Mia Couto e o exercício da
humildade
por Marilene Felinto
O principal escritor moçambicano diz que é mais velho do que o seu próprio país
Mia Couto, ou António Emílio Leite Couto, 47, uma das vozes mais originais da literatura de expressão portuguesa contemporânea, é também biólogo formado. Moçambicano de nascimento, filho de portugueses, vive em Maputo.
Militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) desde a sua fundação, com a qual lutou pela Independência contra Portugal e trabalhou durante o período da guerra civil, ele se diz hoje afastado da militância e saudoso da época em que a ex-marxista Frelimo, liderada por Samora Machel, "um homem a quem nós endeusávamos", cantava nas reuniões e congressos.
Em seu escritório de em Maputo, Mia falou sobre o exercício de humildade que é fazer literatura de ficção num país pobre como Moçambique e da influência da literatura brasileira sobre sua obra. "Aqui, o nascimento de uma literatura nacional é contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. Eu sou mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular."
Couto é autor de, entre outros, "Cada Homem é Uma Raça" (Ed. Nova Fronteira, 1990) e "A Varanda do Frangipani" (1996).
Por que você tem tantas profissões? Medicina, por exemplo, você estudou quantos anos?
Mia Couto: Medicina eu fiz até o segundo ano; estudei três anos, repeti o segundo ano e repetiria infinitamente o segundo ano. Eu tenho tantas profissões porque não quero ter nenhuma. É uma estratégia de não ser coisa nenhuma. Porque a partir do momento que eu me entendo a mim mesmo como sendo biólogo ou sendo escritor ou sendo jornalista ou sendo outra coisa qualquer, eu acho que fecho algumas janelas para o mundo e passo a ter uma relação que depois se encaminha sempre por aí, e eu não quero. Acho que é um empobrecimento.
É evidente que eu posso fazer isso por uma felicidade conjuntural. Não mereço isso, mas posso fazer isso. Estou vivendo a um certo tempo num certo lugar. Sobre a segunda pergunta, eu tinha uma grande paixão. Era escrever. Desde menino que eu tenho essa idéia que uma parte da minha alma só se revela na escrita. Então, eu tinha uma certa idéia de que poderia ser psiquiatra. Esse era o meu desejo.
Ia para a medicina para ser psiquiatra, mas depois apercebi-me de que a imagem que eu tinha de psiquiatria era muito romantizada. E aquilo que eu depois fui visitar era um mundo horrível, um mundo de prisão, e houve um grande desencantamento com isso. Segundo, eu era já membro da Frelimo, já era militante da causa da independência e isso para mim era muito mais empolgante.
Eu vivia isso muito mais do que qualquer outra coisa. Portanto, quando chegou o momento da pré-independência, 1974, um período de transição, a Frelimo pediu-me para que eu, como se dizia na altura, me infiltrasse. Havia uma campanha de infiltração nos órgãos de informação, que estavam nas mãos dos portugueses. E eu fui destacado para essa tarefa. Gostei muito de fazer isso, porque tinha idéia de que estava fazendo qualquer coisa ética, em nome do país.
Como acontecia essa infiltração?
Couto: Os quadros que a Frelimo pensava que podiam contrariar esse domínio que os portugueses ainda tinham, que era o período de transição, era importante, e eu acho que isso de fato, no conjunto, essa campanha de infiltração, como foi chamada, foi importante porque ajudou a criar consciência e a contrariar aquela visão que ainda era dominante de que Moçambique não só não tinha o direito como seria um grande desastre se este país chegasse à independência.
Mas o que você fez exatamente para se infiltrar?
Couto: Eu pedi um emprego. Estava no banco dos desempregados lá no jornal e fui escolhido entre vários candidatos. Pedi emprego para a direção de um jornal chamado “A Tribuna”. O termo “infiltrar” era usado naquela altura para significar algo como uma pequena formiga corroendo, subvertendo um edifício que estava completamente criado para fazer uma certa coisa. Então nós havíamos de contrariar esse domínio. Mas não foi uma coisa heróica porque a direção desse jornal era simpática à causa. Então eu não corri grandes riscos com isso.
Mesmo tão envolvido com uma causa política, você encontrou uma dicção muito original e não panfletária para sua literatura. Como conseguiu?
Couto: Acho que não separei as duas coisas. Não havia sequer essa preocupação em nós. O nascimento de uma literatura nacional é contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. A maior parte dos escritores moçambicanos foram em algum momento jornalistas na sua vida.
Eles são ou correspondem a um seguimento desse país que faz fronteira com a modernidade, eles são quem está abrindo portas para a modernidade, para o universo da escrita. E isso foi vivido na altura de uma maneira muito empolgante. Nós acreditávamos mesmo que fosse uma ilusão, acreditávamos que estávamos fazendo uma coisa ética, estávamos ajudando a criar uma nação. E isso tinha algum sentido.
