resolveram ir a Mafalala, onde haviam
participado de algumas reuniões na casa de Nuno Caliano. Aqui
encontraram um grupo de cerca de 10 pessoas a discutir sobre os recentes
acontecimentos. Entre os presentes, Aurélio Le Bon e Teresa Caliano
recordam‑se de Amaral Matos, Orlando Machel (irmão de Samora Machel),
Alberto (Betinho) Chissano (irmão de Joaquim Chissano), Quina Lima e
Miguel da Mata. Todos lamentavam a falta de orientações da FRELIMO
perante a situação e a ausência dos principais líderes. Preocupava‑os
acima de tudo a necessidade de proteger os subúrbios dos ataques dos
colonos extremistas, bem como a necessidade de conter a possível ira da
população africana. Para Gabriela, Le Bon, na qualidade de Comando,
podia ajudar o grupo “a pensar estratégias de reacção com alguma
perspectiva militar, algo como protecção e vigilância sobretudo dos
bairros.”24
34Assim
nasceu o grupo Galo da Mafalala, que transformou a casa do casal
Caliano em Base Galo. No entanto, importa fazer uma análise dos
condicionalismos que deram ao grupo Galo a composição que ele teve.
Acima examinei o contexto da emergência do imaginário político das
elites africanas, que no grupo Galo eram representadas sobretudo por
Amaral Matos (que assumiu a liderança do grupo), por Nuno Caliano, e por
uma série de jovens estudantes (africanos e europeus) que assumiram
papéis importantes no grupo. Contudo, uma componente importante do grupo
Galo foi a participação de jovens militares do Exército português.
Foram eles que, sob coordenação de Aurélio Le Bon, ajudaram a organizar
os aspectos militares do grupo Galo.
- 25 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho 2012.
- 26 Entrevista com Pedro Bombe, ex-tropa colonial, Maputo, 4 de Maio de 2011; Entrevista com Vasco Sono (...)
35Le
Bon havia regressado a Lourenço Marques logo após o 25 de Abril, vindo
de Tete, onde havia servido como Comando no Exército colonial de 1971 a
1974. Foi na guerra que Le Bon, um mestiço de Marracuene, soube pela
primeira vez da existência da FRELIMO e do significado da sua luta.25
O seu caso é muito comum entre os milhares de africanos recrutados para
o Exército colonial. Muitos foram à guerra sem sequer saber quem era o
inimigo. No máximo sabiam que iam combater uns “turras” que estavam a destabilizar o norte da província ultramarina.26
Mas isso não os fez simples colaboradores do sistema colonial, do qual
eles eram também vítimas. Foi no Exército colonial, no campo de batalha,
que jovens como Le Bon, Pedro Bombe e Vasco Sono despertaram para a
natureza política do conflito. Foi na guerra que eles viram pela
primeira vez a bandeira e os símbolos da FRELIMO. Alguns chegaram a
furtivamente ouvir em onda‑curta a Voz da Revolução emitida pela guerrilha a partir da Tanzânia.
- 27 Secretaria-Geral da Província de Moçambique. Relatório Sucinto. Maio de 1972. AHM/FGG, cx. 2187, p. (...)
36Para
a compreensão do contexto do surgimento e a composição do Galo, há dois
elementos da contra‑insurgência portuguesa que importa explicar.Primeiro,
a contra‑insurgência portuguesa resultou numa massiva militarização da
sociedade, sobretudo através do grande recrutamento para o serviço
militar e a existência de uma significante parcela da população de
Moçambique (europeia e africana) com posse e capacidade de manejar armas
de fogo (Borges Coelho, 2002 e 2003). Embora as principais cidades no
centro‑sul de Moçambique tenham estado para além do alcance da
guerrilha, muitos citadinos, incluindo africanos, foram mobilizados a
servir na Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil (OPVDC),
uma espécie de milícia colonial. Nestas unidades paramilitares as
pessoas eram instruídas a manejar armas de fogo e a fazer operações de
caça ao homem e vigilância contra supostos terroristas.27 Nos
tumultuosos dias que se seguiram ao 25 de Abril, as cidades de
Moçambique conheciam um elevado nível de militarização, pois muitos
civis tinham em sua posse armas de fogo. A situação piorou com o
retorno, sobretudo para Lourenço Marques e Beira, das várias unidades
militares vindas dos palcos de guerra. E a posse de armamento, quer por
parte dos membros da OPVDC, quer dos soldados, não definia claramente a
sua posição política. Muitos dos que simpatizavam e apoiavam a FRELIMO
juntaram‑se ao grupo Galo, levando as próprias armas consigo. Os que
viam os Acordos de Lusaka como uma traição juntaram‑se aos insurrectos
do Rádio Clube.
- 28 Província de Moçambique. Gabinete Militar do Comando-Chefe. Acta da Reunião do Conselho de Defesa M (...)
