quinta-feira, 18 de junho de 2015

“O meu pai não é rotulável”, diz Nyeleti Mondlane


Moçambique


Nyeleti Mondlane vice-ministra dos Negócios Estrangeiros. Foto António Silva

Henrique Botequilha 2015-06-14 Moçambique


A filha do fundador da Frelimo Eduardo Mondlane recorda o pai numa entrevista única à agência Lusa, em que se mostra confiante no futuro do país, sob a liderança de Filipe Nyusi.

Nyeleti Mondlane, filha mais nova do fundador da Frelimo Eduardo Mondlane e atual vice-ministra moçambicana dos Negócios Estrangeiros, recorda o pai como “uma pessoa extraordinária em todos os sentidos” mas “não rotulável” ideologicamente. “Tenho grande dificuldade em rotular o meu pai”, disse Nyeleti Mondlane, em entrevista à Lusa, a propósito dos 40 anos da independência de Moçambique, lembrando o primeiro presidente da Frelimo como “um homem que buscou justiça para todos e queria ver o seu povo soberano”.

A afirmação ideológica marxista-leninista da Frelimo só se consolidou após a independência, a 25 de junho de 1975, mas Mondlane já sinalizava essa escolha pouco antes do seu assassínio em 1969. “Se quiserem rotular isso como progressista ou socialista, como queiram, mas acho que Eduardo Mondlane não é rotulável”, insistiu, assinalando as diferenças entre cada “timoneiro” da Frelimo, mas também um sentido comum de justiça e de representantes dos moçambicanos. “Não sei se algum movimento de libertação em África pode dizer que recebia armamento da União Soviética e tinha instrutores da China”, questiona Nyeleti Mondlane, salientando que as armas AKM e os chineses revelavam a “capacidade de diálogo” e a “visão ideológica” de um líder da Frelimo que encontrava naquelas diferenças “um fio comum que era a liberdade dos moçambicanos”.

“Se Moçambique está hoje no concerto das nações, com muitos amigos e grandes projetos de desenvolvimento, é porque tivemos uma linha muito clara e muito justa”, sustentou. Nyeleti Mondlane só se apercebeu da real importância do pai após o seu assassínio, num atentado com uma encomenda-bomba, no seu exílio na capital da Tanzânia. “Ganhei consciência da dimensão política e histórica do meu pai, infelizmente, depois de ele ser assassinado”, afirma a governante e membro do Comité Central da Frelimo, lembrando que, naquele período, era muito protegida por ser a mais nova de três filhos, rodeada por política e longas reuniões que não podia interromper em circunstância alguma.

Aos fins de semana, Mondlane levava a família à praia, uma das suas paixões, mais os camaradas disponíveis, além de gostar muito de correr e fazer ginástica, até àquele 03 de fevereiro de 1969 em que foi assassinado. “Vi pessoas de renome na nossa casa, com um sistema de segurança em volta delas, e nós fomos retirados para um lugar seguro”, recorda Nyeleti Mondlane, à data com sete anos, começando então a aperceber-se de que o pai “não era uma pessoa usual” e depois mais ainda, na escola da Frelimo no sul da Tanzânia, onde compreendeu “muito melhor quem era Eduardo Chivambo Mondlane”.

“Era uma pessoa extraordinária em todos os sentidos”, considera a filha, descrevendo o percurso de um homem que nasceu numa família pobre em Gaza e que foi desafiado pela mãe “a interrogar-se sobre a magia do homem branco”. Começou então a envolver-se com a Igreja Presbiterana, “abraçando teorias de libertação, numa “sede de descobertas” que já o tinha levado a aprender francês e depois, ainda adolescente, a produzir as suas primeiras reflexões escritas, que, segundo a filha, continuam a impressionar os académicos por uma profundidade precoce.

As mesmas caraterísticas evidenciaram-se como único negro na Escola de Ciências Sociais, na África do Sul, onde se tornou ativista até à sua expulsão, marcando o caminho para a continuação dos estudos em Portugal e, depois, nos Estados Unidos, onde conheceu a norte-americana Janet Johnson, sua futura mulher. “Os dois fazem uma fusão ideológica e emocional”, analisa a filha mais nova do casal, após consultar as sete mil cartas trocadas pelos pais, apontando a mãe como “uma peça fundamental no amadurecimento do pensamento de Eduardo”.

“Janet questiona Eduardo com certos assuntos e ele dá respostas que fazem com que abrace o sonho da liberdade para Moçambique”, observa Nyeleti Mondlane, acabando por deixar o “comodismo” da sua posição nas Nações Unidas e de professor universitário nos Estados Unidos e voltar para África.