Nós acreditávamos nisso porque eu sou mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular. Eu assisti o parto da própria nação a que pertenço e também fiz poesia panfletária. Confesso que fiz poesia panfletária, e fiz poesia a serviço do país, fiz a letra do hino deste país.
O hino nacional de vocês está mudando exatamente agora, não é?
Couto: É. Está mudando agora. Tem uma história até muito engraçada. Em 1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por “viva, viva a Frelimo”. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os moçambicanos todos.
Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa casa, fechou-nos lá e disse “vocês têm que sair daqui com várias propostas de hinos feitas”. E fomos fechados numa casa aqui na Matola e aquilo era ótimo. Aquilo não era uma prisão, era ótimo porque nós tínhamos comida, numa altura em que não havia comida. E, portanto, guardávamos comida para a nossa família quando nos iam visitar; tínhamos uma piscina na casa, vivíamos ali bem. E quando vinham as sirenes, nós corríamos para trabalhar.
Eles (a Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados. Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir, um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra.
Depois fez-se um concurso aberto e eu fiz parte do júri que acolheu essas propostas, mas eram todas muito fracas. E então alguém se recordou de revisitar aquelas propostas (da época de Samora), e foi uma daquelas que foi escolhida. Então, há razões que ajudam a triar essa idéia de que não é separável a literatura e a militância.
De todo modo, sua prosa de ficção hoje não é literatura de militância.
Couto: Certo. Esse foi um processo de tomada de consciência, por exemplo, que nasceu sempre em rupturas, em pequenos conflitos. Porque hoje eu tenho uma relação com essa militância já afastada, crítica, o que não quer dizer que não tenha essa militância. A dos outros mudou e a minha também, se calhar, mudou. E o primeiro livro de poesia que eu publiquei já foi numa briga, já foi numa zanga. Me irritava muito o fato de que toda poesia que falasse do eu, que falasse da intimidade fosse tida como uma poesia burguesa. e eu escrevi este primeiro livro em 1983, já como que em oposição a isto. Era uma poesia lírica e intimista, que falava do amor.
Teve medo de que a política engolisse o escritor?
Couto: Não, nunca sequer ocorreu-me de pensar nisso, porque enquanto a política foi uma coisa importante na minha vida, era importante porque eu me divertia, porque eu era aquilo. O processo depois de sedimentação, de diferenciação dessas duas áreas ocorreu tão naturalmente que não foi fruto de reflexão não, eu não me sentei a pensar no assunto.
Foi acontecendo e eu fui aprendendo que cada um, cada coisa tinha seu lugar. E também, eu acho que as circunstâncias de Moçambique ajudam muito, porque tu aprendes que ser escritor é uma coisa pequena, que faz muito bem ao ego. Os escritores pensam sempre que são muito importantes, que o mundo depende do que eles estão fazendo.
Aqui tu aprendes que não é tão importante, porque o universo dos que lêem é tão pequeno, o livro circula em áreas tão pequeninas que é uma espécie de aprendizagem de humildade que faz bem. Então tu tens, se queres contatar com outros, se queres ter outras áreas de comunicação, tu não podes depender do livro.
E por isso eu comecei a envolver-me com grupos de teatro, a trabalhar na rádio, na televisão, para ver se aquilo que eu queria dizer podia ter outros canais que não fossem só o livro. Aqui é muito importante que o escritor aprenda a não ser escritor, a deixar de ser escritor. Isso é um aprendizado que eu acho que nos faz muito bem a todos nós.
Você sempre estudou aqui? Nunca saiu? Você se diz muito influenciado pela literatura brasileira. Como foi?
Couto: Estudei aqui, e sempre vivi aqui. Eu acho que quando tomei consciência dessa contaminação pela literatura brasileira, eu já estava “doente”, no sentido bom. Acho que a minha geração e a geração anterior foram muito marcadas pela literatura brasileira. Havia uma certa redescoberta com Graciliano, com Jorge Amado, de que, afinal, a língua pode ser outra coisa.
Há quem esteja trabalhando a língua de outra maneira; e há outras culturas que pegam nesta coisa que é o português para trabalharem de outra forma. E não só. Também as temáticas políticas, no caso particularmente de Jorge Amado, eram coisas que coincidiam com uma época histórica aqui que era preciso pôr em causa. Certo tipo de valores. Então, quando eu começo a escrever, já havia toda esta envolvência, que era mais forte.
O ambiente literário de Moçambique estava muito mais fortemente ligado ao do Brasil do que ao de Portugal. E por uma outra razão também, a censura, que era muito forte em Portugal, aqui, nesse aspecto era mais tênue. Eram vendidos aqui livros que em Portugal eram proibidos. Então, era mais fácil. Tudo, até aquela revista “O Cruzeiro”, lembra? Era uma coisa que tinha aqui uma difusão enorme. Quando chegava aqui “O Cruzeiro”, era uma espécie de janela para um outro mundo que era muito familiar, e nós nos reencontrávamos, mais do que lendo as coisas que vinham de Portugal.
