Não é a justa reivindicação dos limpadores de ruas cariocas que remete à sujeira, mas o quanto se necessita deles ainda hoje, a caminho de se concluir uma década e meia do século XXI. E, veja, que no caso da Cidade Maravilhosa, o exército de trabalhadores ainda é pequeno para dar conta dos monturos que se avolumam apenas e tão-somente na Zona Sul.
Não à toa, em outubro último a prefeitura da cidade institui a lei da cidade limpa, impondo multas para quem for flagrado sujando as vias públicas. Com resultados certamente duvidosos para uma metrópole de mais de 6 milhões de habitantes e uma Justiça nacional marcada pela indústria dos recursos.
Se a proposta obviamente é a da conscientização da população, pode-se imaginar que anos levarão para que os resultados apareçam (aliás, lembra as rotineiras campanhas contra a dengue, cujos resultados são pífios). No curto prazo não adiantou, como ficou demonstrado nos dias de Carnaval, com a garizada parada e os dejetos se espalhando misturado ao odor de urina. Ah, bom, era Carnaval, com milhares de pessoas nas ruas, muita folia e liberalidade. Está feita a justificativa.
O exemplo carioca é mais emblemático por ser o lado B de uma cidade de belezas e encantos únicos no Brasil, cartão postal do país, e principal destino dos 6 milhões de turistas estrangeiros em 2013 – números (e a posição do Rio) inflados por causa da Copa das Confederações (junho) e Jornada Mundial da Juventude (julho), que deverão ser repetidos em 2014 com a Copa do Mundo.
A situação é calamitosa no Brasil todo. Das capitais, a única que pode se gabar desse civismo é Curitiba. No interior dos estados, as principais ilhas de limpeza urbana estão no Sul, e, em bem menor escala, no Sudeste.
Que se deixe de lado o chavão surrado pela intelectualidade. Não se trata apenas de julgar, como únicos motivos, o privilégio sócio-econômico-cultural dessas poucas regiões, com reflexo na educação. Não se nega que ajuda, como ocorreu com a Europa, mas quem conhece muitas cidades latino-americanas, com problemas sociais iguais ou piores que o Brasil sabe do que se fala aqui. Dê um pulinho a La Paz, na Bolívia.
Tampouco pode-se culpar a heterogeneidade da população, bem ao gosto do racismo pátrio, ou a menores proporções urbanas, para destacar os bons exemplos. Porto Alegre é menos heterogênea que o resto das capitais, exceto em relação a paranaense, é parte do Brasil rico e relativamente pequena na comparação com outras, mas também tem ruas emporcalhadas. Tanto que a partir de 1 de abril a Prefeitura Municipal seguirá o bom exemplo carioca e multará o mau cidadão.
Dezenas e dezenas de comunidades municipais do Brasil afora são iguais ou menores do que as do Sul, mas exibem uma urbanidade deplorável. Por sinal, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, também passou a tentar punir o cidadão recalcitrante.
O que pesou a favor de Curitiba, por exemplo, foi um certo tratamento de choque dado na população especialmente no final dos anos de 1980 e começo da década seguinte, na terceira administração municipal de Jaime Lerner (também foi depois governador do Estado duas vezes). Em paralelo às transformações urbanas da cidade, com uma infraestrutura e outras benfeitorias que a deixaram incomparavelmente à frente do Brasil, se optou por campanhas duras a favor do civismo.
Nada de propagandas cheias de gracinhas e musiquinhas que douravam a pílula, daquelas que tratam o brasileiro como cidadão de segunda categoria e que pode ficar deprimido quando tem o dedo apontado para o seu nariz. Iguais às campanhas federais de combate à dengue ou à Aids. Aqui, um parêntese: nos primeiros anos do alastramento da Aids, ganharam notoriedade as fortes campanhas de televisão na Inglaterra, mostrando pacientes terminais. As condições sociais do país dispensam comentários.
Vale dizer, em resumo, que em conjunto com o que o poder público proporciona de serviços de qualidade – nada mais que sua obrigação –, e uma boa dose de ousadia e coragem contra os maus hábitos, a coisa vai andar. Singapura também é outro bom exemplo, onde até cadeia é o destino.
Um pouco de autoritarismo? Quem quiser olhar por esse ângulo, que seja então.
O que não dá mais é para continuar nessa prática do esporte nacional predileto: fingir que não vê ou fingir que não faz mal nenhum. Como que a evitar de passar perto de condenar todas as variáveis do “jeitinho brasileiro”, a grande imprensa e a intelectualidade evitam discutir o tema. Preferem refletir apenas sobre a cidadania dos direitos, em épocas de reivindicações populares, mas não a cidadania dos deveres e obrigações.
E os governos, com seus bilhões de gastos estatais em propagandas politiqueiras inócuas, menos fazem ainda.
Fernando Rodrigues, em artigo no UOL (08/03/2014), bem lembrou que na esfera federal algumas campanhas apenas endossam aquele tipo de civismo ufanista, que tentam embutir astral na população, do tipo “o melhor do Brasil é o brasileiro”.
O ex-presidente Lula, o alter-ego da propaganda acima mencionada, há alguns anos ganhou um bombom de cupuaçu e jogou a embalagem no chão. O prefeito do Rio Eduardo Paes, em plena entrevista sobre a greve dos garis, foi filmado também praticando seu lado brasileiro – e se multou a si próprio, em penitência, diante do ridículo.
É isso, está arraigado no costume nacional.
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