quarta-feira, 27 de março de 2013

Afonso de Albuquerque (i)

 

Afonso de Albuquerque (i)

Escrito por Oliveira Martins


«Afonso de Albuquerque tinha perfeita noção de a que ponto é incompreensível a experiência da Ásia para quem não a conhece. Todavia, ia prevenindo o rei de que a fidelidade à palavra dada não tinha o mesmo valor na Índia que em Portugal e não procedia da mesma ética: «Cuida Vossa Alteza de segurar com boas palavras e seguros, sendo mouros senhores de muita gente, muitos cavalos e muito dinheiro»... Efectivamente, os Mouros só tinham respeito pela força. E Albuquerque continua: «Como chego com armada sobre seus portos, a principal coisa que logo trabalham é em saberem quanta gente temos, que armas trazemos. E se nos vêem força com que eles não possam, então nos recebem bem e nos dão as suas mercadorias e tomam as nossas de boa vontade, e se nos vêem fracos e poucos crede, senhor, que aguardam a derradeira determinação e se poem a tudo o que possa acontecer». E acrescenta: «A amizade que assentardes com qualquer rei ou senhor da Índia, se a não segurardes, tende por certo que volvendo-lhe as costas os tendes logo por imigos... Não ponhais o côvado na amizade dos reis e senhores de cá, porque não entrastes vos com querela em Índia para vos assenhorardes o trato deles com branduras nem concerto de pazes, nem vos faça nonguém lá [em Portugal] entender que é isto dura coisa de acabar e acabando-o que vos obrigara a muito».

(...) Albuquerque não receava criticar abertamente o rei que gastava demasiado na defesa do seu reino, devorador de todas as riquezas enviadas da Índia e donde nunca se recebia apoio eficaz. Que sucederia aos tesouros embarcados para Lisboa? Ainda nesse ano, Pero de Alpoim e Nuno Vaz de Castelo Branco levaram a D. Manuel rubis, uma espada e uma taça em ouro, tudo oferecido pelo rei do Sião e dois kriss [punhais] malaios incrustados de pedraria.

O governador lamentava profundamente os efeitos de uma tal distância escamoteadora das verdadeiras perspectivas da expansão portuguesa: «Vós desemparais a Índia [...] tendo a maior empresa que nunca nenhum princípe cristão teve nas mãos e mais proveitosa assim para o serviço de Deus como para o vosso nome e fama, e assim para haverdes as riquezas quantas ha no mundo. E deixai-la a misericordia de uns poucos de navios podres e de mil e quinhentos homens, a metade deles gente sem proveito. Não digo, senhor, mais que hei medo que não querais fevorecer isto em meu tempo por meus pecados velhos e novos...». E acrescentava ainda que: «além de serem pecados meus obrigada está a vossa consciência...» [...] «Ha Vossa Alteza de mister gente e armas e boas fortalezas... ou se nos deitarmos a dormir descansados sobre a verdade destes cães, com as portas das fortalezas abertas».

Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque: o Leão dos Mares da Ásia»).


«As coisas da Índia fazem grandes fumos!», Costumava dizer o novo governador. Mas que fumos eram esses? Eram a vaidade e os erros de tantos pigmeus que o gigante via formigar activamente, enceleirar, e, depois de gordos e ricos, pavonearem-se na corte, alegando serviços, com a bazófia de quem tudo sabia das coisas do Oriente. Fumos, com efeito, eram todos esses para o governador, que aprendera nas suas primeiras viagens, e agora levava já bem definido o seu plano. Levava sem o saber os seus fumos também: porque em fumo se havia de tornar o império efémero que construía na mente...

Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno, na armada de Tristão da Cunha; mas o génio do guerreiro não se reprimia com isso, nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando absoluto, para pôr em prática o seu plano gigantesco. Ele sabia demais que, no caos da Índia, cada qual trabalhava por sua conta e risco; e que, nesse vasto campo de batalha, as manobras não obedeciam ao mando de um general; iam ao acaso, segundo a audácia e o génio dos capitães. De Lisboa a Zangebar uma armada era um exército; no mar da Índia o exército fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era senhor de prosseguir, conforme o seu plano, na vasta empresa de saquear o Oriente. O plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um império.