E a influência de Guimarães Rosa?
Couto: Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer.
Eu sabia que eu queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse “esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele, por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico.
Houve mais cruzamentos e trocas de livros no tempo colonial e fascista do que depois da Independência. Então, eu tinha este fascínio. Eu tinha que conhecer este João, este tal Rosa. E um amigo meu trouxe as “Terceiras Histórias”. E de fato foi uma paixão. Foi de novo alguém que dizia “isto pode-se fazer literariamente”. Mas, como tu dizes, eu já queria fazer isto, porque já estava contaminado primeiro por este processo que não é literário, é um processo social das pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam a coisa plástica e fazem do português o que querem.
É um processo muito livre aqui. As pessoas misturam português e como dizia uma camponesa da Zambézia, “eu falo português corta-mato”, uma prova de atletismo que se faz através do mato, de trilhas. E pronto. Eu não faria isto se não estivesse marcado antes de Guimarães Rosa, antes de Luandino Vieira, se não estivesse marcado por isto que é um processo que não é só lingüístico, não é, nem letrado.
Para sua geração, é como se fosse impossível ter vivido aqui sem se envolver com o movimento pela Independência e com a guerra civil?
Couto: Não havia outra possibilidade. Isso era uma espécie de solução existencial. Tu só eras se tu militasses. Nem nos colocávamos a questão de optar por outros caminhos. E nós casamos de tal maneira com esse período da história que eu agora fui para o Congresso da Frelimo e tenho muitas críticas. Eu acho que já não sou da Frelimo, porque acho que a Frelimo se converteu em outra coisa. Eles próprios confessam, já são sociais-democratas.
Qual a sua principal crítica ao partido?
Couto: Acho que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em empresários de sucesso. Eu já não estou lá. Mas quando a Frelimo cantava era uma coisa que me fascinava. Lembro da primeira vez que eu vi Samora Machel, que era um deus para nós, nós endeusávamos aquele homem. Era nosso Guevara.
E quando nós fomos como jornalistas ter com este homem na Tanzânia, no percurso, todos nós íamos pensando em como íamos impressionar aquele homem. Queríamos que ele gostasse de nós. E cada um pensava no que dizer: “olha, eu sei parte dos discursos dele de cor, eu sei citar coisas da Frelimo”. E quando chegamos ao pé dele, a grande impressão que eu tive é que ele era um homem de um grande magnetismo, uma pessoa que exalava esta aura, e era muito pequenino, baixinho, com uma grande energia. E a primeira pergunta que ele nos fez foi “algum de vocês sabe cantar?”. E nós não sabíamos.
Como intelectuais sabíamos fazer coisas políticas etc. Esta coisa depois me fez pensar. Ele nos disse: ‘como é possível um homem que não sabe cantar, que não sabe dançar nada? Como é que vocês podem ser pessoas se não sabem cantar nem dançar? O que é que sabem fazer?” Então, nós sabíamos fazer coisas que, de fato, eram um pouco chatas, não é? Um pouco aborrecidas. E este era o grande fascínio, a Frelimo cantava.
E agora, quando chego a este Congresso e começam aquelas canções e começam aqueles velhos militantes que eu conheci e que eram jovens, todos, naquela época, estava ali um pedaço da minha própria história, e estavam ali os mortos, que sempre nos criam este sentimento religioso com o mundo, não é? Porque estavam presentes esse mesmo Samora, esses heróis nacionais, estavam sendo enfocados nesse clima de celebração, quase de missa. E eu pensava assim, eu não posso deitar essa parte da minha vida fora, não posso. Porque, senão, fica um vazio. Se eu não estivesse atento e vigilante, estaria dizendo os mesmos “vivas”.
Então, estou disponível para a defesa de certas coisas, mas tenho que passar pelo crivo da minha consciência de hoje. Então, a Frelimo credenciou-se desta maneira: “nós somos o país”. De fato, a Frelimo eram todos os moçambicanos que comungavam com essa grande causa. E isso foi bom enquanto um momento de grande euforia, mas, depois, passou a ser uma coisa má, antes mesmo da morte de Samora Machel. Quando depois tu tinhas o que já não era um plano de gerar, era um plano de gerir, e quando tu tinhas que instalar modelos, fazer a governação, não era bom, para um sentido crítico que devia estar presente. Pensar sempre que nós somos o país, acomoda. E deixa de ser verdade.
A guerra teria surgido por conta do descontentamento de vários grupos com a Frelimo?
