A vida da magistrada luso-angolana, agora à frente do Ministério da Justiça do Governo de António Costa, tem sido marcada por um distanciamento em relação a Luanda. Desde o massacre de 27 de Maio de 1977, dia em que perdeu familiares, amigos e ilusões.
“Se o PS e os seus parceiros escolheram Francisca Van Dunem é porque reconhecem as suas competências e as suas capacidades”, respondeu o general e vice-procurador Geral da República de Angola, Hélder-Pitta Cruz, ao ser interpelado esta semana em Luanda pela nomeação da magistrada luso-angolana para o cargo de ministra da Justiça do Governo de António Costa, empossado esta quinta-feira.
É invulgar que um general angolano se pronuncie sobre as credenciais de um governante português. A nova titular da Justiça em Portugal suscita perguntas diferentes das que se colocam habitualmente a um recém-chegado ao poder executivo. A luso-angolana Francisca Van Dunem, que completou 60 anos há poucas semanas, no dia 5 de Novembro, a mulher do casaco branco que se impôs na posse do novo Governo, vive a que distância entre Lisboa e Luanda?
O recuo até 1977 pode ter a resposta, quando, com 21 anos, o destino lhe colocou nos braços um bebé de meses, o sobrinho “Che”, que criou desde então como filho. Nesse ano, o irmão mais velho, José, dirigente e combatente do MPLA, e a cunhada, Sita Valles, são assassinados em Angola. O episódio fica-lhe tatuado na alma. Milhares de angolanos são mortos, acusados de “fraccionismo”, conspiração e tentativa de golpe contra o então presidente Agostinho Neto, a 27 de Maio de 1977.
Nesse dia está em Lisboa, para onde tinha vindo aos 17 anos estudar Direito. Vai sabendo das notícias da repressão, da perda de parte da família, de muitos dos amigos. Perde-os e perde também muitas ilusões. Todos desaparecem à margem da Justiça em que acredita. “Não era como no Direito”, dirá mais tarde.
É com a ajuda dos pais, que Francisca Eugénia da Silva Dias Van Dunem começa a criar o sobrinho, João Ernesto, nascido em Fevereiro de 1977 – Ernesto, como Che Guevara, por escolha dos pais, José e Sita. Um sobrinho que mais tarde adopta formalmente como filho. “Ela ainda era uma rapariga. Penso que ainda estudava”, realça a procuradora Teresa Almeida, que trabalhou vários anos com Van Dunem, destacando a capacidade da colega em enfrentar as vicissitudes da vida.
Nascida em Luanda, a adaptação a Portugal não é fácil. Encontra uma cidade que lhe parece “cinzenta e velha”, por comparação à Luanda “rasgada, em progresso, aberta ao mar” (como dirá ao PÚBLICO décadas depois, em 2008). Passa pouco tempo até que o 25 de Abril chegue, e com ele o desejo da jovem estudante de voltar a casa – o que faz – para participar no “entusiasmo geral”. “Trabalhei na rádio, fiz recruta militar com um homem louco. Obrigava-me a rastejar e dizia ‘cumpra-se, a vitória é certa!’. Foi um período muito perigoso porque já tinham começado os conflitos entre os movimentos de libertação. Estava tudo muito radicalizado, uns contra os outros”, recordou, em 2009, ao Expresso.
Nas vésperas da independência, Mimosa, como é conhecida no círculo familiar, é uma entre muitos a esforçarem-se para que tudo esteja em ordem à meia-noite de 11 de Novembro de 1975, a hora da proclamação. “Todas as pessoas fizeram todo o tipo de trabalho. Lambi muito pó e na noite da independência estava tão cansada que me deitei às 10h30 e só acordei no dia seguinte”, contou ao PÚBLICO.