A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introdução, arrasando, queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava) (1), na costa, acima de Zangebar, dirigindo-se a Socotorá - essa ilha que, junto à ponta extrema da África, pelo norte, o cabo de Jar-Hafun (Guardafui) - era vedeta sobre a entrada do Mar Vermelho, e a estação onde os navios de corso às naus de Meca se deviam abastecer e refrescar. Os árabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os a todos, sem ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida. Feito isto, dirigiu-se à Índia, destacando Albuquerque (impaciente quase até à rebeldia, durante a delonga da construção do forte) com seis navios e quinhentos homens, para a caça das naus, no Estreito.

Afinal, o capitão comandava! Afinal dispunha de uma falange sua! E resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha desapareceram, na sua viagem para a Índia, Albuquerque largou de Sokotrá [Socotorá] para a costa da Arábia, ao longo da qual foi subindo vagarosamente, assolando tudo. Formara o plano de começar por Ormuz as suas conquistas, marcando primeiro o limite por Norte e Ocidente, para mais tarde ir ao Oriente, pôr em Malaca o extremo do seu império. Ormuz, Sofala e Malaca são três quinas de um triângulo, cuja base mede 70 graus em longitude, cuja altura, até o vértice de Ormuz, conta 50 em latitude.

Foi a 10 [aliás a 20] de Agosto do ano de 507 que Afonso de Albuquerque largou de Socotorá, em direcção do Golgo Pérsico. A sua esquadrilha compunha-se de seis [«Seis naus, [...], e mais uma fusta [...], em que iam até 460 homens de peleja» (BARROS, Ásia, II, Liv. II., cap. I] navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a poderosa unidade que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança que todos tinham no seu génio e na sua sabedoria, e também nos mosquetes e artilharia das naus, tornavam poderosa como um ariete esta pequena divisão. Para nos servirmos da expressão de Francisco de Almeida, tratava-se apenas de combater com bestas; e não havia ainda que temer em Ormuz a artilharia dos rumes, nem os bombardeiros venezianos. A novidade de um engenho de guerra e a audácia de um grosseiro à antiga, iam levar a cabo uma empresa, de facto espantosa, como as de Alexandre ou de Ciro.

Alexandre Magno
Seguindo os exemplos desses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na mente, punha em prática os antigos meios orientais. Avançava no meio de um coro de aflições e mortes, precedido por uma coluna de incêndios, para que, ao chegar, a vanguarda do terror precipitasse os ânimos na abjecção. Assim ia ao longo da costa da Arábia assolando e devastando todos os lugares vassalos do suserano de Ormuz. Primeiro arrasou Kalhât (Calaite) «que é feito de casas de pedra, terradas e muitas cobertas de palha, casas espalhadas e mal armadas e fora do lugar à mão direita um palmar de palmeiras de tâmaras, onde estavam uns poços de água de que bebiam. O lugar assenta ao longo da água, e por detrás há grandes serranias de pedra viva, e no mar alguns zambucos e naus que vêm aqui carregar cavalos e tâmaras e peixe salgado» (G. CORREIA, Lendas).

Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a todos os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e mutilados, anunciar por toda a parte a fama do seu poder (2). Em Khor-Fakhan (Orfacate) reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou todos os prisioneiros. Entre eles, porém, estava um velho letrado persa, de longas barbas brancas, que vivia de admirar Alexandre, cujo livro possuía. O velho aplaudia o português, comentando o livro com as façanhas do novo herói; e aplaudia~se a si por ter ainda em vida assistido à ressurreição do filho de Olímpias. Aclamava o português, ou o grego, confundindo a realidade com a história; e de joelhos, adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe.

