sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Jurista fala das várias deficiências do sistema judiciário angolano


Luanda  - A Fundação Open Society promoveu nesta quinta-feira, em Luanda uma mesa-redonda sobre situação dos direitos humanos em Angola e o quadro político em geral. O conhecido Activista Angelo Kapwatcha apresentou o Tema de Acesso à Justiça nessa mesa-Redonda. A abordagem do mesmo aconteceu enquanto decorre o julgamento dos 15+2 e o desfecho triste do caso Hilbert Ganga cujo assassino foi inocentado pelo Tribunal de Luanda. O texto do activista levanta várias deficiências do nosso sistema judiciário e julgamos que pode ser bom para reflexão e debate.
Fonte: Club-k.net
SÍNTESE DA PALESTRA DO ANGELO KAPWATCHA NA MESA-REDONDA DE DIREITOS HUMANOS PROMOVIDO PELA OPEN SOCIETY – ANGOLA EM LUANDA
DATA: 26 DE NOVEMBRO
TEMA: ACESSO A JUSTIÇA
EVENTO: MESA-REDONDA
PROMOTOR: Fundação Open Society -ANGOLA
“É nosso dever moral e uma obrigação, desobedecermos a uma lei injusta”
Martin Luther King

CONCEPTUALIZAÇÃO DO ACESSO A JUSTIÇA
Quando falamos de acesso à justiça, pretendemos dar o sentido de que: a justiça é de tal forma difícil de ser alcançada que passa de problema meramente social para um fenómeno sociológico que para seu alcance engaja instituições multisectoriais e abordagens interdisciplinares.
O ideal de “ ACESSO À JUSTIÇA” seria:
  • Uma Justiça Eficaz e Eficiente: ou seja teriamos em Angola um corpo de leis, instituições e comportamentos judiciários que realizariam a justiça com menos custos. Porém, há 40 anos da Independência, as nossas leis que corporizam as próprias garantias e liberdades fundamentais do Estado, em relação aos cidadãos, não têm sido capazes de realizar a justiça, o que revela que em Angola muitas vezes temos a percepção de que leis são uma coisa e a justiça é outra coisa.

  • Uma Justiça acessivel aos que dela precisam: ou seja todas as pessoas procuram e têm sede da justiça. Suas exigências ou demandas deveriam encontrar respostas em tempo util e de forma satisfatória. Porém, as instituições jurisdicionais angolanas são excessivamente lentas, burocráticas e muitas vezes discriminatórias, revelando que o acesso a justiça encontra mais obstáculo nas próprias instituições vocaionadas a assegurar a jurisdição da Justiça.

  • Uma justiça interpretada, não como volume de papeis, leis e decretos, mas sim como um fenómeno social: isto é, a justiça parte da sociedade, processa-se na socciedade e tem por meta a atingir, moldar as práticas, as políticcas, as ideias, as crenças e os comportamentos do individuo e dos grupos na sociedade, jogando uma causação circular de espiral envolvente como a metáfora da galinha e o ovo. Significa ainda que a justiça deveria fincar raízes na sociedade que a gera e moldar tal sociedade respeitando as várias idiossincrasias dos povos angolanos. Ora, em Angola a justiça fecha os olhos perante as especcifficidade de grupos, etnias, instituições, factores económicos, factores históricos. E a justiça fecha-se egoísticamente nos casulos dos diplomosa legais muitas vezes descontextualizados da realidade de Angola.

  • Uma justiça próxima do cidadão, isto é, uma justiça usada como instrumento viável de materializar a relação de poder entre o cidadão e as instituições. Porém, em Angola a nossa justiça tem sido elitista, excessivamente hierarquizada e distante do cidadão.

  • Uma justiça igualitária, equitativa e inclusiva isto é uma justiça horizontal na resolução dos litígios e na garantia e protecção dos direitos do cidadão. Uma justiça que produz resultados e impacto individual e socialmente justo. Porém, em Angola a nossa justiça se coloca ao serviço dos cidadãos que mais possuem poder económico para compra-la. E, por ser muito cara, a nossa justiça exclui grupos, individuos e instituições que não possuem meios de pagá-la sobretudo os camponeses, os moradores da periferia, os mais desfavorecidos, infelizmente a nossa justiça materializa, assim o principio Kantiano segundo o qual “ a Justiça não é justiça, senão o benefício para os mais fortes”.