Carreira em Lisboa
A maioria dos que com ela se cruzaram profissionalmente não lhe poupam elogios. Mesmo os que, por princípio, não concordam com a escolha de um magistrado em funções para um cargo de Governo, como o advogado José António Barreiros, que foi seu professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “É uma profissional reservada, mas muito competente e muito empenhada”, resume o antigo presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, que defende “uma separação absoluta” entre as magistraturas e o poder político.
Tinha “um amor desmedido por aquela terra”, Angola, mas depois da independência a família insiste em que continue o curso e volte à Universidade de Lisboa. É onde o termina, em Julho de 1977, e por onde fica, como monitora de Direito Penal e Direito Processual Penal, nos dois anos seguintes, até iniciar a carreira na magistratura. Como delegada do procurador da República, passa pelos tribunais do trabalho, pelo de instrução criminal e pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP), todos em Lisboa. Entre 1985 e 1987 faz uma comissão de serviço na Alta Autoridade contra a Corrupção, a convite do procurador Rodrigues Maximiano – o falecido marido da ex-directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Cândida Almeida, sua amiga –, um magistrado que ocupará durante uma década o cargo de inspector-geral da Administração Interna.
Pouco tempo depois integra o gabinete do então procurador-geral da República (PGR) Cunha Rodrigues, continuando a assessorar o seu sucessor, Souto Moura. É enquanto está na procuradoria-geral que casa com o professor catedrático Eduardo Paz Ferreira, tinha 36 anos. Da ligação, nasce um filho, José, hoje com 17 anos, o irmão de “Che”.
Em 2001, Van Dunem sai da procuradoria para liderar o DIAP de Lisboa, onde permanece até 2007. É pela mão de outro procurador-geral, Fernando Pinto Monteiro, que o seu nome chega entretanto à corrida para procurador-geral distrital de Lisboa. O Conselho Superior do Ministério Público, o órgão de cúpula desta magistratura, vota os dois nomes propostos e a maioria dos membros prefere-a ao outro candidato. O marido era então membro daquele órgão, em representação da Assembleia da República, indicado pelo PS. E faz questão de não participar na votação.
Francisca Van Dunem torna-se procuradora-geral distrital de Lisboa em Fevereiro de 2007, um dos cargos mais importantes do Ministério Público, onde geriu durante oito anos o maior dos quatro distritos judiciais do país. É pioneira na criação de um site, que reporta a actividade do Ministério Público, compila legislação e publica relatórios com o balanço do trabalho realizado. Transparência é uma palavra de ordem. Sai agora para assumir a pasta da Justiça, no Governo liderado pelo socialista António Costa. Nos dias imediatos, o primeiro impacto foi o de ser a primeira mulher negra a ocupar um cargo ministerial em Portugal.
Em Angola, onde Van Dunem é o nome de uma família influente, reage-se a esta nomeação. “Numa sociedade como a de Portugal não seria fácil, não foi fácil de certeza absoluta, que uma mulher negra chegasse a fazer parte de um Governo”, diz o mesmo general e vice-procurador Geral da República de Angola. Que se diz também amigo da família.
Face ao regime de Luanda, a procuradora luso-angolana terá sempre aquilo a que Xavier de Figueiredo, director do África Monitor, newsletter sobre países africanos lusófonos, descreve como “uma ruptura autêntica, gerida com discrição”. Só volta a Luanda, em trabalho, em 1997, com o então procurador-geral da República, Cunha Rodrigues. “Durante 20 anos não consegui pôr os pés em Angola. Não fui capaz de me confrontar com um espaço com o qual tenho uma relação afectiva tão forte e onde me tinha acontecido um mal tão grande. É como ser morto pela própria mãe”, diria ao PÚBLICO.
Muito depois dessa viagem de reencontro com o passado estará, em 2007, na apresentação do livro Purga em Angola, um trabalho de Álvaro Mateus e Dalila Cabrita Mateus sobre o 27 de Maio; fará, já em 2014, a apresentação do livro Angola – Sonho e Pesadelo, de Adolfo Maria, antigo dirigente do MPLA, crítico do regime.