Em Makâte (Mascate), já entrada do golfo e quase fronteiro a Ormuz, tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrível desse herói que se aproximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha apareceu diante da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em resistir, por ver que os navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que cada um deles, com os seus canhões escondidos por detrás das amuradas, era um vulcão pronto a rebentar em lava, um inimigo pérfido cuja força latente não podia medir-se. Maskâte foi bombardeada. A mesquita onde os infelizes se tinham refugiado caiu a machado, e os cativos, mutilados, foram fugindo, chorando, reunir-se à gente da cidade escondida nas serras. Havia cadáveres em todas as ruas e o fogo posto começava a crepitar lavrando nos armazéns cheios de azeite e de melaço. As labaredas subiam, zumbia ao longe o clamor dos desgraçados, e à maneira que o terrível herói se alongava na praia com os seus para regressar aos navios, os mouros vinham ansiosos e cheios de medo ver se podiam ainda salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto das chamas vivas. Era em vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque prosseguiu deixando um rasto de sangue e cinzas. Ormuz estava próximo, e cumpria que a onda de terror, que fora crescendo, estoirasse agora de um modo pavoroso (3).

Ormuz
Ormuz era então a jóia mais preciosa da coroa da Pérsia. Chamavam-lhe a pedra do anel das Índias. Era a Londres oriental, onde todos os produtos do Oriente vinham desembarcar; de onde saíam nas longas caravanas que se dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartária e o Turquestão, por toda a Ásia do norte. Os armadores levavam por mar a Ormuz a pimenta, o cravo das Molucas, o gengibre, o cardamomo, os paus de Sândalo e Brasil, os tamarinhos, o açafrão, a cera, o ferro, as cargas do arroz de Dekkan [Decão], os cocos, as pedrarias, as porcelanas, o benjoim, os panos de Kambai [Cambaia], de Chala, de Deval, os sinabafos de Bengala. Aí vinham, de Adém, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o azougue, os bracados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da Europa, pelo caminho de Alexandria, a Suez, via do Mar Vermelho. Toda a Pérsia se abastecia em Ormuz dos géneros de fora; por Ormuz toda ela mandava importar os produtos indígenas. Os navios carregavam aí a seda e o almíscar, ruibarbo da Babilónia, e as récuas de cavalos da Arábia, tão queridos de Dekkan, em Kambai e nos Estados da contra-costa de Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges. Contra o arroz e os panos que levavam, os comerciantes traziam de Ormuz as tâmaras, o sal das suas colinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljôfar grosso muito procurado em Narsinga.

A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e prazer, uma corte de mercadores. As casas, recheadas de coisas preciosas, eram tesoiros ou museus, com paredes forradas de mármores, colunatas, eirados, pátios ajardinados e fontes preciosas. A vida custava aí caríssimo, porque o luxo absorvia todos os recursos naturais. A terra, uma salina, era estéril de si: tudo vinha da Pérsia, da Arábia, da Índia; mas os mercadores tinham defronte, além, na costa firme, as quintas e hortas, onde iam com frequência. Aí o plátano majestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cipreste meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e jardins de rosas, povoados de rouxinóis, abrigando nas encostas à sua sombra as vinhas férteis. Os pomares regados estavam coalhados de laranjeiras, de frutos de ouro e flores de neve perfumada; de macieiras, pêssegos, albocorques; de figueiras de formas extravagantes e amplas folhas; de granadas, como os frutos rebentados a sorrir nos seus grãos cor de rubi. No chão serpeavam as redes de hastes dos meloais, louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com peso os cachos de uvas preciosas de todas as cores. Por entre os bastos pomares e do seio dos jardins de rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira, com o seu turbante de folhas agudas, carregada de tâmaras.

Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a defendiam da luz e do calor, formigava uma população de várias raças, de cores diversas, ocupada em comprar, em vender; mais ocupada ainda em gozar a vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os perfumes inebriavam os sentidos, e acordavam todos os instintos sensuais. Vinham ali vender neve, de trinta léguas do interior da Pérsia. Amar era o primeiro de todos os comércios de Ormuz; e o persa, alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os desvairamentos da pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até aborrecidas em Ormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os haréns dos ricos, e os bordéis para o comum dos mercadores. Era uma devassidão abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam sempre seguidos por pajens, com toalhas e jarras de prata e bacias com água. Havia músicas e festas por toda a parte e as bandas de orquestras andavam constantemente nas ruas onde os mercadores expunham à venda o aljôfar em colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos estofos, e sobre as camisas brancas de algodão finíssimo vestiam-se túnicas de chamalote ou grã, cingidas por almejares com grandes adagas ornadas de ouro e prata e pedras preciosas. Os broquéis eram redondos, forrados de seda; os arcos acharoados, ou de corno de búfalo com cordas de seda. Usavam além do arco e da frecha, do escudo e da adaga, machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e tauxiadas de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um anel e a pedra Ormuz. Só a alfândega rendia meio milhão de xerafins (4).