37Segundo,
a contra‑insurgência exacerbou a segregação dos subúrbios, em
particular na capital. Os subúrbios de Lourenço Marques eram tidos pela
PIDE como sendo as maiores fontes de apoio à FRELIMO, em termos de
capital humano e financeiro. Para além do policiamento cerrado instalado nestas áreas, onde
a PIDE tinha milhares de informadores secretos e onde havia constantes
rusgas policiais, a mobilidade dos africanos na cidade de cimento
tornou‑se cada vez mais difícil. Por exemplo, em 1968 o comandante‑chefe
do Exército sugeriu a instalação de um arame farpado para separar os
subúrbios da cidade de cimento com o propósito de defender a cidade da
subversão política que crescia na chamada “cintura negra.”28
A PIDE se opôs à sugestão, pois acreditava que ela punha em risco
outras estratégias em curso naquelas áreas que visavam recuperar as
mentes e os corações dos nativos. Não obstante, a alienação do “caniço”
em relação ao impressionante desenvolvimento do cimento piorou
consideravelmente até princípios da década de 1970, ao mesmo tempo que
aumentava a consciencialização política (Souto, 2007: 282). Depois de
servir o Exército colonial, muitos africanos recrutados em Lourenço
Marques regressavam para os mesmos bairros suburbanos empobrecidos. A
diferença é que eles regressavam transformados pela experiência da
guerra. Os rumores que alguns teriam ouvido antes de rumar ao norte eram
agora realidade. Em certos casos, alguns soldados regressavam para os
mesmos bairros onde figuras proeminentes da FRELIMO haviam vivido e
ainda tinham lá família, como é o caso do bairro da Mafalala onde os
parentes de Samora Machel, de Joaquim Chissano e de Armando Guebuza viviam. Isto facilitou a integração destes elementos desmobilizados
da tropa colonial no movimento do Galo que se bateu contra as
investidas chacinadoras que as unidades paramilitares dos Dragões da
Morte e da AMA (Amigos de Moçambique Armados) fizeram nos subúrbios
durante os tumultos do 7 de Setembro. Foi justamente a sua experiência
militar que conferiu ao Galo a capacidade de organização e resistência
dos bairros suburbanos contra as investidas dos grupos extremistas.
O grupo Galo e a resistência dos subúrbios
- 29 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
38Aurélio
Le Bon lembra que depois de ser apresentado como Comando por Gabriela
Ventura, o grupo gizou a estratégia de protecção dos bairros suburbanos,
que consistia em formar unidades de protecção em cada bairro e
controlar as principais entradas.29
Juntaram os muitos jovens que se encontravam agrupados na principal
ruela de entrada ao bairro da Mafalala, entre eles o musculado e famoso
Isaías Tembe, que se preparavam para uma acção contra os insurrectos do
Rádio Clube. Através daqueles jovens foi possível passar a palavra a
outros bairros, que rapidamente organizaram os respectivos grupos de
patrulha. Muitos dos jovens que faziam parte dos grupos de
esclarecimentos nos respectivos bairros assumiram a liderança das
unidades de protecção. Por exemplo, Pedro Bule e Chico Seita dirigiram
as unidades de Infuleni. Dinis Muhai trabalhou em Xipamanine. Uma das
principais prioridades destas unidades era conter os ânimos populares e
evitar o saque às cantinas que pertenciam a europeus e asiáticos nas
zonas suburbanas. Pretendiam também evitar que a população africana
respondesse com violência aos altos de provocação dos colonos
extremistas. As unidades também deviam estar atentas a qualquer
movimentação dos extremistas, mantendo a Base Galo informada. Betinho
Chissano, a quem coube a tarefa de coordenar e recolher as informações
sobre os vários bairros e unidades de protecção, recorda:
- 30 Betinho Chissano em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
Eu não saía muito. Era o homem da informação. Trabalhava com o Luís Soares. O Luís Soares é que saía com a Gabriela. Como eles eram todos brancos, iam para todos os lados e não eram desconfiados. E eu é que era o centro de informação. Foi na base desse trabalho de disseminação de informação e de mobilização que nós conseguimos entrar nos Quartéis. Em Boane tínhamos o capitão Aurélio Jeremias. Era o nosso homem no Quartel de Boane. Portanto, tínhamos o Quartel connosco. Os soldados negros em Boane estavam prontos, com armas para entrar a nosso favor caso fosse necessário. Na carreira de Tiro nós tínhamos um focal point cujo nome já não me lembro. De tal modo que começamos a receber armamento mais moderno, como bazucas, morteiros, G5, FN. Tudo isso ia para o Manuel Falcão. Essa era a nossa organização. Esse era o nosso trabalho.30
39Como
ilustra o depoimento de Betinho Chissano, que é corroborado por outras
fontes, o grupo Galo conseguiu angariar uma considerável quantidade de
armamento vindo dos quartéis da cidade. Na caótica situação em que se
encontrava o Exército colonial, muitos soldados e recrutas que apoiavam a
