Afonso Dhlakama fotografado este mês numa base no sopé da Gorongosa
| ANDRÉ CATUEIRA-LUSA
Foi líder de guerrilha aos 27 anos. Soube depor as armas. Hoje, diz-se sem paciência e quer o poder em metade do país.
Um quarto de século após o Acordo de Roma, Afonso Dhlakama está de volta ao mato. Com a promessa de tomar o poder nas seis províncias (num total nacional de 11) onde a Renamo obteve maioria nas legislativas de 2014, correspondentes às regiões de influência histórica do movimento que combateu a Frelimo de armas na mão entre 1977 até 1992, quando foram assinados o acordo de paz na capital italiana. "Eu anunciei a formação do nosso governo, vai entrar em vigor em março, pode ser dia 1, 15 ou 30, mas (...) vamos governar", disse este mês na Gorongosa.
A reivindicação de Dhlakama e suas consequências serão analisadas esta semana no primeiro Conselho de Estado que o presidente Filipe Nyusi convoca desde que chegou ao poder em 2014.
As críticas atuais de Dhlakama não são senão o eco de outras feitas desde 1994, e remetem para situações de intolerância política, discriminação, ausência de equilíbrio e independência na Administração Pública e questões conexas. Um jornalista moçambicano, falando no final da semana numa conferência em Maputo, sintetizou a situação: "Este é um dos únicos países (...) em que não temos nenhum dirigente a nível de uma associação desportiva ou de camponeses que não seja do partido no poder", disse Salomão Maiane, citado pela Lusa.
Quando assumiu a direção da Renamo, o atual líder tinha 27 anos e coube-lhe suceder, após morte em combate, a André Matsangaíssa, um ex-militante da Frelimo que rompeu com esta, tal como Dhlakama. A Renamo chamava-se Resistência Nacional Moçambicana (RNM), abrigava-se na Gorongosa, no centro do país, onde Dhlakama volta sempre que se diz em perigo.
A primeira geração de combatentes da Renamo recebeu formação da Rodésia (atual Zimbabwe) e nas suas fileiras havia de tudo: os que tinham vestido o uniforme português, ex-guerrilheiros da Frelimo, sem partido descontentes com o regime de Maputo.
Já com Dhlakama na liderança, será a África do Sul a assumir responsabilidades na preparação militar e apoio político até ao início do processo de transição do apartheid para o governo da maioria negra. Mas Dhlakama sempre recusou a ideia de ter sido a Renamo criação ou instrumento de Pretória.
Deslocações de motorizada
A natureza do conflito e a escassez de recursos obrigam os guerrilheiros e seu líder a longas caminhadas no mato, uma prática que, desde o regresso das tensões entre Renamo e Frelimo, Dhlakama diz-se forçado a recorrer para escapar a alegadas emboscadas de forças governamentais. Mas as motorizadas parecem ocupar um lugar importante no seu percurso, embora ele negue veracidade a algumas histórias, como aquela posta a circular pela Frelimo que, num assalto à base onde se encontrava, teria escapado num veículo de duas rodas. Mas existem relatos sobre esta faceta, documentada em vídeo e fotografia. Como contou à Lusa o arcebispo emérito da Beira, Jaime Gonçalves, recordando que, no primeiro encontro com Dhlakama numa base da Renamo, este apareceu de moto e o transportou ele próprio até ao local da reunião.
Afonso Dhlakama nasceu a 1 de janeiro de 1953 na localidade de Mangunde, numa família onde o pai era régulo - fator a não descurar na política africana. Não teve grande educação formal. No entanto, nunca desistiu de se cultivar e de ter formação, quer da África do Sul quer de diferentes círculos europeus (entre os quais portugueses) e americanos que apoiam a Renamo. Portugal será, aliás, uma plataforma do movimento, tendo sido palco do assassínio do secretário-geral Evo Fernandes em abril de 1988. Morte atribuída aos serviços secretos de Maputo. No ano seguinte, em julho, começariam as negociações de paz. Raul Domingos representava a Renamo, Armando Guebuza a Frelimo. O Acordo Geral de Paz é assinado a 4 de outubro de 1992.
Casado desde 1980 e pai de oito filhos, Dhlakama vai viver em abril de 1993 para Maputo. Nas primeiras presidenciais, em 1994, tem 33,7 % dos votos; Chissano ganhou com 53,3%. Nas legislativas, a Frelimo somou 44,3%, a Renamo 37,7. No ciclo eleitoral de 1999, Chissano obteve 52,2% e Dhlakama 47,7%. O padrão dos resultados repete-se até 2014, com a Renamo a acusar a Frelimo de fraude. Em 2012, Dhlakama deixou a capital com o argumento de ter a vida em perigo. Seguiu-se um conflito de baixa intensidade entre a Renamo e o governo, com aquele a só reaparecer em 2014 para a assinatura de um acordo de cessação de hostilidades, a 5 de setembro, com o então presidente Armando Guebuza. Mas pouco após as eleições de outubro daquele ano, abandonou Maputo. Agora, diz-se "mais legal que [o atual presidente Filipe] Nyusi. Pelo menos quero governar onde os editais confirmam que Dhlakama e a Renamo tiveram maioria".
Acelerar um acordo político é salvação da paz
Canal de Opinião por Noé Nhantumbo
Abandonar retórica barata e podre é urgente.
Hoje só uma liderança visionária, corajosa e comprometida sobretudo com o país e o seu povo é que pode contribuir decisivamente para o alcance do que as “marchas pela paz encomendadas” não conseguem.
Convenhamos, porque é verdade, que os complexos de superioridade, de grandeza oca, de direito natural de governar Moçambique pelo passado de “combatente pela libertação” estão sufocando o país.