Couto: Num certo momento particular, eu acho que todo o povo moçambicano comungava com a Frelimo. Era o grande objetivo nacional. Mas depois o que surgiu foi que alguns dos dirigentes da Frelimo se tinham afastado por causa do exílio, por causa de serem formados na Europa, por causa de terem sido atraídos pelos modelos soviéticos de experiência e distanciaram-se culturalmente do país. E o que eles desconheciam eram suas próprias raízes. Aprenderam a desconhecer isso. E os grandes erros tiveram uma razão mais cultural do que política, se é que se pode separar assim.
Os modelos de governação que foram instalados, quer fossem primeiro socialistas quer fossem depois capitalistas eram deslocados de nós, não despertavam aquilo que era a cultura mais profunda, que era a alma mais funda deste país. Eu acho que quando se fala em África, e agora já posso falar em África, normalmente se fala em África de uma maneira tão simplista, como se fosse uma coisa só. Mas em geral em África não se dá a devida importância àquilo que é a religião, o fator religioso.
Não posso compreender os brasileiros se não compreender aquilo que determina muito da alma brasileira, que é a religião, a católica no caso. E eu não posso compreender a África se não compreender uma coisa que nem tem nome, que é a religião africana, que chamam às vezes de animista.
Os próprios africanos também não entendem que têm de procurar esse entendimento do que eles são, das suas dinâmicas atuais, a partir deste entendimento do que é a sua ligação com os deuses. E eu acho que a Frelimo falhou principalmente aí. A guerra que se instaurou foi também uma guerra religiosa, era uma guerra de identidade, à procura de identidade. E isso explica a violência que essa guerra assumiu.
A guerra começou depois de quanto tempo?
Couto: Começou quase logo. Não se sabia bem. Eu acho que isto nem se pode chamar guerra, isso que houve aqui com o nome de conflito generalizado, de violência contra um Estado central e centralizador. Em 1977 tivemos a guerra contra a Rodésia, o atual Zimbábue, uma guerra clássica, mas por baixo dessa guerra já estavam sendo gerados os conflitos que depois se encaminharam para essa coisa da Renamo e da guerra civil.
Que você acha que teve origem na religião?
Couto: Eu acho que teve várias origens, uma delas é a religiosa. A Frelimo era um regime marxista. Combatia a religião de frente. Não chegou a atuar como a União Soviética porque não conseguia, não tinha capacidade, mas queria. O que foi mais grave foi o que foi mais silencioso e que não era visível, porque era essa guerra contra esta religião africana, que é a religião dos antepassados. E aí não há uma instituição.
Esta religião africana não tem vínculo com o Vaticano, não tem um corpo separado. O líder religioso é ao mesmo tempo o líder político, é o que faz a gestão da terra, são os chefes das famílias. Essa agressão acabou por ter conseqüências que eram logo imediatamente políticas.
Você percebeu isso logo?
Couto: Não. Demorou Percebi isso quando já era demasiado tarde. É sempre assim que acontece na minha vida, quando percebo alguma coisa já é demasiado tarde. Eu acho que na altura só tínhamos sinais. Eu percebia que alguma coisa não estava funcionando bem, não só do ponto de vista religioso como do cultural.
Por exemplo, as missangas foram retiradas como objeto de troca pela comissão agrícola, porque se achava que aquilo não tinha importância, que aquilo não tinha o valor monetário que se acreditava, e isso foi um dos erros (A população rural usava missangas como moeda de troca, ao invés de dinheiro.0 Eu percebia que alguma coisa não estava bem. Era um poder que era cego em relação a tudo isso, por isso não deu resultado, mesmo que politicamente tivesse boas intenções.
Ninguém, na época, conseguiu enxergar isso?
Couto: No início, as vozes críticas eram poucas, depois as vozes que se levantaram, principalmente contra as aldeias comunais, que foi uma grande questão. A Frelimo queria organizar o campo de acordo com um modelo de povoamento de território retirado de outros países. A idéia das aldeias comunais foi um desastre. Tinha uma certa lógica da governação, a coisa centralizada. Não podes fazer hospitais e escolas em todos os povoados.
Não funcionou porque foi feita de uma maneira apressada, administrativa. Não foi feita por um esquema de sedução, em que se criavam atrativos, e depois as pessoas se juntavam voluntariamente a isso, não é? Aqui a terra é uma igreja, os mortos são enterrados. E aquele é o lugar onde eu me comunico com o divino, com o sagrado. O valor da terra aqui tem que ser também dimensionado nesse aspecto.
Neste projeto que eu a estava a mostrar, provavelmente é preciso retirar pessoas de dentro dessa região do parque. Há 20 mil pessoas vivendo ali. Mas quando tu falas nisso, tu tens que pensar que a pessoa está ligada à terra por este outro vínculo, que não tem substituição possível, não tem compensação possível, é a mesma coisa que chegar no Brasil e destruir uma igreja.
O poder que têm os chefes tradicionais, embora eu não goste do termo, “chefes tradicionais” no poder rural continua presente. Este é um país rural, um país dominado pela oralidade, é um país em que a governação moderna só administra uma faixa, um verniz. De resto, é governado por outras forças, por outras lógicas.