FRELIMO facilitaram a saída de armamento para a Base Galo. Apesar do
grande aparato de protecção que cobria a Base Galo, o armamento chegava à
base sem dificuldades porque muitos dos militares que a levavam eram
conhecidos nos bairros suburbanos, onde moravam. Joel Libombo, na altura
ao serviço do Exército colonial como Comando, lembra:
- 31 Joel Libombo em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
Todas aquelas zonas ficaram a saber que haveria um grupo de militares da Tropa Especial. E citavam os nomes de uns de nós que éramos filhos de lá do bairro, que eventualmente passaríamos por lá e que nos deixassem passar. O outro aspecto em que contribuímos sobremaneira foi na captura de armamento desses grupos a quem desarmávamos e levávamos para a base da Mafalala. Levamos muito material.31
- 32 Miguel da Mata em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
- 33 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
40Para
evitarem a infiltração de agentes do inimigo, sobretudo a entrada das
caravanas dos colonos extremistas nos subúrbios, o grupo Galo criou
senhas e contra‑senhas de entrada e saída dos bairros. De acordo com
vários depoimentos, as senhas mudavam constantemente.32
No final do dia 8, uma importante decisão foi tomada pela Base Galo, e
transmitida a todas as unidades de protecção dos bairros. Todos os
bairros deviam observar uma “greve silenciosa.” Os trabalhadores estavam
proibidos de rumar ao trabalho no dia seguinte. Segundo Le Bon, a
decisão visava evitar qualquer contacto entre africanos e brancos, bem
como retirar dos colonos a força de trabalho da qual tanto dependiam.33
Na manhã do dia 9 (segunda‑feira), muitos trabalhadores africanos foram
obrigados a regressar a casa pelas brigadas do movimento Galo. A
ausência da habitual força de trabalho deve ter alertado os colonos de
que algo maior devia estar a ser organizado no interior do “caniço.” O
resultado foi catastrófico. Foi justamente nesse dia, 9 de Setembro, que
os Dragões da Morte e colonos civis armados de caçadeiras empreenderam
um dos mais inconsequentes e brutais ataques aos chamados subúrbios,
habitados essencialmente por africanos. Entraram nos subúrbios de táxis e
abriram fogo indiscriminadamente contra africanos indefesos. É incerto o
número de vítimas deste ataque e incertas as suas reais motivações. É
provável que tenha sido uma demonstração de poder para compelir as
pessoas a voltarem ao trabalho. Na sua narrativa, Clotilde Mesquitela
avança que a direcção do MML não sabia da origem do ataque nem dos seus
actores (1977: 109). A ser verdade, isto sugere que os líderes políticos
da insurreição no Rádio Clube não tinham controlo das suas facções
armadas. O MML era, como escreve Ribeiro Cardoso, “tudo ao sabor do
momento, sem qualquer organização ou liderança visíveis.” (2014: 236).
Os Dragões da Morte, que apoiavam e protegiam os que estavam na estação
da rádio, assumiram sempre uma atitude anti‑FRELIMO muito mais radical, e
exibiam um racismo mais cru. Pedro Bule relata a forma como viu os
ataques dos Dragões da Morte e de colonos civis nos subúrbios:
- 34 Pedro Bule em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
Eles começaram com tiroteios. Foi no bairro do Jardim onde vi os primeiros tiros, quando ia para casa, no Infulene. Nessa altura as coisas estavam tão complicadas que a gente já não ia à escola. [...] Repara no conceito que os colonos tinham de nós: um povo pacífico, seus empregados, seus moleques, obedientes, pacatos, patetas. Então eles achavam que podiam fazer de nós o que quisessem. Agora, não sei se eles vieram aos bairros aos tiros porque nós, nos nossos bairros, erguemos as bandeiras da FRELIMO e isso lhes causava irritação. Eles não enfrentavam grupos concentrados. Apanhavam um cidadão qualquer e mandavam tiros de pressão de ar, caçadeiras, e feriram muitas pessoas.34
- 35 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
41Nos
subúrbios, onde muitas casas eram feitas de caniço e “madeira e zinco”,
as balas perfuravam as paredes com facilidade e vitimavam mortalmente
gente indefesa que procurava abrigar‑se dos ataques. O caos estava
instalado. O grupo de coordenação na Base Galo emitiu uma segunda ordem.
Era preciso barricar todas as entradas dos subúrbios, incluindo a
ligação Lourenço Marques‑Matola. Nenhum carro devia entrar nos bairros
sem ser revistado.35 Pedro Bule recorda o efeito imediato desta decisão:
- 36 Pedro Bule em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
Bloqueamos a Avenida de Angola. Bloqueamos a Maquinag. Quando se sai da auto‑estrada, ali era o nosso limite. No Infulene tem aquela estrada que vem do Estádio da Machava e aquilo tem entradas. Então fizemos barricadas ali. […] A ordem era não deixar portugueses entrarem nos bairros. Até aí estava tudo tranquilo. Mas a agressão continuou.36
- 37 Entrevista com Ché Mafuiane, Maputo, 4 de Dezembro de 2014.