  • Uma Justiça Independente e desgarrada da regulação política, isto é, uma justiça que materializa o principio de igualdade, imparcialidade, justeza, equilíbrio, respeito pelo adquirido comunitário, justiça sem rosto. Porém, em Angola existe lamentações de que a Política tem exageradas interferências na justiça transformando-a em instrumento de manutenção das fraudes, da prepotencia dos políticos detentores do Poder em Angola e actuando na carreira da vassalagem das “ordens superiores”. A maior parte das leis em Angola, parecem ser pensadas e concebidas para diminuir o acesso à justiça; e, óbvio também é o facto de que, os magistrados judiciais hoje em dia em Angola estão colocados na luta quase contra a justiça; sua função principal é coarctar as liberdades e garantias fundamentais a favor do poder político que manietou, agrilhoou a própria justiça incapaz de se emancipar dos Políticos viciados em quase tudo, sobretudo no que respeita aos direitos civis e políticos.

  • Justiça Pedagógico-reconstitutiva do Cidadão; isto é, uma justiça que poderia reabilitar o cidadão e sua reinserção e reintegração na sociedade com virtudes construidas como consenso moral. Todavia, em Angola a nossa justiça se instaura de um primórdio punitivo. Materializa o medo, a repressão e manutenção das diferenças de classes sociais e muitas vezes o sistema judicial e judiciário de Angola repassa escrupulosamente para a sociedade angolana os valores autoritários, arbitrários e irresponsáveis dos políticos que estão no Poder. Em algum momento eu tenho defendido que em Angola, Justiça=Polícia=Forças Armadas essa trilogia serve unicamente o interesse de garantir a continuidade dos poderes políticos e sequestrar o Estado, adiando a prosperidade pública. Em suma: temos mais justiça fechada em dois termos- VIGIAR E PUNIR. A nossa justiça serve para vigiar os cidadãos, diminuir seus espaços de liberdade e puni-los sempre e muitas vezes de forma desnecessária. Para mais: A cultura das instituições jurisdicionais em Angola é "excessivamente punitiva e pouco aberta à reabilitação do indivíduo condenado. Por exemplo, um advogado, há tempos disse que: “ muitas vezes, temos casos de pessoas que entram na prisão por pequenos furtos e saem de lá vinculadas a organizações criminosas”. E eu vou mais longe: parece que a função actual das nossas prisões em Angola é uma função de deformar, adulterar e depravar o cidadão para que no fim de cumprir sua pena se torne totalmente inválido na sociedade. É difícil ser-se cidadão íntegro depois de passar pelas masmorras angolanas. Muitos jovens que se drogam aprenderam nas unidades prisionais angolanas onde passaram muitas vezes sem terem cometido um crime provado. Todas as pessoas depois de cumprir cadeia em Angola, saem traumatizadas, com comportamentos desviados. Muitas vezes o perfil de saída da cadeia angolana é pior que o perfil de entrada. O papel educativo e integrador da justiça não existem nas nossas unidades prisionais. Por exemplo, parece-nos que as faculdades de Direito em Angola, os Institutos de Estudos Judiciários e as escolas instrutivas da Policia de Investigação Criminal apenas formam magistrados judiciais, judiciários e agentes orientados ao direito penal. O Juiz, o Procurador e o agente da polícia seu conhecimento se resumem a mandar para cadeia! Não conhecem mais outra medida educativa e menos punitiva do que a cadeia. Mas o Direito, na nossa opinião, não se resume apenas na Cadeia!

  • Uma justiça orientada a sensibilidade democrática; isto é, a justiça mora e age em função do modelo social de Estado. Ora, Angola é um Estado democrático de Direito e de Direito Democrático. (Art.2º da CRA). O sistema de justiça vigente em Angola, arrasta do passado totalitário os valores não-democráticos dos Políticos detentores do Poder há tanto tempo, e impinge nos seus magistrados judiciais e judiciários a gravosa insensibilidade democrática. Basta olharmos a título de exemplo, para as encenações teatrais e falsas dos julgamentos de presos políticos: um à um, os famosos 15+2, as fachadas das prisões contra os fieis da Igreja adventista do 7º Dia Luz do Mundo depois de sobreviverem do massacre em tempo de paz, os presos em Cabinda, os presos na Lunda-Norte e Sul ligado ao Protectorado Lunda-Tchokwe, a condenação do activista de direitos humanos Rafael Marques de Morais, a pressão contra as ONG’s de Direitos Humanos e seus activistas, as perseguições a jornalistas livres sobretudo do Semanário Folha 8, do Club-K, da Voz da América, da Rádio Despertar etc. No outro extremo está a justiça protectora a favor de vários assassinos contra os activistas Cassule e Camulingue que um dos assassinos (Benilson Tukayanu) está livre apesar de ter sido condenado a 15 anos de cadeia onde nunca deu entrada; o Tribunal Provincial de Luanda considerou inocente o assassino do Jovem Hilberto Ganga, membro da Coligação CASA-CE, morto pela guarda-presidencial aos 23 de Novembro de 2013 nas imediações do estadio dos conqueiros quando colava panfletos de repudio a morte por assassinatos dos activistas Cassule e amulingue, como efeito bumerangue, estão livres os assassinos múltiplos em várias províncias de Angola, numa frequente cena de execuções extrajudiciais etc Assim, a Justiça angolana fecha os olhos perante as exigências do conceito de Estado de Direito que nada mais nada menos do que o Primado da Lei (rule of law), o acesso a justiça para todos sem classe, sem cor da pele, sem poder económico, sem origem étnica, religiosa ou partidária. Os nossos juízes e procuradores no geral não entendem o valor da democracia. Não compreendem o conceito de pluralismo e de liberdades e garantias fundamentais. Por isso, esses juízes e procuradores ou seja os magistrados judiciais, os magistrados do Ministério Público são sempre instrumentalizados e manipulados pelo poder político em Angola, retirando cada vez mais a justiça das leis, isto é, os Magistrados Judiciais e judiciários zelam pela aplicação da lei, mesmo que essa lei vem para destruir a justiça.