Um nome com quatro séculos
A viagem de 1997 terá contribuído para um início de reconciliação com uma terra à qual a continuam a ligar laços familiares, com raízes profundas. A nova ministra da Justiça descende de seculares famílias angolanas que cruzam africanos e europeus e que se cruzam entre si – Vieira Dias pelo lado da avó paterna, Van Dunem pelo do avó paterno, um jornalista e polemista deportado para Cabinda por ordem de Norton de Matos, então governador de Angola, no início do século XX. É portanto, por via do pai, um escrivão de Direito, que recebe o apelido.
Van Dunem, afirmou Francisca em 2009 ao Expresso, “é um nome tradicionalmente angolano, com quatro séculos. Vem de um holandês que trabalhou para a coroa portuguesa e se estabeleceu em Angola. Relacionou-se com uma angolana com quem teve uma larga prole. Os respectivos descendentes decidiram seguir o exemplo e há imensos Van Dunem”. Contudo, “nem todos os apelidos Van Dunem correspondem à linhagem original, pois não raras vezes os escravos tomavam o nome dos senhores”, refere um amigo de família, que solicita o anonimato.
Esta origem terá servido de mote a um livro cuja acção tem lugar durante a ocupação holandesa do século XVII, A Gloriosa Família, de Pepetela, com quem Francisca mantém um distanciamento motivado pela ferida do 27 de Maio. Em 2005, depois de o consagrado escritor ter refutado qualquer tipo de participação na repressão de 1977, assumindo apenas ter pertencido a uma comissão que seleccionou depoimentos de detidos, Francisca e João – irmão jornalista que trabalhou na secção portuguesa da BBC e no África Jornal, em Portugal, e morreu em 2013 – pediram mais explicações. Queriam saber se o escritor estava ou não “ao corrente da violência, da coacção, da tortura” usada para extrair depoimentos ‘seleccionados por uma comissão que integrou’”.
Na moderna Angola encontram-se vários casos de parentes seus, mais ou menos próximos, que ocuparam ou ocupam lugares de destaque, quer no MPLA quer nas instituições políticas.
Dois primos integram o actual Governo. O general Manuel Hélder Vieira Dias, “Kopelika”, ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente José Eduardo dos Santos e um dos homens mais influentes de Angola – um Vieira Dias. E José Vieira Dias Van Dunem, que ocupa a pasta da Saúde desde 2008, é filho de um irmão do seu pai, ou seja, primo direito.
“Tem boas relações familiares [em Angola], mas não políticas”, refere ainda o mesmo amigo de Francisca. “Terá ido duas vezes a Angola desde a independência [11 de Novembro de 1975]”, nota.
"Exigente e sabe mandar"
Discreta e afável, a independência e a isenção são-lhe reconhecidas por vários membros do conselho que tutela o Ministério Público, mesmo os indicados pelo PSD. Isso mesmo testemunha José Luís Bonifácio Ramos, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e membro do conselho superior durante seis anos, em representação da Assembleia da República, indicado pelo PSD. “Acredito que pode fazer um bom trabalho no Ministério da Justiça. Tem uma enorme capacidade de trabalho e um sentido de dever e de missão”, sustenta o professor universitário. Bonifácio Ramos descreve Van Dunem como uma low-profile que evita posições de ruptura, mas sublinha que tal não lhe retira outras capacidades: “é exigente e sabe mandar”.
A procuradora Teresa Almeida, que dirigiu durante vários anos uma secção do DIAP de Lisboa especializada na investigação de crimes de colarinho branco e também trabalhou com Van Dunem no gabinete do procurador-geral da República, concorda. “É generosa e preocupa-se com as pessoas com quem trabalha, mas toma decisões. Tem uma noção de disciplina e de hierarquia”, afirma a colega.