- 38 Pedro Bule em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
42De
facto, os ataques dos extremistas continuaram, tornando o trabalho do
grupo Galo de conter a ira popular ainda mais difícil. Para além dos
ataques, os membros do MML continuavam a incitar ao ataque os elementos
da FRELIMO, a partir dos microfones do Rádio Clube. Ché Mafuiane, que se
encontrava entre a população enraivecida de Chamanculo, recorda que
começaram a ouvir‑se vozes entre as multidões de que deviam marchar para
a cidade e silenciar os “reaccionários.”37
Segundo Pedro Bule, “com a continuação da agressão dos colonos
reaccionários, perdemos o controle da população. A ira popular fez
saltar a tampa. Ficamos na rua com catanas, paus, pedras, ferros e
matámos muitos. Parece sanguinário dizer isto hoje, mas estou aqui a
retratar um momento real.”38
À medida que a “massa de gente” enraivecida pelos ataques dos
extremistas foi crescendo nos subúrbios, progredindo em direcção à
cidade de cimento, foi deixando um manto de destruição à sua passagem.
As descrições de como alguns colonos foram mortos, em casa, nas
cantinas, ou tentando fugir para a África do Sul não deixam de ser
chocantes. Pedro Bule lembra um desses actos de revolta:
- 39 Cf. nota de rodapé anterior.
Vinha um carro e, como a gente tinha aquelas barricadas ali, não passava. Para ser queimado não demorava 30 segundos. Mas não era queimado em pé. Quando o carro chegava rodeávamo‑lo, depois levantávamos, virávamos para o ar com os seus passageiros. Queimávamos e toda a gente carbonizava lá dentro. Era muita fúria. Esta estrada para o aeroporto aqui na Avenida de Angola, eram cadáveres, não eram brinquedos, eram cadáveres mesmo. Eu vi uma senhora que estava a andar e, de repente, vi um indivíduo com uma catana a cortá‑la. Em pouco tempo a branca havia ficado sem seios. Vi gente a ser queimada. Não foi pouca gente. De repente ficou clara a relação entre nós e os brancos. Os brancos que estavam connosco não sofreram isso porque a gente os conhecia.39
A retomada do Rádio Clube e o fim da insurreição colona
- 40 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
- 41 Clotilde Mesquitela menciona que a direcção dos revoltosos na rádio deu ordens para se reforçar a p (...)
- 42 Miguel da Mata em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
43Inicialmente
o grupo Galo considerou uma operação militar desenhada por Le Bon que
consistia em assaltar a estação da rádio com morteiros e cortar a fonte
de electricidade de todo o prédio. Segundo Le Bon, esta operação teve
que ser cancelada porque os insurrectos tomaram conhecimento e
reforçaram a guarda.40
Miguel da Mata, indicado para sabotar a linha de fornecimento da
electricidade, ouviu o seu nome pela rádio, em casa da irmã, por onde
passara a caminho do local da acção. Através de agentes infiltrados no
grupo Galo, os insurrectos haviam sido alertados sobre a operação,41 o que obrigou Le Bon a esconder Miguel da Mata.42
44Na
manhã do dia 10, quarto dia da insurreição, ficou claro para o grupo
Galo, para o Exército português, bem como para o MML que era eminente a
chegada da população africana na zona baixa da cidade. O então
comandante do AB‑8 (aeródromo‑base 8 anexo ao aeroporto de Lourenço
Marques), Tenente‑Coronel Jorge Ribeiro Cardoso, recorda o terror que
teve quando sobrevoou a cidade capital nessa manhã:
No dia 10 sobrevoei os negros a avançar para a cidade do cimento. Foi de arrepiar: o que se via era milhares de negros a caminhar por todas as estradas que levavam às entradas da Lourenço Marques dos brancos. Pareciam multidões de formigas, aos milhares, a avançar em direcção à cidade. Não se via o chão. Assustador. De lá de cima é que se tinha uma ideia de conjunto do que estava prestes a acontecer. (Cardoso apud Cardoso, 2014: 288)
45Embora
já tivesse recebido indicações de Lisboa para repor a ordem na cidade, o
Comando do Exército português em Lourenço Marques não sabia como tomar a
rádio. A delicada decisão de invadir a rádio estava nas mãos do Coronel
Melo Egídio, Chefe do Estado‑Maior do Comando Territorial Sul e do
Comando Operacional de Lourenço Marques. Segundo Ribeiro Cardoso,
reinava incerteza e indecisão no quartel‑general da capital. De facto,
“a prioridade da chefia militar era encontrar maneira de silenciar o RCM
[Rádio Clube], mas estava‑se num beco sem saída porque se queria a todo
o custo evitar o que chamavam banho de sangue” (ibidem: 247).
Nessa mesma manhã do dia 10, de Nampula, onde se encontrava o
Comandante‑Geral do Exército, General Orlando Barbosa, duas companhias
de Comandos haviam sido despachadas para a capital para repor a ordem. A
caminho estava também o primeiro grupo de guerrilheiros da FRELIMO que
vinha fazer parte da comissão militar conjunta. As duas companhias de
Comandos chegaram no mesmo dia à capital. Os guerrilheiros da FRELIMO só
chegariam no dia seguinte.