  • Um Justiça Moderna e inovadora. Em Angola desde 2003 está a ocorrer o processo de Reforma da Justiça. Cujo objectivo fundamental seria elaborar estudos e propostas a fim de se proceder à Reforma da Justiça e do Direito. A primeira Comissão de Reforma da Justiça e do Direito fora criada por Despacho Presidencial n.º 24/03, de 2 de Maio, e teve como objectivo a feitura de um diagnóstico da situação judicial angolana, que incluísse os aspectos institucionais, legislativos, recursos humanos e materiais e, ainda, aspectos de natureza sociojurídica, bem como apresentar um conjunto de recomendações sobre as políticas do Estado em diversos domínios do Direito e da Justiça a serem executadas a curto, médio e longo prazo. Dois anos depois, ou seja em 2005, as propostas apresentadas por esta comissão, permitiram a Presidência de Angola produzir mais um despacho. Trata-se do Despacho Presidencial n.º 5/05, de 31 de Janeiro; foi criada uma nova Comissão de Reforma que tinha como objectivo a materialização das propostas então apresentadas. Essas duas comissões não produziram grandes informações e propostas sobre a Reforma da Justiça. Em 2006, O Presidente da República encarregou a Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto em Luanda de fazer um estudo exaustivo sobre a situação da Justiça Formal e Informal em Luanda. No âmbito da investigação científica da Universidade, um trabalho de diagnóstico da situação real da justiça formal nas distintas salas do Tribunal Provincial de Luanda, fazendo um levantamento estatístico do movimento processual dos anos de 1997 a 2007; o levantamento dos recursos humanos nas profissões forenses; o estado da Administração, Gestão e Funcionamento dos Tribunais; a caracterização da procura nas diversas salas do Tribunal Provincial de Luanda, nomeadamente, Sala do Cível e Administrativo, Sala de Família, Julgado de Menores, Sala da Justiça Laboral e Sala de Crimes. Daquele tempo para cá, rios de dinheiros gastos sem transparência; provavelmente salas ampliadas, mesas largas compradas, computadores comprados, geradores e viaturas de últimas marcas mundiais distribuídos para magistrados judiciais e judiciários, mas os recursos humanos da justiça continuam numa mobilidade laboral estacionária ou estagnada por falta de vontade política, por falta da qualidade e da quantidade necessárias. Assim, as Reformas da Justiça em Angola, não têm pernas para andar, por culpa dos políticos que vêm na justiça o instrumento para oprimir mais do que libertar o cidadão. Embora a Constituição Angolana encorajasse a evocação dos Acordos e Tratados Internacionais para adequar o Direito Angolano no Direito Internacional (Artigos 13º e 26 da CRA) no interesse dos Direitos Fundamentais, os nossos Magistrados Judiciais e Judiciários ignoram na totalidade os Tratados e Convenções Internacionais ratificados por Angola, e consideram esses pacotes como insólitas ingerências em soberania angolana, assim coarcta-se a solidariedade jurídica internacional nas questões de violação flagrante dos direitos humanos em Angola.
EM SUMA:

OBSTÁCULO DE ACESSO À JUSTIÇA

  • Abuso de prisões arbitrárias e excesso de prisão preventiva e condições carcerárias precárias;

  • Maior dificuldades de acesso jurisdicional às pessoas que residem fora dos centros urbanos;

  • Pouca cultura de aplicação dos instrumentos internacionais de direitos humanos pelos operadores de justiça de acordo com o disposto do artigo 26 da CRA.