Esses chefes tradicionais têm o poder que têm porque lhes foi conferida esta tarefa de gerir a sua terra, e pelos deuses, eles são simples instrumentos dos deuses para administrar a terra. Quando tu tiras um indivíduo do seu lugar, ele perde esse poder. Portanto, o assunto se torna imediatamente político também, torna-se um assunto de poder. E por isso não podes mexer nesses mecanismos de qualquer maneira.
Havia muitos brancos nesse grupo da sua geração?
Couto: Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre foram uma minoria que não conta.
Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são portugueses?
Couto: Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos, e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira, e aquilo estava hierarquizado.
Era um sistema que discriminava mais os pretos. Mas criou-se uma porta que determinou a diferença na comparação com a colonização inglesa. Aqui tu podias, sendo preto, ser branco. Podias ser assimilado. E passar a ter privilégios que tua raça não tinha. Se abdicasses daquilo que seria tua cultura, tua religião, o teu nome, porque tinhas que mudar de nome.
O fator raça, era um fator, mas não era o fator. Era um fator pelo qual se podia transitar. Essa é a diferença do racismo inglês, que tu sendo preto não tens saída, és preto sempre. Podes ser educado como preto, mas lá no meio dos pretos. Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui discriminado assim.
No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça. Agora, de vez em quando, sim, há casos em que pontualmente, por razões de um certo oportunismo, por razões de quando a porta é estreita e só pode passar um. Aí lembram-se que eu sou branco e que portanto eu não seja tão representativo assim. Também tem uma grande força aquilo que falamos ontem, o modelo americano da ação afirmativa.
Isso tem força?
Couto: Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é preciso.
Você concorda com essa política?
Couto: Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu. Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder, sendo pretos, são brancos.
Neste sentido de que as pessoas que se sentem excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui devia defender a mim enquanto minoria, não é?
Mas você é o colonizador, não é?
Couto: Mas eu poderia ser chinês. Imagine que eu fosse chinês. Há moçambicanos chineses. São uma minoria ínfima, e eles podiam usar esse mecanismo da ação afirmativa para dizer “ah, eu também tenho que estar presente, que estar representado não sei onde”. E sucede o contrário disso.
Como seus pais reagiram na época da Independência? Eles pensaram em sair daqui?
Couto: Eles saíram, quatro vezes, sempre definitivamente e voltavam para Portugal, pois este já não era o país que eles conheciam, de que aprenderam a gostar.
Eles saíram por medo?
Couto: Não, por desencontros.
Como foram tratados os portugueses naquele momento?
Couto: Naquele momento havia 250 mil portugueses em Moçambique e saíram quase todos logo nos primeiros dois, três anos da Independência. Saíram em massa. Chamavam de o período dos contentores (“contêineres”), porque eles metiam todas as suas coisas, os seus pertences, toda a sua vida, naqueles grandes caixotes e iam de barco ou de avião.
Teus pais saíram também?
Couto: Não, nesse período, não. Na minha casa, eu tive sorte, porque quando meu pai saiu de Portugal, também já saiu por razões políticas, de oposição. Meu pai colaborou na medida que ele pôde com a Independência de Moçambique. Ele sempre nos dizia “vocês são outra coisa, são deste país, é como se eu tivesse dado filhos para uma terra que já não é minha. Ele sabia que isso ia acontecer. A minha mãe também.
São quantos filhos?
Couto: Três. E todos nós nos engajamos e demos a vida, arriscamos algo mesmo por este país, e lutamos contra aquilo que era Portugal. Nesse primeiro momento, havia uma ignorância profunda, os portugueses que viviam aqui genuinamente acreditavam que isto era Portugal. E foi uma surpresa. Para eles, eles foram vendidos, é isso que eles diziam.
Houve uma revolta, logo no período de transição para a Independência. Nesse mesmo dia houve uma revolta que se chamou "sete de setembro". Ficou conhecida assim. Por exemplo, minha casa foi invadida, foi partida, porque achavam que meu pai, porque era um jornalista que escrevia coisas a favor da Frelimo, era um traidor. Então, a idéia era que nós, os portugueses, nós, os brancos, estávamos sendo traídos, e os principais traidores, como eles não reconheciam na outra raça a capacidade de ser sujeito, eram os brancos.
A sua raiva toda era principalmente contra os de sua própria raça, que eram tidos como traidores que venderam o país à Frelimo. Aí tivemos que fugir. Tivemos que levar meu pai para a Beira, e ele ficou lá um tempo, até que a Frelimo tomou conta da situação novamente. Mas isso era uma situação excepcional. O resto dos portugueses, não é que eles tenham sido maltratados, mas eles achavam que o país não estava preparado, que os moçambicanos não estavam preparados, que vinha um desastre, que eles estavam dentro do Titanic e antes que aparecesse o iceberg eles tinham que sair.