- 43 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
46Desconhecendo
o impasse do Exército português, Quina Lima, um dos membros da
liderança do Galo, decidiu ir ao quartel‑general, que fica a alguns
minutos de caminhada a partir de Mafalala. Queria falar com o comandante
do Exército para o convencer a falar com o grupo da Mafalala. Só com
muita insistência é que Quina Lima foi recebido pelo Coronel Melo
Egídio. Lima revelou ao chefe militar a existência de uma organização de
resistência baseada no bairro da Mafalala que possuía uma senha capaz
de parar a multidão e evitar que ela chegasse ao Rádio Clube. Mas apenas
a recuperação da rádio permitiria o anúncio da senha e faria com que a
multidão recuasse. Lima revelou ainda a capacidade militar do grupo da
Mafalala, e alertou que o grupo já estava a equacionar um ataque à rádio
com recurso a armas pesadas em sua posse (como morteiros). Preocupado
com um possível ataque vindo da Mafalala, para além da eminente chegada
das populações à baixa, Melo Egídio pediu a Lima que chamasse os seus
companheiros.43
47Na
Base Galo, Lima teve primeiro que desculpar‑se por ter quebrado o
protocolo e ter ido ao quartel‑general por iniciativa própria sem ter
discutido com o grupo. Sob chefia de Amaral Matos, a liderança do Galo
seguiu para o quartel‑general. Aurélio Le Bon recorda como foi criada a
senha que havia de ser levada à rádio caso a operação desse certo:
- 44 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
Dentro da viatura e prontos para partir, o Betinho Chissano sugeriu que deixássemos orientações para que o comité passasse nas próximas reuniões às outras células. “Pelo menos uma senha que todos fiquem a saber caso tudo corra bem e haja a oportunidade de se difundir pela Rádio.” Amaral Matos concordou e decidimos criar uma senha. “Galo, Galo”, respondeu o Betinho. [...] “Amanheceu!” Sugeri. “Agora sim, faz sentido. A senha a ser enviada a todos os comités de coordenação e resistência está aprovada: GALO. GALO. AMANHECEU. Vamos embora e desejem‑nos sorte e bom trabalho a todos. Sentenciou o chefe Amaral.44
- 45 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
- 46 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
48Assim
surgiu a senha que deu o nome ao grupo da Mafalala. Chegados ao
quartel‑general, os líderes do Galo foram ouvidos por Melo Egídio. Entre
os presentes, Melo Egídio reconheceu Aurélio Le Bon, que fora seu
“tropa” quando era comandante da Zona Operacional de Tete (ZOT). Le Bon
confirmou a existência da organização sedeada na Mafalala e acrescentou
que muitos dos seus colegas africanos do batalhão de Comandos faziam
parte da resistência. Ainda fez menção à posse de armamento pesado e que
alguns dos seus antigos colegas de tropa estavam dispostos a apoiar as
populações africanas em caso de fogo aberto vindo dos colonos
conservadores.45
Convencido, Melo Egídio decidiu lançar o assalto à rádio. Nessa altura
já tinha o aval do General Orlando Barbosa, que entretanto havia chegado
a Lourenço Marques com duas companhias de pára‑quedistas. Melo Egídio
apontou Le Bon para dirigir a operação e ordenou que lhe dessem um
fardamento de alferes. A ideia era que Le Bon seguisse para o Rádio
Clube acompanhado por uma brigada de pára‑quedistas, e assim que fosse
tomada a rádio assumisse os microfones. Entretanto, os seus companheiros
da Mafalala deviam permanecer no quartel.46
49Entretanto,
o desgaste que o MML sofria, e a não‑adesão do Exército e do Governo de
Portugal à sua causa eram um sinal claro que a sua “revolução” havia
chegado ao fim. Através do coronel Cunha Tavares (comandante da PSP),
Gonçalo Mesquitela, um dos líderes da insurreição, mantinha conversações
com o quartel‑general. Entretanto os aeroportos já haviam sido
recuperados pelo Exército. Dentro da cabine da rádio os líderes do MML
já viviam o medo da eminente invasão, e preparavam‑se para entregar a
rádio, enquanto lá fora as vozes embargadas dos milhares de colonos
desesperados entoavam canções da pátria amada e içavam a bandeira das
cinco quinas. Passavam já quatro dias e a “revolução” não tinha mais
força. Com alguma dificuldade, a brigada de pára‑quedistas que
acompanhava Le Bon conseguiu abrir caminho até à cabine da rádio, no
segundo andar, sem resistência. Dentro da cabine já se estava à espera
de um tal representante da FRELIMO que havia de acalmar as populações.