Exemplo disso, recorda um outro procurador, foram as diligências que Van Dunem levou a cabo para proteger o salário dos motoristas que trabalhavam nas procuradorias-gerais distritais da austeridade que alguns presidentes dos tribunais da Relação lhes queriam impor. Estes pretendiam retirar-lhes um subsídio que recebiam há muito e que somava duas ou três centenas de euros aos seus magros salários. “Ela promoveu reuniões e elaborou um documento que entregou na Direcção-Geral da Administração da Justiça, que comunicou aos tribunais da Relação que tinham que pagar o subsídio”, recorda.
Apesar disso preza a hierarquia. Por isso, não hesitou em participar do procurador João Guerra, quando este dirigia a investigação do processo Casa Pia e Van Dunem coordenava o DIAP de Lisboa. Em causa estava a recusa daquele magistrado em informá-la sobre a evolução da investigação, considerando que apenas reportava ao então procurador-geral da República, Souto Moura. Não foi a única fricção que tiveram. Quando o actual presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e o colega Jaime Gama pediram cópias dos depoimentos dos jovens que os implicaram no escândalo de pedofilia, declarações que consideravam difamatórias, o procurador João Guerra e os outros dois titulares do processo da Casa Pia indeferiram o pedido. Ferro Rodrigues impugnou a decisão através de um recurso hierárquico, mas o procurador João Guerra encaminhou a reclamação para o então procurador distrital de Lisboa, alegando que não dependia de Van Dunem.
Contudo, o procurador distrital de Lisboa declarou-se incompetente para conhecer a reclamação, endossando a sua apreciação para a coordenadora do DIAP, que acabaria por dar razão à reclamação. Van Dunem ordenou assim a incorporação dos depoimentos contra Ferro e Gama nos inquéritos resultantes das queixas-crime feitas pelos políticos, que acabaram por não conseguir levar a julgamento, por difamação, os menores que tinham feito aqueles relatos.
O advogado Barradas Leitão, o mais antigo membro permanente do Conselho Superior do Ministério Público, destaca-lhe outra qualidade. “É uma pessoa com muito bom senso, que mantém a serenidade mesmo nos momentos mais conturbados. Muitas vezes funcionava como conciliadora de várias posições”, diz. Barradas Leitão, indicado para o conselho primeiro pelo PSD e depois pela anterior ministra da Justiça, realça que partilha da concepção que Van Dunem tem do Ministério Público: “totalmente independente dos outros poderes do Estado, com alguma disciplina e uma hierarquia a funcionar de forma eficaz”.
Teresa Almeida está certa de que a ministra fará um bom mandato. “É uma pessoa que tem uma visão global do sistema de justiça. Não é corporativista. Tem a noção da importância da cooperação entre as várias profissões judiciais. E uma visão moderna de trabalho em equipa”, afirma a colega. E conclui: “Por isso, é uma pessoa rara”.
Um Governo com críticas a Angola
Quem conhece bem os governos de Angola e Portugal tem a convicção de que “algumas nomeações do novo executivo de Lisboa não são boa notícia para o MPLA”, recordando que “ministros como Augusto Santos Silva ou João Soares manifestaram reservas ou críticas ao regime angolano”.
No caso do ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva foi claro na oposição à entrada da Guiné-Equatorial na Comunidade de País de Língua Portuguesa (CPLP), patrocinada por Brasília e Luanda. “Os dois principais mentores da entrada da Guiné-Equatorial, Brasil e Angola, quando se chega aos ‘finalmente’, à altura da fotografia, uma a pretexto que tem uma campanha eleitoral já a decorrer, a Presidente Dilma Rousseff, e o outro não se sabe bem porquê, porque não tem de dar justificações a ninguém, o engenheiro Eduardo dos Santos, não põem os pés em Díli. De maneira que quem vai fazer de anfitrião do ditador da Guiné-Equatorial é mesmo o Presidente da República português e é mesmo o primeiro-ministro português”, disse em 22 de Julho de 2014 no espaço de comentário político que então tinha na TVI24.
Também são conhecidas as fortes críticas do titular da Cultura, João Soares, à natureza do regime angolano, que classifica como cleptocracia.
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