E fugiram. Era inevitável. Hoje em dia há aquela tendência de tentar corrigir isso, quer dizer, de tentar retificar a história. Alegam que talvez se tivesse tido uma política de transição maior. Isso não é verdade. Foi uma transição bem feita. Não houve violência, exceto nos casos de que já falei, e que foi provocada por eles mesmos.
Você vive em um país em que 50% da população não sabe ler nem escrever. As edições de livros têm tiragens baixas, mil exemplares em média. Como isso te afeta?
Couto: A média chega a 3 mil exemplares. Obviamente é triste que haja esta condição de que a maior parte das pessoas não sabe ler ou não tem acesso aos livros. Por outro lado é um desafio que te obriga a perceber, como eu já disse antes, que tu tens que ter outros canais, saber usar outros canais. E eu acabo por transformar isso que é uma coisa negativa em uma coisa que é positiva para mim.
Por exemplo, a minha passagem pelo teatro foi uma das melhores escolas que eu tive, eu escrevia para um grupo de teatro, ao qual pertenço há 14 anos. E escrever para eles, e depois perceber como é que as pessoas reagiam ao ver as peças de teatro aqui na cidade, nas zonas rurais, quais eram as diferenças, me ensinou muito sobre o que é se comunicar com os outros.
Portanto, tu tens esse desafio, tu tens que perceber que a grande fronteira não é entre o analfabetismo e o alfabetismo, é entre o universo da escrita e o universo da oralidade. Esta é a grande fronteira. E o universo da oralidade não é uma coisa menor, é uma grande escola, é um outro sistema de pensamento. E é neste sistema de pensamento que eu aprendi aquilo que é mais importante hoje para mim.
Inclusive a maneira como eu escrevo nasce desta condição de que este é um país dominado pela oralidade, um país que conta histórias através da via da oralidade. E hoje eu me sinto assim, eu não tenho nenhum território, neste aspecto de quando algo me fascina. Por exemplo, eu leio Guimarães Rosa, eu leio 50 vezes a mesma página, porque aquela escrita me atira para fora da escrita, me empurra para fora da página, porque me acendem vozes dos contadores de histórias da minha infância.
Você acha que falta em Moçambique um escritor, uma voz negra?
Couto: Tenho uma opinião dividida. Por um lado, eu acho que não tem nenhum sentido falar em raças quando tu falas em literatura. Obviamente quando tu perguntas "falta", é "falta" para quem? Para a própria literatura? Essa seria a grande questão. Será que a literatura vive desse tipo de representações? Por sexo, por raça? Mas, por outro lado, eu entendo que o país precisa se rever naquilo que é alguém que constitui sua raça dominante. E entendo que isso é um processo que tem que acontecer e já está acontecendo, não pode acontecer administrativamente, não podes promover.
Obviamente os grandes escritores de Moçambique são vários, estão surgindo e são todos de raça negra. Eventualmente haverá um mestiço. Porque não há nenhuma hipótese. Só para se ter uma idéia, se os brancos moçambicanos forem 5 mil, já são muitos. Em um país de 17 milhões de habitantes, isto não tem significância nenhuma, este é um grupo condenado à extinção. Os mestiços serão quantos? 30 mil? 40 mil?
Existe miscigenação aqui?
Couto: Depende das regiões. No litoral, sim. No interior, não. Em algumas províncias onde a presença portuguesa é mais antiga, como a Zambézia ou Inhambane, há mais. Mas o problema para mim, para fechar esse trecho sobre a literatura, eu acho que acontece é que mesmo os pretos que estão afirmando-se como grandes nomes da nossa literatura são mulatos do ponto de vista cultural, são todos eles urbanos, nasceram na língua portuguesa já, é raro o que sabe falar uma língua que não seja o português. É assim que eu também me sinto. Não me sinto como um representante da raça branca, eu sinto que sou um mulato, culturalmente.
Você já leu alguma crítica sobre a maneira como você representa o negro na sua literatura? Sobre como o realismo mágico, que você utiliza muito, facilitaria essa tarefa?
Couto: Acho que isto é um disparate. O escritor é um construtor de mundos inventados. Desse ponto de vista aí, eu nunca deveria escrever sobre mulheres, por exemplo. Ou uma mulher nunca poderia construir personagens masculinas. No fundo, a literatura é a negação disso mesmo. A negação da nossa condição, um urbano não poderia escrever sobre o mundo rural.
O Guimarães Rosa, que era um urbano, não podia escrever sobre o sertão brasileiro. Eu, quando escrevo, na minha cabeça, estou construindo personagens, e obviamente que são negros, quase todos eles, a não ser que eu identifique-me de outra maneira. Porque este é o meu mundo, é o mundo que eu vivi, que eu nasci e, por osmose, quando chego à Europa fico admirado primeiro por uma sensação de ver tantos brancos.