Esta entrada no Rádio Clube é descrita por Mesquitela nos seguintes
termos:
O coronel Tavares regressa, entretanto, e traz consigo um representante da Frelimo que fora buscar ao Quartel‑General, e que vem fardado de alferes do Exército Português (se o não era)… Explica aos presentes na cabine que esse representante da Frelimo vai falar aos camaradas porque, assim, terminarão imediatamente os massacres que se estão a dar em muitos pontos da cidade. Segundo diz o alferes, utilizará uma senha previamente combinada com todos os elementos da Frelimo, que será o sinal para pararem. Confirma assim o que o comité da Revolução tinha suspeitado. Tudo estava combinado entre a Frelimo e as Forças Armadas. (1977: 148)
50A
clandestinidade da actuação do grupo Galo cimentou a ideia, entre os
insurrectos do Rádio Clube, de que era a FRELIMO quem estava a
orquestrar a resistência nos subúrbios. Mas a FRELIMO ainda não tinha
chegado à cidade capital. Apenas no dia seguinte, a 11 de Setembro, é
que os primeiros guerrilheiros da FRELIMO, chefiados por Alberto
Chipande, haviam de chegar a Lourenço Marques. Até então o grupo Galo
actuou por iniciativa própria, sem orientação directa da FRELIMO. Como
refere Chico Seita,
- 47 Chico Seita em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
havia uma série de grupos. A FRELIMO um dia vai ter que reconhecer que de fato houve gente anónima que fez uma mobilização terrível. Quer dizer, é diferente ter alguém da FRELIMO que veio de Dar‑es‑Saalam. Nós não tínhamos nada disso. Ali no Infulene não conheci ninguém da FRELIMO. Éramos nós apenas.47
- 48 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
51A
entrada de Le Bon no Rádio Clube foi muito facilitada pela sua
camuflagem, como militar português, que lhe garantiu as necessárias
credenciais. Mas tal disfarce não havia de durar muito tempo. A situação
dentro da cabine era bastante tensa e podia explodir a qualquer
momento. Como Le Bon recorda, “coloquei‑me junto de uma G‑5 que estava
encostada na parede para me defender caso algo corresse mal.”48
Ricardo Saavedra (1975: 67) e Clotilde Mesquitela (1977: 148‑149)
oferecem com detalhe o discurso, interrompido de música de quando em
vez, que Le Bon proferiu quando assumiu os microfones:
O alferes, com uma voz perfeitamente controlada, começa a sua alocução. “Galo, galo, galo amanheceu. Peço a todos os camaradas que se dirijam ordeiramente e com a maior calma possível para todos os pontos da cidade, a fim de controlarem as massas que se dirigem para o centro da cidade… Galo, galo, galo amanheceu. Galo amanheceu. [...] Calma, honraria, um desejo intenso de construir Moçambique, de acordo com o programa assinado no dia sete de Setembro em Lusaka, passa a ser a palavra de ordem para o povo todo de Moçambique, a partir deste momento…O Rádio Clube de Moçambique foi entregue às forças policiais que o colocaram sob controlo das Forças Armadas, a quem compete garantir a paz ao povo de Moçambique, até à entrada em exercício, em breve, do novo governo para Moçambique, cuja constituição ficou estabelecida em Lusaka. Viva o Presidente de Portugal. Viva António Spínola. Viva Samora Machel. Atenção, camaradas. Galo, galo amanheceu. Foi esta a senha combinada por todos os camaradas. Dêem a vossa ajuda. Viva o Presidente Samora Machel. Viva o Presidente António Spínola.
- 49 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012. Segundo Mesquitela Le Bon foi protegido (...)
- 50 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
52Os
vivas a Samora Machel e a credibilização dos acordos de Lusaka acabaram
com o disfarce de Le Bon. O Coronel Cunha Tavares regressou à cabine da
rádio aos gritos, “fomos traídos! Fomos traídos! A senha do Galo, galo amanheceu
é a ordem de ataque. Nos sítios indicados nestas mensagens já estão a
ser massacradas todas as pessoas. Será impossível detê‑los” (Mesquitela,
1977: 149). De imediato, um dos jovens insurrectos, “ao ouvir isto,
dispara o seu revólver, mas tão nervoso estava que não acertou no
frelimo” (ibidem). Le Bon recorda que conseguiu escapar pulando
pela janela e correndo para a sede da polícia que fica a um bloco da
estação da rádio.49
No entanto, a essa altura, a operação não podia ser mais interrompida.
Na verdade, o que alarmara o Coronel Tavares eram as notícias que
chegavam dando conta de que as populações enfurecidas se aproximavam da
estação da rádio e que tinham deixado um manto de destruição e morte
pelo caminho. O quartel-general reforçou as ordens e um grupo de
pára-quedistas foi enviado para tomar a rádio à força, enquanto Le Bon
regressava pela segunda vez ao Rádio Clube, para repetir o apelo.50
- 51 Ainda no quartel‑general, um oficial do Exército havia sugerido que Le Bon levasse consigo o jornal (...)
