quarta-feira, 29 de abril de 2015

Poder Local Estendido: Constitucional ou Inconstitucional?

Quem fica no vale
jamais atingirá
o topo da colina.
Thomas Fuller

Tenho lido com bastante interesse os argumentos dos que se opõem ao projecto de Autarquias Provinciais depositado pela RENAMO na AR, sobretudo aqueles que tentam logo à partida, desmontar a intenção política  num inerente tecnicismo jurídico redutor. Eis uma singela contribuição em torno do assunto.
Em primeiro lugar, creio ser apropriado que se analise os argumentos de base da RENAMO face ao plasmado nos artigos 8 e 271 da Constituição. Com efeito, o legislador define no art. 8 que “...a República de Moçambique é um Estado unitário, que respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais...”. De igual modo, o legislador esclarece no art. 271 que o poder local “tem como objectivos organizar a participação dos cidadãos na solução dos problemas próprios da sua comunidade e promover o desenvolvimento local, o aprofundamento e a consolidação da democracia, no quadro da unidade do Estado Moçambicano...” e ainda diz no art. 272 que “...o Poder Local compreende a existência de autarquias locais...”.
Ou seja, aparentemente, se não houvesse classificação explícita de autarquia local, como referido no art. 273, não restaria qualquer dúvida, fosse do ponto de vista jurídico ou semântico, que este poder estaria apenas confinado ao contexto de vilas e cidades. No entanto, não foi assim que o legislador se norteou.
Senão vejamos, no art. 273 da Constituição, está explícito nos seus números 1, 2 e 3 que as autarquias locais tanto se aplicam a municípios, como a povoações. E mais, esclarece-se a diferença entre ambos, colocando os municípios a corresponderem à circunscrição territorial das cidades e vilas e as povoações à circunscrição territorial da sede dos postos administrativos. Mas a nossa realidade ainda não  reflecte isso.
Porque existem, desde 2013, 53 municípios em Moçambique, dos quais 33 foram criados em 1998, marcando o início de um processo de descentralização que deve levar ao estabelecimento progressivo de mais autarquias locais. Em 2 de Abril de 2008, o governo moçambicano anunciou a criação de mais 10 municípios, um por província, e o mesmo processo se repetiu em 15 de Maio de 2013. Os municípios são as capitais provinciais (10), a cidade capital, também com estatuto provincial (Maputo), todas as outras cidades (12) e três vilas em cada província (30).

Em momento algum, povoações puderam de acordo com a Constituição constituir-se em autarquias locais. E porquê?

Porque, em termos administrativos, Moçambique está dividido em províncias e estas em distritos, que por sua vez se dividem em postos administrativos e estes em localidades, o nível mais baixo de representação do Estado Central.  Ou seja, está explícito que povoação a ser elevada à autarquia local sê-lo-á de acordo com o número 4 do art. 273 que enuncia que “…a lei pode estabelecer outras categorias autárquicas superiores ou inferiores à circunscrição territorial do município ou da povoação...". Portanto, pode-se afirmar que a pretensão da RENAMO tem respaldo se o caminho seguido for pela povoação e não pelo município, pois que, sendo povoação a unidade atómica da nossa administração Estatal, então não há porque cercear juridicamente a possibilidade da AR estabelecer outras categorias autárquicas superiores, se esta for a vontade expressa das populações.
Em segundo lugar, é preciso compreender que o legislador estabeleceu uma espécie de  "tutela bitolada", para se ir calibrando a Lei consoante as circunstâncias no terreno se mostrem politicamente adversas ao legislador. E isso percebe-se claramente no art. 277, onde se impõe nos números 1,2 e 3 ferrolhos que amarram o poder local à tutela administrativa do Estado. Ou seja, pode-se hoje elaborar que para isso contribuiu o pavor da destruição do sacrossanto princípio frelimista da “Unidade Nacional” hoje simbolicamente trazida por uma “Chama da Nação”.
E no fundo é aqui onde reside o fulcro da questão que opõe a RENAMO e a FRELIMO, desde sempre, que é a partilha dos recursos de poder. Pois afinal, o que é que a RENAMO pretende com esta propositura à AR?
Essencialmente duas coisas. Primeiro, estender o conceito de poder local a uma área administrativa e geográfica maior apoiado no art. 273 e legitimado nas projecções do último mapa eleitoral, fazendo jus ao art. 272. Ainda assim, se dúvidas houvessem, o legislador teria poderes para agendar um referendo nas províncias em causa, para se saber se as populações desejam ou não maior autonomia do que a que actualmente possuem. O segundo aspecto levantado pela RENAMO é aumentar a "bitola" da tutela central, por outras palavras, levar à revisão pontual  do art. 277 da Constituição, para viabilizar o número 4 do art. 273.

