OPINIÃO
Elogio da hipocrisia
Só aqueles que sabem o mal de que o humano é capaz podem realmente mostrar-nos o caminho.
Segundo se pode ler em vários jornais por todo o mundo, o recém-eleito Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, entre outras declarações aberrantes, assumiu, numa gravação vídeo, que não se importaria de ter também violado uma freira, realmente violada e assassinada num motim prisional em Davao, em 1989. Do outro lado do mundo, nos Estados Unidos da América, temos um proto-candidato a Presidente, Donald Trump, que, se não fez (até agora) nenhuma afirmação tão brutal quanto esta, tem andado (bastas vezes) muito perto disso. E a pergunta que fazemos é: como é possível que este tipo de “políticos” seja cada vez mais popular?
Nestes dois casos (poderíamos dar outros, mas estes são mais do que suficientes para a nossa reflexão), conseguimos perceber um certo encantamento por parte de grande parte da população por pessoas que (pelo menos, aparentemente) dizem aquilo que pensam (por mais que não pensem naquilo que digam). Isto por contraponto a toda uma classe política, das Filipinas aos Estados Unidos, que manifestamente quase nunca diz aquilo que pensa. Sobretudo nas últimas décadas, tem havido realmente uma ditadura cada vez maior do “politicamente correcto”, que leva a que o discurso político soe cada vez mais a falso. “Eles mentem-nos” – é a verdade, nua e crua. Isto descontando todos os casos em que, por razões de Estado (que existem) os políticos são mesmo obrigados a mentir – ou, pelo menos, a não nos contarem toda a verdade.
Dito isto, estes contra-exemplos estão longe de serem melhores. Quando alguém, retomando o exemplo dado, assume que não se importaria de ter violado outra pessoa (freira ou não, isso aqui é o menos importante), esse alguém só pode estar a negar o seu próprio estatuto de “pessoa”. E aqui o assumir faz toda a diferença. Não há ser humano (excepto talvez os santos, se é que existem) que nunca tenha sentido pulsões transgressoras. Mas, precisamente, o que diferencia os humanos (dos outros animais, desde logo) é conseguirem controlar essas pulsões. E mesmo quando as sentem, não as assumem com esse boçal orgulho. Assumi-las publicamente, como fez o Presidente das Filipinas, é algo que extravasa por inteiro os limites da humanidade civilizada.
Não sendo o maior adepto de máximas moralistas – o pensamento tende a não ser redutível a máximas, moralistas ou não –, houve uma que sempre apreciei, de François de La Rochefoucauld, pela sua subtil sageza cínica: “A hipocrisia é o tributo [ou a homenagem] que o vício presta à virtude”. Com efeito, em última instância, o mal não está tanto no vício, mas sobretudo em deixar de prestar tributo [ou homenagem] à virtude. Que nestes nossos tempos isso seja de todo esquecido, em prol de uma impossível transparência – tão impossível quanto nefasta –, não augura nada de bom quanto ao nosso futuro colectivo. Precisamos, também aqui, de regressar aos clássicos: para recuperarmos uma visão não infantilizante da humanidade. Só aqueles que sabem o mal de que o humano é capaz podem realmente mostrar-nos o caminho que, não nos podendo levar à santidade, nos leve pelo menos à decência, à civilização. Isso já será o bastante.
Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono, www.movimentolusofono.org
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