53De
novo na cabine Le Bon assumiu o comando dos microfones e anunciou que o
“golpe” tinha acabado. Nessa altura toda a liderança do MML já havia
abandonado a Rádio. Fora da estação da rádio as tropas dispersaram as
largas centenas de manifestantes pró‑MML que ainda se mantinham no
local. Le Bon continuou ao comando dos microfones enquanto esperava que
locutores profissionais chegassem à estação. “Depois de acalmar as
populações, não sabia o que fazer com o microfone. Tentei dizer
mensagens de paz e independência, mas não conhecia as palavras de
mobilização e canções da FRELIMO. Entretive as pessoas lendo o Acordo de
Lusaka que tinha sido publicado no Diário de Notícias.”51
54Um
dos aspectos importantes desta história é a forma como o discurso de Le
Bon conseguiu parar a marcha da população africana em direcção ao Rádio
Clube. Há poucos dados sobre este ponto em concreto. Certamente a senha Galo, galo amanheceu que
os líderes do grupo de resistência da Mafalala deixaram com o
responsável pela informação, Betinho Chissano, foi rapidamente espalhada
entre os vários núcleos de protecção dos bairros, que também se
encontravam com a massa popular que se dirigia à baixa da cidade.
Algumas pessoas tinham aparelhos de rádio portáteis entre a multidão, e
assim que ouviram a senha e o discurso de Le Bon aperceberam‑se de que o
“golpe” tinha acabado, como afirma um dos dirigentes dos núcleos de
protecção dos bairros, Dinis Muhai:
- 52 Dinis Muhai em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013. Eugénio Lisboa lembra: “um dos momentos m (...)
Avançamos com o grupo para a Praça 21 de Outubro, que antes era Praça João Albasini. Foi onde parámos quando o Aurélio Le Bon grita o Galo Amanheceu na Rádio Clube. Tínhamos os nossos rádios a escutar. Nós tínhamos o Fernando Sumbana e o António Sumbana que faziam a conexão com a Base Galo na Mafalala. Então pronto, terminou.52
55Quando
o primeiro contingente da FRELIMO chegou à cidade, no dia 11 de
Setembro, Le Bon ainda estava de uniforme e a situação tinha começado a
voltar à normalidade, embora muito tenuemente. Foram justamente os
líderes do grupo Galo que receberam Alberto Chipande e Bonifácio
Gruveta, os responsáveis do primeiro contingente de guerrilheiros da
FRELIMO que vinha integrar a Comissão Militar Mista preconizada no
Acordo de Lusaka.
Conclusão
56Este
artigo parte da assunção de que o processo histórico que culminou com a
descolonização e independência de Moçambique foi mais complexo e
multifacetado e envolveu muito mais atores cujas posições políticas não
cabem na simples oposição binária imposta pela “narrativa de libertação”
que domina a historiografia de Moçambique contemporâneo (Borges Coelho,
2014: 23). No período conturbado da transição marcado pelos tumultos de
7 de Setembro, as fronteiras entre nacionalista e colonialista,
revolucionário e reaccionário, militar e civil, herói e traidor (que
definem e animam a narrativa de libertação) eram muito porosas. Os
mecanismos de mobilização e a actuação do grupo Galo da Mafalala devem
ser vistos não como simples extensão do nacionalismo revolucionário da
FRELIMO, mas como resultado do agenciamento das elites africanas de
Lourenço Marques, animadas por um imaginário político próprio e mais
moderado. As tensões entre este imaginário político e o exclusivismo
revolucionário da liderança da FRELIMO vieram à superfície logo depois
da proclamação da independência nacional. Por terem actuado sempre na
“zona do inimigo” (o espaço urbano), as elites africanas que militaram
na clandestinidade foram vistas pela FRELIMO com desconfiança. A sua
integração nas fileiras do partido de vanguarda só seria permissível
depois de uma triagem (corajosos vs. vacilantes, heróis vs. traidores,
militantes vs. comprometidos) e de um processo de purificação através da
reeducação política e moral. O próximo projecto, continuação deste,
procurará examinar as dinâmicas da tensa (e muitas vezes violenta)
colisão entre a visão política moderada das elites africanas urbanas e o
exclusivismo revolucionário da FRELIMO no processo de construção do
Estado‑nação em Moçambique independente.
Bibliography
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Notes
*
Este texto resultou parcialmente da participação do autor num projecto
de pesquisa financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia –
PTDC/AFR/103057/2008.
1 Reconheço
que as categorias raciais e de classe, branco/negro, europeu/africano,
elites/massas raramente permitem capturar na sua essência a complexa
configuração dos estratos sociais em Moçambique, sobretudo nos espaços
urbanos. Ao longo do texto estas categorias se imiscuem, mas há poucas
alternativas no espaço deste artigo para uma representação mais fiel que
não torne difícil entender o argumento que se pretende avançar.
2 Estas
entrevistas foram feitas no âmbito do projecto “Estilhaços do Império”,
do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sob
coordenação de Maria Paula Meneses.