Posto isto, analisemos então o que a FRELIMO e outros opositores da RENAMO (inclusive na sociedade civil) contrapõem. Essencialmente três ideias-fortaleza. Em primeiro lugar, que a proposta de lei "...apresenta vícios metodológicos, jurídicos e constitucionais..." (parecer oficioso de um membro da OAM na Beira). E que inclusive “...está destoada da Constituição da República (...) apontando a exclusão da zona sul e a província nortenha de Cabo Delgado, como exemplos de anomalias presentes na lei...(...) está quebrado o princípio unitário do Estado...”( Eduardo Chiziane, jurista e docente da UEM). E que também, é “incompreensível que alguém que não seja titular de um cargo de soberania faça nomeações de órgãos do Estado, visto que a Constituição não atribui competências ao segundo candidato mais votado...” (António Leão, jurista). Finalmente que “...projecto não deve entrar em vigor com base nos resultados das últimas eleições gerais, (...) pois aquele escrutínio visava a escolha do chefe de Estado, deputados da AR e das APs” (Albano Silva, jurista).
Efectivamente, há que reconhecê-lo, o projecto de lei da RENAMO enferma de algumas imprecisões que a técnica jurídica corrigirá, caso haja entendimento entre Nyusi e Dhlakama, como parecia ter começado haver a partir do momento em que, de acordo com André Thomashausen, Gilles Cistac foi convidado a mediar o diálogo com o líder da RENAMO. Como tal, a questão das nomeações pode ser facilmente contornada, com uma simples reformulação em que Dhlakama proporia nomes a Nyusi, e este confirmaria ou não as nomeações, recorrendo ao disposto na Lei. Havendo clima de diálogo, com as grandes questões confinadas em fórum próprio, não há porque os dois líderes não chegarem a um “gentleman agreement”. Assim foi no passado com Chissano e de certo modo resultou.
Por outro lado, a autarcização em Moçambique,  como sabemos, tem sido uma tendência caracterizada pelo gradualismo. Sendo o Estado, quem mais defende essa abordagem. Porque se assim não fosse, já teríamos municípios em todas cidades e vilas do pais. E quiçá nas povoações onde nunca a tivemos. Ora, nada obsta que as autarquias superiores propostas pautem também pelo gradualismo nas demais províncias excluídas da proposta da RENAMO, se essa for a vontade das populações da zona sul e de Cabo Delgado.
Finalmente, a advocacia moçambicana filiada na OAM não pode ser agir de forma incoerente no tratamento deste caso. Porque tendo em conta a precedente Lei 26/2007 de 16 de Novembro, que alterou o artigo 304 da Constituição da República cujo enunciado era“... é fixado o prazo de 3 anos, a contar da data de entrada em vigor da Constituição, para a realização de eleições das assembleias provinciais, previstas no artigo 142...” para “... as eleições provinciais, previstas no art. 142 da Constituição têm lugar até ao ano 2009 ...”, cai por terra o argumento dos que defendem que não se pode estabelecer correlação entre a proposta da RENAMO e o escrutínio eleitoral de Outubro de 2014, porque aquele visava a eleição do PR e deputados da AR e APs.
Ora, como podemos ver no caso da Lei 26/2007 de 16 de Novembro, a técnica jurídica foi claramente esquecida durante dois longos anos de inconstitucionalidade do art. 304 e a sua correcção em 2007 pior que um “remendo” pois que não há memória de um acto eleitoral ter que ser forçado por data fixa na Constituição, hoje entretanto extemporânea e inutilizando totalmente a finalidade do artigo em questão. E prova-se também que uma inconstitucionalidade se pode transformar em constitucionalidade sempre que as partes resolverem as questões políticas antes da sua transformação em leis, ou da emissão de pareceres precoces de técnica jurídica.  