Na escola da Frelimo ninguém tinha pai nem mãe

A escola da Frelimo na Tanzânia que Nyeleti Mondlane frequentou após o assassínio do primeiro presidente do movimento era um lugar de pais e mães ausentes e foi o primeiro confronto com o colonialismo em Moçambique, país que desconhecia. “Ninguém lá tinha pai ou mãe presente”, lembra a filha do fundador da Frelimo Eduardo Mondlane, morto num atentado em 1969 no seu exílio em Dar-es-Salam, e que foi encaminhada para uma escola em Bagamoyo, numa das bases do movimento na Tanzânia. Foi o primeiro contacto que Nyeleti Mondlane teve com a realidade de Moçambique, recordando o “enorme choque de aprender uma língua nova” – ela que, filha de uma norte-americana, falava inglês em casa – e de ser exposta, através dos colegas filhos de combatentes e dirigentes da Frelimo, aos motivos para os pais terem “abraçado a causa da independência”, contribuindo para “um momento singular” da sua formação.

“Não podíamos vir a Moçambique interagir com os familiares e com os amigos dos meus pais como uma família normal faria”, recorda.

Apesar de nunca ter visitado até então Moçambique, Nyeleti Brooke Mondlane diz ter sentido o peso do colonialismo por via da distância forçada. “Não podíamos vir a Moçambique interagir com os familiares e com os amigos dos meus pais como uma família normal faria”, observa a atual vice-ministra dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, salientando por outro lado “o peso e a tragédia do colonialismo” na forma das notícias de camaradas mortos e presos, em combate ou na clandestinidade, e que chegavam àquela escola na Tanzânia.

“Não fui uma vítima do colonialismo como quem viveu aqui e sentiu a falta de liberdade, mas acompanhei de perto”, afirma a filha do fundador da Frelimo, assinalando “aquela certeza na independência” e que, mesmo que a guerra pudesse levar muitas vidas, “um dia Moçambique haveria de ficar livre”. Nyeleti Mondlane destaca que estavam claros os objetivos da libertação moçambicana, incorporando “diferentes camaradas e experiências”, no dia-a-dia do movimento, e que foi deste ‘input’ de académicos, professores primários, enfermeiros ou gente sem formação alguma que resultou “uma organização muito bem estruturada” e com elevada aposta na educação e na saúde, a que somou a ajuda de povos de todo o mundo. “Eu tive professores de todos os continentes na escola secundária da Frelimo e havia um elevado sentido de disciplina”, prossegue.

Nyeleti Mondlane recorda também os ensinamentos que distinguiam os portugueses do colonialismo e essa separação era bem clara numa caricatura de uma publicação da Frelimo, em que uma mãe portuguesa chorava a morte do filho em Moçambique. “Naquela minha tenra idade, isso tocou-me”, descreve a antiga aluna da Frelimo, vendo na mesma caricatura que “aquela senhora, com o seu vestido abaixo do joelho, sofria tanto quanto a mãe moçambicana que perdeu o filho na frente de combate ou no xibalo [trabalhos forçados]”.

Após ter acompanhado a histórica viagem de Machel do Rovuma ao Maputo, Nyeleti Mondlane assistiu, com 13 anos, no estádio da Machava, em Maputo, à proclamação da independência de Moçambique, a 25 de junho de 1975. Até hoje conserva “um sentimento de muita emoção e alegria”, na qualidade de testemunha de “um momento único”, para mais vinda de uma família em que “os pais sempre estiveram dedicados à luta de libertação nacional”.

Para uma jovem, “era fácil, numa escala de grande ideologia, pensar que o inimigo era o português”, mas acabou por entender que “o povo português também era vítima”, uma ideia levada “mesmo a sério, num trabalho assíduo”, junto dos alunos, de que “o português até é amigo”. Mais à frente sentiu-se igualmente tocada ao ver Samora Machel, já como primeiro Presidente de Moçambique, a tratar o seu homólogo português, Ramalho Eanes, como “irmão”. Após ter acompanhado a histórica viagem de Machel do Rovuma ao Maputo, Nyeleti Mondlane assistiu, com 13 anos, no estádio da Machava, em Maputo, à proclamação da independência de Moçambique, a 25 de junho de 1975. Até hoje conserva “um sentimento de muita emoção e alegria”, na qualidade de testemunha de “um momento único”, para mais vinda de uma família em que “os pais sempre estiveram dedicados à luta de libertação nacional”.

Aquela madrugada foi marcada também pela “ingenuidade de quem pensava que não haveria mais dificuldades”, a par dos que mantinham “a incerteza dos desafios pela frente”, e ainda por assomos pessoais, no seu caso, traduzidos por “um pouco de tristeza porque o pai não estava presente”.