É a primeira reação que eu tenho, de que não estou no meu lugar, porque há muitos brancos. Então, naturalmente na minha cabeça, quando construo um personagem, ele surge negro, porque sou moçambicano. Mas pode surgir outra coisa, claro. Acho que é um disparate ler um livro assim.
E por que o apelido "Mia"?
Couto: Por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu, lá fora, sou sempre esperado como preto ou como mulher.
Certa vez, numa delegação do Samora Machel, que foi daqui visitar Fidel Castro, eu fui o único homem na vida a quem Fidel Castro deu saias e colares e brincos, pensando que eu era mulher. Ele deu prendas a todos, e a minha caixa. Isso me diverte. Essas questões de identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo.
Você acha que deveria haver mais contato entre o Brasil e Moçambique?
Couto: Tem que forçar nas áreas que é preciso forçar. Mas nas nossas áreas algumas coisas podem depender de pessoas. Eu não acredito nas instituições. Nesse aspecto as instituições vão seguir caminhos divergentes. O Brasil será cada vez mais América e nós seremos África. E ainda por cima nós somos África voltados para o outro lado.
Nós estamos de costas, geograficamente, para o Brasil. Então nós já somos Índia, já somos Oriente. Temos que nos inserir numa outra coisa, num outro universo. Agora acho que pelo fato de as relações históricas e culturais, estas que fizeram com que eu encontrasse um irmão, eu falei em Guimarães, mas há outros importantes como Caetano, Chico Buarque, que tiveram uma influência enorme.
O Chico, o Caetano, o Gilberto, essa gente nos fez ter orgulho desta coisa. Porque até certa altura até tínhamos vergonha de falar a língua do colonizador, a língua dos mais pobres mostrando que essa língua era rica e brilhava quando era cantada. Então isso tem que ser continuado, e isso sempre foi feito contra a corrente, sempre foi feito por pessoas e não por instituições.
Trechos desta entrevista foram publicados no caderno “Mundo” da “Folha de S. Paulo”, em 21 de julho de 2002.
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Marilene Felinto é escritora, autora de "O Lago Encantado de Grongonzo", "Postcard" e "Jornalisticamente Incorreto". É também colunista da "Folha de S. Paulo".
por Marilene Felinto
O principal escritor moçambicano diz que é mais velho do que o seu próprio país
Mia Couto, ou António Emílio Leite Couto, 47, uma das vozes mais originais da literatura de expressão portuguesa contemporânea, é também biólogo formado. Moçambicano de nascimento, filho de portugueses, vive em Maputo.
Militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) desde a sua fundação, com a qual lutou pela Independência contra Portugal e trabalhou durante o período da guerra civil, ele se diz hoje afastado da militância e saudoso da época em que a ex-marxista Frelimo, liderada por Samora Machel, "um homem a quem nós endeusávamos", cantava nas reuniões e congressos.
Em seu escritório de em Maputo, Mia falou sobre o exercício de humildade que é fazer literatura de ficção num país pobre como Moçambique e da influência da literatura brasileira sobre sua obra. "Aqui, o nascimento de uma literatura nacional é contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. Eu sou mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular."
Couto é autor de, entre outros, "Cada Homem é Uma Raça" (Ed. Nova Fronteira, 1990) e "A Varanda do Frangipani" (1996).
Por que você tem tantas profissões? Medicina, por exemplo, você estudou quantos anos?
Mia Couto: Medicina eu fiz até o segundo ano; estudei três anos, repeti o segundo ano e repetiria infinitamente o segundo ano. Eu tenho tantas profissões porque não quero ter nenhuma. É uma estratégia de não ser coisa nenhuma. Porque a partir do momento que eu me entendo a mim mesmo como sendo biólogo ou sendo escritor ou sendo jornalista ou sendo outra coisa qualquer, eu acho que fecho algumas janelas para o mundo e passo a ter uma relação que depois se encaminha sempre por aí, e eu não quero. Acho que é um empobrecimento.
É evidente que eu posso fazer isso por uma felicidade conjuntural. Não mereço isso, mas posso fazer isso. Estou vivendo a um certo tempo num certo lugar. Sobre a segunda pergunta, eu tinha uma grande paixão. Era escrever. Desde menino que eu tenho essa idéia que uma parte da minha alma só se revela na escrita. Então, eu tinha uma certa idéia de que poderia ser psiquiatra. Esse era o meu desejo.
Ia para a medicina para ser psiquiatra, mas depois apercebi-me de que a imagem que eu tinha de psiquiatria era muito romantizada. E aquilo que eu depois fui visitar era um mundo horrível, um mundo de prisão, e houve um grande desencantamento com isso. Segundo, eu era já membro da Frelimo, já era militante da causa da independência e isso para mim era muito mais empolgante.