Em segundo lugar, está a surpreendente posição de um académico alemão, que se diz amigo da RENAMO, e que arrasa por completo o documento proposto à AR nos seguintes termos: "...feito a pressa (...), fiscalmente discricionário (...), a interpretação sugere federalizar o Estado moçambicano pois província, não é poder local..." (Andre Thomashausen em entrevista ao SAVANA de 03/04/2015 ), argumento que reforça com artigo de opinião totalmente delirante-parvóide publicado na semana seguinte no mesmo jornal,  em que na essência defende que sendo “...o artigo 273 intitulado de CATEGORIAS DE AUTARQUIAS LOCAIS (...) se refere à dimensão “local” o que muito obviamente é contrário ao âmbito nacional ou regional...”. Ora, este argumentar de Thomashausen, a meu ver,  pretende apenas levar os incautos para um caminho que se assemelha ao da lenda da Esfinge de Gize. Quem não a souber decifrar será devorado por ela.  
Porque, das duas uma, ou Thomashausen deseja assumir maior protagonismo no assunto, assumindo o lugar providencialmente deixado vago por Cistac - mandatado por Nyusi, segundo ele próprio - que poderia tentativamente levar a RENAMO a uma armadilha diabólica com o consequente funeral politico do líder. Ou então, cumpre-se uma outra agenda como adiante me refiro.
Porque no que ao projecto da RENAMO diz respeito, seus argumentos são insuficientes para contrapor o número 4 do art. 273 no que tange às povoações. Por alguma razão ele tem insistentemente levado a discussão para o âmbito estanque dos municípios.

Em terceiro e último lugar, temos a posição da FRELIMO que de momento é uma incógnita. Se no consulado de Guebuza se defendia que "... a Frelimo não aceita aquilo que chama ideia de parcelamento do país (...) o povo não se deve deixar intimidar com as declarações de Dhlakama..." (Conceita Sortane a TV MIRAMAR)...” hoje em dia o posicionamento varia, tendo alguns militantes optado por explorar as falhas jurídicas do projecto da RENAMO via OAM, mas uma boa parte deles optou por fazer uma reflexão interna profunda em torno de uma aspiração popular que não é de hoje. E nem sequer poder ser assumido como assunto de um partido político só. É assim que não é de se desprezar a possibilidade da FRELIMO apresentar na AR uma contra-proposta muito mais elaborada que retire o protagonismo político da RENAMO, satisfaça a opinião pública e lhe possibilite resolver o assunto em definitivo.

Face ao exposto acima, eu arriscaria um breve diagnóstico da situação assente nas seguintes constatações. Aparentemente,  as posições divergentes entre a RENAMO e os opositores à sua proposta de lei são mais políticas do que jurídicas. Recentemente, publiquei umartigo intitulado "O Mérito em se discutir as Regiões Autónomas" em que alertava para o papel de três (3) importantes actores para os quais o projecto da RENAMO constitui uma maldição. Recordando:

I.                   Multinacionais => Revisão da sua Planificação Financeira Internacional => Lêr (Andre Thomashausen em entrevista ao SAVANA);

II.                Empresariado da CTA => Erosão de beneficios fiscais, financeiros e políticos por conta do OGE => Ler (posição oficial e oficiosa de membros da OAM);

III.             Funcionários Públicos => Erosão do "Aparelho" clientelista da FRELIMO => Lêr e ouvir (Conceita Sortane a TV MIRAMAR).