As notícias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delícias. No porto havia, com efeito, uma poderosa armada que escondia as águas: eram centenas de naus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se arrestado os navios dos mercadores e do seio da frota estava a nau de Cambaia, a Meri, de mil tonéis, com gente basta e numerosa artilharia. Havia o melhor de duzentos galeões de remo com arrombadas de sacas de algodão tão altas que escondiam os remeiros. O persa que vestia os laudéis, em vez de corpos de aço, couraçava também de algodão os navios. As terradas alastravam o mar, carregadas de gente armada, com estandartes garridos «que era coisa fermosa para ver». Na terra, ao longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas músicas de trombetas e anafis. «As gritas do mar e terra eram tantas que parecia que se fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça desesperados, contavam como os seis, seis navios apenas portugueses! traziam no ventre uns monstros de fogo destruidores! E o soldão persa, aflito, não sabia de que modo receber a visita de Albuquerque e dos seus navios, que já estavam, terríveis mas quietos como um vulcão em paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Ormuz. Albuquerque exigia-lhe que abandonasse o persa (5), e se declarasse vassalo do português; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para que o deixassem em paz - quando o capitão, enfadado com as delongas e subtilezas, rompeu inopidamente o fogo. Começou a varejar em torno o estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de destroços, de naufrágios e de cadáveres que era horroroso de ver. Estava como um lobo no meio de um rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. Os fugidos nadavam num mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que os soldados matavam neles às lançadas e cutiladas. Da amurada das naus os grumetes e pajens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de vísceras flutuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim oitenta mouros. E enquanto a armada de Ormuz e as tropas do sultão eram chacinadas, desmanchava-se o lençol de barcos como uma teia cujas malhas se soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o mar sorvia uma atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam fugindo em chamas, como trombas de fogo correndo, vogando à mercê do vento «que era um grande espectáculo para ver». Ainda oito dias depois do sanguinário caso havia cadáveres boiando no mar, e os portugueses em lanchas ocupavam-se nessa particular espécie de pesca. A colheita era abundante, os cadáveres aos centos, os trajos ricos, e muitos os anéis, e alfinetes, as adagas e punhais tauxiados de ouro e prata com jóias engastadas. Denudados, vinham a bordo as famílias reconhecer os cadáveres e levá-los piedosamente, em lágrimas, aos seus sepulcros. A façanha fora tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos corpos as chagas das frechas, não havendo semelhante arma entre os nossos? (6) Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso tristemente revelador da confusão de combate com o novo Alexandre da Índia.

O pobre sultão de Ormuz, aflito, imediatamente acedeu a tudo: consentiu que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil xerafins de tributo. E deste concerto se fizeram duas cartas, uma em folha de ouro, a modo de livro, escrita em arábico com letras abertas a buril e suas brochas de ouro com três selos de ouro dependurados por cadeias; a outra em parsi, que era a linguagem comum da terra, e em papel com letras de ouro. E ambas estas cartas mandou Afonso de Albuquerque a el-rei D. Manuel.

Ormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque; mas isto mesmo desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam, cobiçosos de tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não compreendiam para que haviam de demorar ali, a construir uma fortaleza; quando, a não saquearem a cidade, mais valia partirem para o rendoso corso das naus de Meca, na boca do Estreito. A intriga insinuava-se, dizendo que o capitão-mor queria construir a fortaleza para si, e fazer-se rei de Ormuz, levantando-se contra o de Portugal: na Índia não havia ainda mais tradição do que a do saque marítimo, e o pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser compreendido. Nem em três anos, diziam, voltariam à Índia, perdendo ocasião de carregar as quintaladas que tinham de ordenado. A cobiça de mãos dadas com a violência e a cegueira agitavam perigosamente as guarnições. Albuquerque, impassível, prosseguia. De uma vez que lhe levaram um requerimento quando vigiava pessoalmente a obra da fortaleza, tomou-o assim dobrado como lho deram, e sem o ler meteu-o debaixo de uma pedra do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava cimentado com as queixas. Mas as lajes não pesavam bastante para as abafar, e recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20 000 xerafins pagos pelo de Ormuz, que, esperançado nestas desordens, confiado em promessas de sedição, e nos auxílios que o persa lhe enviava, ousou romper as hostilidades. Vieram com efeito o xaque Yar (Xaquear) trazendo consigo quatro mil árabes. Albuquerque estava num sério perigo, e outro qualquer perder-se-ia. Os capitães recusavam ir ao combate; mas ele, arrancando as barbas, aos punhados, ao capitão Nova, levou diante de si os soldados, sozinho, às cutiladas. Dos seis navios, porém, fugiram-lhe três, que vieram para a Índia contar ao vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam resistir ao seu mando terríbil, só lhes era dado fugir! Albuquerque retirou também de Ormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a empresa, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a Socotorá aprisionar as naus de Meca, e mais um navio que abandonou aí: nenhum podia suportar o férreo mando do herói.

Em Novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Ormuz, estava de regresso à Índia, em Cananor, onde abriu a carta de Lisboa, que lhe confiava o governo do Oriente. Nesse momento a violência do seu génio furioso arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados, queria sobretudo terminar o plano das suas conquistas; e foram necessários os rogos de D. Francisco de Almeida, a quem o filho acabava de morrer, para consentir na expedição naval de Diu. Só quando, meses depois, chegou à Índia a fidalga armada de D. Fernando Coutinho, puderam terminar as deploráveis contendas entre o vive-rei e o seu sucessor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu; e, cheio de bazófias, lançou-se na empresa em que achou a morte. Engolfados na matança e no saque, no meio de parte da cidade incendiada, os portugueses foram por sua vez trucidados, quando os inimigos os colheram dispersos e sem armas (in «História de Portugal», revisão e notas de J. Franco Machado, Guimarães Editores, 2007, pp. 189-195).

Afonso de Albuquerque

Notas:

(1) «Ao que se achou presente Tristão Álvares, que era feitor do capitão-mor, que não consentiu que ninguém tomasse nada e com João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram tudo ao capitão-mor, o qual logo tudo mandou quebrar e amassar e deu ao capitão e aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de prata e a Afonso de Albuquerque três, porque nunca estes capitães e fidalgos se apartaram para ir roubar» (G. CORREIA, Lendas, I, p. 677).

(2) Eis o que diz BARROS, quanto às represálias: «Aos quais Afonso de Albuquerque não quis mais perseguir, e se contentou com os lançar de suas casas e dar saco a suas fazendas, e per derradeiro mandar poer fogo a todo o lugar e a dez zambucos e três ou quatro naus que estavam no porto, no qual feito foram mortos três dos nossos e feridos vinte e tantos, e dos mouros se contaram pelas ruas setenta e tantos» (Ásia, 2.ª Déc., Liv. II, cap. I).

(3) O Autor segue a Gaspar Correia. Porém, Barros, Castanheda e até Góis, divergem profundamente no relato do sucesso, em particular no que se refere a atrocidades.

(4) O xerafim /as hrafi = 1 cruzado. Duarte Barbosa dá-lhe a equivalência de 300 réis.

(5) Segundo BARROS (loc. cit.) a exigência dizia respeito ao tributo que havia de pagar ao Rei de Portugal para que assim demonstrasse ser seu aliado na luta contra o Mouro.

(6) Deve dizer-se que as frechas ou setas eram arma entre os nossos. Quando, dias depois, dois embaixadores do rei de Xiraz vêm (já a cidade se confessava tributária de Portugal) «solicitar certo tributo que os reis de Ormuz já de muito tempo pagavam aos reis da Pérsia», Afonso de Albuquerque entrega-lhes como moeda do tributo «pelouros de ferro coado de artilharia e uns ferros de lanças e molhos de setas» (BARROS, Ásia, Década II, Liv. II, cap. IV).

Continua

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