3 Agradeço
a gentileza do Sr. Le Bon que me permitiu usar os depoimentos, antes
mesmo da publicação do seu livro sobre a Operação Galo.
4 Sobre o impacto dessa visita de Eduardo Mondlane, ver Manghezi (2001: 187-210).
5 Entrevista com Gonçalves Chachuaio, ex-preso político na Machava. Maputo, 5 de Junho de 2011.
6 Para
uma compreensão do cativeiro como um espaço de fermentação do
imaginário político entre detidos em África colonial, ver Peterson
(2008); Alexander (2011); e Butman (2003).
7 Entrevista com ex-presos políticos Francisco Muchave, Ananias Tivane e Zefanias Mangue, Xai-Xai, a 14 de Dezembro de 2014.
8 Entrevista
com Pedro Bule, por Clinarete Munguambe, Maputo, a 3 Maio de 2013.
Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, a 20 de Julho de 2012.
9 Para
uma comparação do programa e estatutos da FRELIMO, ver Reis e Muiane
(1975: 47-65), que contém o programa e estatutos revistos depois do II
Congresso; e Tembe e Gaspar (2014: 73-84), que apresenta os estatutos e
programas do I Congresso de 1962.
14 Sobre
a experimentação do projecto socialista nas zonas libertadas levada a
cabo pela FRELIMO, uma espécie de incubadora para o processo de
construção do futuro Estado-nação socialista, ver Brito (1991: 27-135).
15 Pedro Bule, em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
16 Sobre a trajectória política de Domingos Arouca, ver Peixoto e Meneses (2013).
18 “Os Democratas de Moçambique denunciam atentado contra Dr. Pereira Leite”, Notícias, 22 de Junho de 1974.
20 Pedro Bule, em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
21 Albino, por exemplo, fugiu para Suazilândia (Mussanhane, 2012: 99).
22 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
23 Matias Mboa em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
24 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
25 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho 2012.
26 Entrevista
com Pedro Bombe, ex-tropa colonial, Maputo, 4 de Maio de 2011;
Entrevista com Vasco Sono e Mário Tembe, ex-tropas coloniais, Maputo, 6
de Maio de 2011.
27 Secretaria-Geral da Província de Moçambique. Relatório Sucinto. Maio de 1972. AHM/FGG, cx. 2187, p. 7.
28 Província
de Moçambique. Gabinete Militar do Comando-Chefe. Acta da Reunião do
Conselho de Defesa Militar da Província de Moçambique, realizada em 6 de
Dezembro de 1968. 4.ª reunião de 68. Secreto. AHM/FGG – cx. 4247.2.
29 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
30 Betinho Chissano em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
31 Joel Libombo em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
32 Miguel da Mata em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
33 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
34 Pedro Bule em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
35 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
36 Pedro Bule em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
37 Entrevista com Ché Mafuiane, Maputo, 4 de Dezembro de 2014.
38 Pedro Bule em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
39 Cf. nota de rodapé anterior.
40 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
41 Clotilde
Mesquitela menciona que a direcção dos revoltosos na rádio deu ordens
para se reforçar a protecção de áreas importantes na cidade que estavam
sob ameaça de sabotagem (Mesquitela, 1977: 87).
42 Miguel da Mata em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
43 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
44 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
45 Depoimento de Aurélio Le Bon para o livro sobre a Operação Galo, Maputo, 2012.
46 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
47 Chico Seita em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013.
48 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
49 Entrevista
com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012. Segundo Mesquitela Le
Bon foi protegido pelo Coronel Tavares e foi por ele escoltado para fora
da cabine (1977: 149).
50 Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20 de Julho de 2012.
51 Ainda
no quartel‑general, um oficial do Exército havia sugerido que Le Bon
levasse consigo o jornal. Entrevista com Aurélio Le Bon, Maputo, 20
Julho de 2012.
52 Dinis
Muhai em depoimento a Aurélio Le Bon, Maputo, 2013. Eugénio Lisboa
lembra: “um dos momentos mais emocionantes da minha vida foi quando eu
ouvi, e nem queria acreditar, aquela mensagem mágica ‘Atenção, atenção,
Galo amanheceu, Galo amanheceu’, aí comecei a acreditar que iríamos
sobreviver” (Cardoso, 2014: 307).
Top of pageReferences
Bibliographical reference
Benedito Machava, « Galo amanheceu em Lourenço Marques: O 7 de Setembro e o verso da descolonização de Moçambique », Revista Crítica de Ciências Sociais, 106 | 2015, 53-84.Electronic reference
Benedito Machava, « Galo amanheceu em Lourenço Marques: O 7 de Setembro e o verso da descolonização de Moçambique », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 106 | 2015, Online since 28 April 2015, connection on 29 November 2016. URL : http://rccs.revues.org/5876 ; DOI : 10.4000/rccs.5876Top of page
About the author
Benedito Machava
Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane
Praça 25 de Junho, 257 Maputo, Maputo C. P. 257, Moçambique
benma@umich.edu
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