Eventualmente, poderíamos acrescer a estes posicionamentos uma noticia em que se alude o economista Carlos Nuno Castel-Branco ao SAVANA sobre a questão do 50% das receitas reverterem para autarquias provinciais na proposta da RENAMO. A meu ver, ela expressa somente uma preocupação que já lhe é recorrente. A extensão da chamada Acumulação Primitiva do Capital com base no OGE e as suas crescentes preocupacoes com a "Bolha". E prova-o com dados e tabelas que reuniu. Por essa razão, não devemos pura e simplesmente rotulá-la como anti-autarquias provinciais. Deveríamos quanto a mim, perguntar ao reputado economista se o actual modelo administrativo, fundado em larga medida em normas do regime colonial, e adoptado pelo governo da FRELIMO após a independência ainda serve para uma sociedade como a nossa...

Finalmente, já não tenho dúvidas de que a verdadeira questão de fundo trazida pela proposta de lei da RENAMO (os art. 277 e 278 da Constituição como empecilhos ao desenvolvimento nacional => Ver a corrente "disputa" entre Daviz Simango e Helena Taipo sobre a reabilitação do Canal do Chiveve na cidade da Beira) está sendo propositadamente conduzida pelos três actores acima nomeados para um tecnicismo jurídico que roça o ridículo face à corrente situação política pré-insurreccional do país. Dizer que autarquia "provincial" éde per se  uma definição excludente de "local", tendo em conta exposto no início deste artigo, é nada mais, nada menos, do que defender meras considerações de semântica, um problema certamente interessante para o Prof. Dr. Malaca Casteleiro, mas nunca para a OAM e muito menos para conceituados consultores de Direito Internacional. Mas, parece-me, eles querem mesmo levar-nos para esse foclore...como se estivessem numa sala de aulas a corrigir testes dos seus petizes ou a fazer traduções juramentadas. Valha-nos Deus!!!

Concluindo, gostaria de pontualizar o seguinte.  Em primeiro lugar, considero que o parecer jurídico da OAM é importante, como serão  também importantes os da AMECON e de outras agremiações profissionais de Moçambique, pois afinal a proposta da RENAMO é um projecto de governação transversal. Porém, espero eu, deverá ser o Conselho Constitucional a emitir parecer vinculativo sobre o assunto. E nisto, critico vivamente a bancada da FRELIMO e o sr. "Dr." Edson Macuácua em particular, por falta de tacto político ao não solicitarem - isso sim - uma fiscalização preventiva da Constituição ao Conselho Constitucional. Pois assim, evitar-se-ia que caíssemos novamente no cenário que antecedeu a retomada da via armada pela RENAMO => o recurso sistemático ao legalismo para humilhar e coartar a expressão política da Oposição. É que ficaria esclarecido este ponto prévio, balizando-se então a questão politica, para depois amadurecê-la e  recorrer à técnica jurídica para transformá-la em lei.
Em segundo lugar, é bom recordar aos amantes do Estado de Direito, que este país sempre foi governado pelo partido no poder. E como tal, uma boa parte dos dispositivos legais, administrativos e ate políticos reflectem esse diapasão. Em algum momento, houve cedências da FRELIMO que pareceram ser inclusivas às demais forças políticas. No entanto, não estaríamos ainda hoje a discutir no CCJC ou na AR várias propostas de "despartidarização do Estado" se isso fosse assunto ultrapassado. E por último, dizer que tanto a Alemanha Nazi, como o regime do Apartheid eram Estados de Direito. Simplesmente nunca foram verdadeiras democracias.
Em último lugar, reitero que o que a RENAMO apresentou na AR é uma proposta de trabalho essencialmente política com vista a uma alteração pontual do art. 277 e não uma interpretação avulsa do art. 273 da Constituição. Por essa razão, considero simplista que se faça grande eco a questões de forma, método, procedimento ou quiçá de incumprimento de compromissos já agendados com o grande capital e países doadores e se ignore a questão central da PAZ entre homens e mulheres de boa-vontade, que constituem a maioria da nossa população. Nem que seja por via de um referendo sobre as autarquias provinciais nas zonas cobertas pela proposta de lei da RENAMO.


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