  • Interferências de tutela política no normal funcionamento da justiça.

  • Excesso de prisão preventiva em vários momentos instrutivos de processos;


  • Custos advocatórios elevados, para pessoas sem capacidade económica e financeira.

  • Falta um forte treinamento dos advogados para o patrocínio judiciário sobretudo orientado a solidariedade com as pessoas das zonas rurais e zonas periféricas das cidades empobrecidas pela desigual e discriminatória estrutura económica angolana.


  • Défice de democracia da nossa sociedade se repercute no autoritarismo da justiça contra o cidadão.

  • Falta de recursos humanos, qualitativos e quantitativos dispostos a trabalhar na proposta de uma justiça ao serviço do cidadão e não mais dos políticos que detém o Poder;


  • PGR está mais virada a acção penal, fraca acção de defesa e fiscalização da legalidade;

  • Apesar da melhoria dos meios é notória a morosidade processual;


  • Défice da tutela jurisdicional efectiva devido a politização da justiça.

  • Pobreza de muitas pessoas que não conseguem pagar as taxas advocatórias.


  • Grande morosidade Judiciária, seja por dificuldades institucionais, relacionadas à insuficiência do número de magistrados e de servidores, seja em razão da complexidade do sistema processual;

  • Falta de conhecimento por parte da maioria dos cidadãos de seus direitos e as instituições que os protege;


  • Muitas pessoas pensam que a justiça só existe quando têm litígios e transformam justiça em litigação quer penal quer civil quer ainda de relações interpessoais em família o no trabalho;

  • Desigualdade social forte impede o principio de igualdade perante a lei.


  • A corrupção e a falta de transparencia dificulta a justiça distributiva e a justiça social.

  • nas faculdades de direito decorrentes da cultura normativista, técnico-burocrática.


  • falta da revolução democrática da justiça orientada ao pluralismo, as liberdades e garantias fundamentais, a prestação de contas e ao primado da lei.

DESAFIOS
  • Pressionar Continuar os investimentos em termos de infraestrutura, capital humano e recursos materiais e financeiros, insistindo na formação técnico e cientifica e ética dos profissionais do ramo;

  • Necessidade de maior divulgação dos instrumentos internacionais de Direitos Humanos e da Lei em geral e do papel das instituições de justiça;


  • Pressionar para o funcionamento eficaz do sistema de justiça e o respeito dos direitos individuais é condição fundamental para paz e estabilidade nacional;

  • Melhoria do sistema investigação criminal no estrito cumprimento da legislação e compromissos regionais e internacionais;


  • Maior rigor na fiscalização da legalidade em sede da instrução penal e tratamento de reclusos;

  • Criar mecanismos de responsabilidade da criança em conflito com a lei tendo em conta os interesses da criança;


  • Criação de uma Comissão Nacional de Direitos Humanos Independente de acordo com a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e dos Princípios de Paris.

  • Expansão dos tribunais em todo território nacional e promoção e expansão dos mecanismos de resolução de conflitos extrajudiciais;


  • Maior acutilância na formação e mecanismos de revendição dos direitos humanos;

  • A existência de uma Constituição e a reforma do estado do direito é uma boa oportunidade para aperfeiçoamento da justiça e revendição dos direitos humanos.


ESTRATÉGIA PARA AS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL

  • Promoção e defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e contribuir no aperfeiçoamento do sistema de justiça;

  • Implementar programas para educação jurídica das comunidades;


  • Cooperar com as entidades públicas vocacionadas e com outras instituições, nomeadamente religiosas contribuindo na construção da justiça social;

  • Denunciar praticas que poem em causa os princípios enformadores de um estado democrático e de direito previstos na Constituição;


  • Promoção de centros extrajudicial de resolução de conflitos nas comunidades;

  • Advogar junto da Assembleia Nacional e do Executivo para a garantia e implementação do instituto da defesa pública;

  • Promover o instituto da acção popular;


  • Maior engajamento e cooperação com instituições nacionais públicas e privadas e organismos internacionais com responsabilidade na garantia dos direitos fundamentais;

  • Tomar iniciativas no sentido de prevenir actos de violação dos direitos fundamentais;


  • Criar um sistema de informação, documentação e coordenação que facilite o processo de monitorização das situações de violação dos direitos fundamentais;

  • Influenciar os ciclos académicos e outras instituições vocacionadas para a criação de centros de apoio jurídico as comunidades.

  • Continuação da promoção de estudos sobre a justiça tradicional.

OBRIGADO
*-Activista dos Direitos Humanos e Presidente do Forum Regional para o Desenvolvimento Universitário

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