Não há quem ignore que temos os problemas de hoje porque ontem não se quis encarar os assuntos de frente e sem subterfúgios.
Alguém pensou que, enterrando os pontos essenciais, esses acabariam por apodrecer, ou morrer de morte natural.
Que saída para a crise instalada?
Tudo menos retórica barata e podre.
Vamos atacar os pontos de divergência com a maturidade que a questão exige. Sabe-se que houve um pleito eleitoral pejado de suspeitas e com os resultados homologados de maneira ainda mais suspeita.
O Governo saído das eleições de 2014, embora tenha sido reconhecido pelos concorrentes, teve, desde os primeiros dias da sua existência, uma credibilidade chamuscada.
Sente-se que o Governo e o seu chefe foram, na verdade, montados naquelas posições por fortes interesses político-financeiros.
E tudo continua a girar à volta do que AEG e os seus assessores ou conselheiros conceberam.
É a mão do dinheiro comandando a política nacional, e é uma Comissão Política da Frelimo baralhando e distribuindo as cartas como se estivéssemos nos tempos do partido único. Ninguém duvida que a descida de AEG às bases e o seu fortalecimento através da compra pura e simples do voto e da obediência surtiram os seus efeitos.
Só que a duração dos efeitos foi e é manifestamente efémera.
Quando a Renamo estava à espera de que as suas cedências trouxessem também cedências da Frelimo, esta endureceu o seu discurso e, como se pode ver nos dias de hoje, a sua Comissão Política percorre o país reafirmando a sua recusa de partilhar o poder ou de atender à exigência da Renamo sobre a autonomia provincial.
Alegam uns que as pretensões da Renamo ferem a CRM. Os mesmos são parte de uma equipa que concebeu a engenharia da fraude eleitoral.
É preciso que não nos cansemos de dizer que houve irregularidades que se transformaram em fraude. É repetindo e aprendendo de factos ocorridos que se podem lançar as bases para pleitos eleitorais justos, livres e transparentes. Quem quer que 2019 seja diferente de 2014, deve começar a trabalhar hoje.
O trabalho principal é desenhar um acordo político consensual que aprove uma lei transitória dando possibilidade de a Renamo nomear governadores provinciais onde possui a maioria nas assembleias daquele nível. Alterar a CRM é necessário e possível, se a paz é o que os políticos pretendem. Não vale a pena “fugir com o rabo à seringa”, pois tudo o que parece produzir a crise político-militar reside na manipulação da CRM consoante beneficie a quem governa.
Juntamente com isso, devem ser aprovadas disposições que permitam que uma parte das receitas fiscais, de contrapartidas dos projectos económicos em execução fique nas províncias.
As questões de índole militar e policial devem ser entregues a uma comissão especializada, contando com a assistência técnica de países com reconhecido mérito na integração de criação de Forças Armadas e policiais apartidárias.
Não se trata de destruir as FADM, mas, sim, de torná-las republicanas e com um comando de profissionais. Ninguém quer ver a PRM desmontada, mas, sim, ver esta corporação obedecendo ao que está estabelecido na CRM.
Não tenhamos vergonha de dizer a verdade e reconhecer que um dos grandes entraves para o surgimento de um clima de confiança entre as partes desavindas é a existência de dois exércitos no país. A Frelimo utiliza as prerrogativas constitucionais para manter uma máquina militar e policial sob seu comando, e disso não há dúvidas. Quem governa e está sob alçada da Comissão Política da Frelimo são membros da Frelimo.
A Renamo, no quadro das inconsistências verificadas no âmbito da formação das FADM pós-AGP de Roma, ganhou consciência de que os seus homens incorporados estavam sendo descartados compulsivamente, a coberto da implementação de um programa de reformas concebido para “purificar” as Forças Armadas. Isto é voltar aos termos anteriores ao AGP, em que as FPLM eram um braço armado do partido único.
O sufoco militar em que o país vive faz parte de uma luta pela supremacia de uns através da obliteração dos outros.
Musculados pelo seu controlo efectivo da economia e das finanças, viu-se um partido, Frelimo, desenvolvendo uma política baseada na arrogância e na imposição.
Os legalistas que recebem espaço privilegiado na comunicação social estão ao serviço da mesma agenda que alguns “ilustres libertadores” não se cansam de proclamar.
Rasgar qualquer acordo que atente contra o seu poder único.
Assim sendo, e pelo que se pode depreender das afirmações recentes das partes em conflito, não se auguram tempos calmos ou de harmonia no país.
Persiste a ideia de impor aos outros aquilo que já provou ser “gasolina na fogueira”.
Não de pode alcançar qualquer acordo entre beligerantes se não houver vontade política para tal. Há que ver os moçambicanos despirem-se de pretensiosismos de grandeza infundada.
Não há nada nem ninguém que tenha mais valor que outro.
O país pode e merece outra coisa bem diferente de um estado de coisas em que coisa alguma anda.
Há uma falange pronta para a guerra, porque isso “salvará os seus impérios”.
Há um grupo de “gurus” afectos à Frelimo que hesitam em demarcar-se dos falcões da guerra porque sabem que estes são poderosos e implacáveis.
Em nome de obediência até irracional, muito boa gente vai dormir com pesadelos à sua espera só porque é impensável manifestarem discordância com aquilo que a CP definiu como linha a seguir.
E numa situação em que grande parte da intelectualidade optou pelo silêncio cobarde e cúmplice lambendo botas e fezes, o espectáculo que é oferecido aos moçambicanos é dantesco. Caminhamos para a instabilidade, e repetem-se vozes que não passam de “caixas-de-ressonância” procurando vender a ideia de que os outros são demónios e que só eles são dignos e merecedores de alguma coisa neste Moçambique. (Noé Nhantumbo)
CANALMOZ – 01.03.2016
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