Este é o momento certo para uma geração nova no poder

Quanto ao presente, a vice-ministra dos Negócios Estrangeiros considera que chegou “o momento certo” para uma nova geração, representada pelo Presidente Filipe Nyusi, produzir mudanças em Moçambique, mas sem trair a génese do partido. “Não estou a ver um país atualizar-se e a fazer um rumo positivo com pessoas que estão no governo há muitas e longas décadas”, afirmou em entrevista à Lusa Nyeleti Mondlane, 53 anos, defendendo que “os novos timoneiros devem vir com um ‘background’ fresco, de outras gerações e este é o momento certo”.

A vice-ministra é um dos novos rostos do executivo liderado por Filipe Nyusi, que em janeiro assumiu, aos 56 anos, a Presidência da Republica, em substituição de Armando Guebuza, 72, que três meses mais tarde cedeu também a liderança da Frelimo para o novo chefe de Estado. “Nós somos de uma geração nova”, insistiu Nyeleti Mondlane, recordando que os seus pais integraram a chamada geração 25 de setembro (início da luta de libertação), fizeram “omeletas sem ovos” e a construção do que Moçambique é hoje.

A nova geração, segundo Nyeleti Mondlane, vai produzir a “renovação na continuidade”, pela mão de Nyusi, “uma pessoa muito madura que, desde sempre, abraçou o princípio de justiça e de unidade nacional”, e que no seu juramento colocou o povo como seu patrão, cabendo à Frelimo “assegurar que ele tenha todo o apoio para cumprir o seu projeto”. A filha mais nova de Eduardo Mondlane disse que a substituição de um chefe de Estado gera sempre a expetativa de mudanças e dele se espera” a renovação do projeto, sem nunca trair a génese do partido e do povo moçambicano”.


“O dinheiro é interessante, se usaram vias lícitas para acumular essa riqueza, parabéns para eles”, diz.

“Não estou a ver a minha Frelimo ser saudável e um partido que representa os moçambicanos sem diferença de opinião”, sustentou Nyeleti Mondlane, que não vê problema nenhum em ver camaradas do seu partido a enriquecer em projetos privados quando mais de metade da população permanece na pobreza. “O dinheiro é interessante, se usaram vias lícitas para acumular essa riqueza, parabéns para eles”, afirmou, embora sugira que essas pessoas “usem os recursos de que dispõem para ajudar o país a sair da pobreza”.

Moçambique, de acordo com a governante, “precisa de pessoas nacionalistas, que amem a sua pátria” e que pensem mais na comunidade “e menos no que ‘eu líder posso ganhar’”. Quarenta anos após a independência, Nyeleti Mondlane discorda que o país não tenha conseguido ganhos face à pobreza, lembrando que “a população explodiu”, mas que apesar disso foram dados “passos de gigante”, traduzidos pelo número de estudantes nas universidades ou por “um mundo de projeto de desenvolvimento”.

Embora considere que a pobreza é um problema real, sobretudo a urbana, a vice-ministra entende que os desafios têm de ser “permanentemente reavaliados”, recordando o que aconteceu com a “vibrante indústria do caju”, após a queda do muro de Berlim e a entrada das instituições de Bretton Woods no país, com o Banco Mundial a impor o fim do processamento daquele produto, “o que teve consequências graves para milhares de moçambicanos”. Este foi um caso em que Moçambique assumiu um erro e corrigiu-o e, para Nyeleti Mondlane, tem sido sempre assim.

“É verdade que houve instituições e países amigos que nos deram a mão, mas, se os moçambicanos não assumissem a necessidade de manter viva a ideia de que não somos uma única raça e não temos uma cultura homogénea, não se teria parado esta guerra”, refere Nyeleti Mondlane.

“Somos um país de referência porque soubemos buscar soluções para os nossos problemas entre nós”, declarou, argumentando que, no período em que “o mundo capitalista e o mundo não socialista complicaram a vida a Moçambique porque não concordavam com as suas políticas económicas”, o país soube ultrapassar as dificuldades, tal como na guerra civil de 16 anos. “É verdade que houve instituições e países amigos que nos deram a mão, mas, se os moçambicanos não assumissem a necessidade de manter viva a ideia de que não somos uma única raça e não temos uma cultura homogénea, não se teria parado esta guerra”, comentou.

O mesmo discurso é transferido para a atualidade, em que as ameaças à estabilidade política pela Renamo, principal partido de oposição, são interpretadas como diferenças de opinião que têm de coexistir sem afetar a unidade nacional. “Os desafios são comuns para todos e oxalá que todos compreendamos que a Assembleia da República, a casa do povo, é o lugar ideal para discutirmos e encontrarmos soluções para os nossos problemas comuns”, defendeu.



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*** Henrique Botequilha, da Agência Lusa ***


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