Eu vivia isso muito mais do que qualquer outra coisa. Portanto, quando chegou o momento da pré-independência, 1974, um período de transição, a Frelimo pediu-me para que eu, como se dizia na altura, me infiltrasse. Havia uma campanha de infiltração nos órgãos de informação, que estavam nas mãos dos portugueses. E eu fui destacado para essa tarefa. Gostei muito de fazer isso, porque tinha idéia de que estava fazendo qualquer coisa ética, em nome do país.
Como acontecia essa infiltração?
Couto: Os quadros que a Frelimo pensava que podiam contrariar esse domínio que os portugueses ainda tinham, que era o período de transição, era importante, e eu acho que isso de fato, no conjunto, essa campanha de infiltração, como foi chamada, foi importante porque ajudou a criar consciência e a contrariar aquela visão que ainda era dominante de que Moçambique não só não tinha o direito como seria um grande desastre se este país chegasse à independência.
Mas o que você fez exatamente para se infiltrar?
Couto: Eu pedi um emprego. Estava no banco dos desempregados lá no jornal e fui escolhido entre vários candidatos. Pedi emprego para a direção de um jornal chamado “A Tribuna”. O termo “infiltrar” era usado naquela altura para significar algo como uma pequena formiga corroendo, subvertendo um edifício que estava completamente criado para fazer uma certa coisa. Então nós havíamos de contrariar esse domínio. Mas não foi uma coisa heróica porque a direção desse jornal era simpática à causa. Então eu não corri grandes riscos com isso.
Mesmo tão envolvido com uma causa política, você encontrou uma dicção muito original e não panfletária para sua literatura. Como conseguiu?
Couto: Acho que não separei as duas coisas. Não havia sequer essa preocupação em nós. O nascimento de uma literatura nacional é contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. A maior parte dos escritores moçambicanos foram em algum momento jornalistas na sua vida.
Eles são ou correspondem a um seguimento desse país que faz fronteira com a modernidade, eles são quem está abrindo portas para a modernidade, para o universo da escrita. E isso foi vivido na altura de uma maneira muito empolgante. Nós acreditávamos mesmo que fosse uma ilusão, acreditávamos que estávamos fazendo uma coisa ética, estávamos ajudando a criar uma nação. E isso tinha algum sentido.
Nós acreditávamos nisso porque eu sou mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular. Eu assisti o parto da própria nação a que pertenço e também fiz poesia panfletária. Confesso que fiz poesia panfletária, e fiz poesia a serviço do país, fiz a letra do hino deste país.
O hino nacional de vocês está mudando exatamente agora, não é?
Couto: É. Está mudando agora. Tem uma história até muito engraçada. Em 1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por “viva, viva a Frelimo”. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os moçambicanos todos.
Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa casa, fechou-nos lá e disse “vocês têm que sair daqui com várias propostas de hinos feitas”. E fomos fechados numa casa aqui na Matola e aquilo era ótimo. Aquilo não era uma prisão, era ótimo porque nós tínhamos comida, numa altura em que não havia comida. E, portanto, guardávamos comida para a nossa família quando nos iam visitar; tínhamos uma piscina na casa, vivíamos ali bem. E quando vinham as sirenes, nós corríamos para trabalhar.
Eles (a Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados. Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir, um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra.
Depois fez-se um concurso aberto e eu fiz parte do júri que acolheu essas propostas, mas eram todas muito fracas. E então alguém se recordou de revisitar aquelas propostas (da época de Samora), e foi uma daquelas que foi escolhida. Então, há razões que ajudam a triar essa idéia de que não é separável a literatura e a militância.
De todo modo, sua prosa de ficção hoje não é literatura de militância.
Couto: Certo. Esse foi um processo de tomada de consciência, por exemplo, que nasceu sempre em rupturas, em pequenos conflitos. Porque hoje eu tenho uma relação com essa militância já afastada, crítica, o que não quer dizer que não tenha essa militância. A dos outros mudou e a minha também, se calhar, mudou. E o primeiro livro de poesia que eu publiquei já foi numa briga, já foi numa zanga. Me irritava muito o fato de que toda poesia que falasse do eu, que falasse da intimidade fosse tida como uma poesia burguesa. e eu escrevi este primeiro livro em 1983, já como que em oposição a isto. Era uma poesia lírica e intimista, que falava do amor.
Teve medo de que a política engolisse o escritor?
Couto: Não, nunca sequer ocorreu-me de pensar nisso, porque enquanto a política foi uma coisa importante na minha vida, era importante porque eu me divertia, porque eu era aquilo. O processo depois de sedimentação, de diferenciação dessas duas áreas ocorreu tão naturalmente que não foi fruto de reflexão não, eu não me sentei a pensar no assunto.
Foi acontecendo e eu fui aprendendo que cada um, cada coisa tinha seu lugar. E também, eu acho que as circunstâncias de Moçambique ajudam muito, porque tu aprendes que ser escritor é uma coisa pequena, que faz muito bem ao ego. Os escritores pensam sempre que são muito importantes, que o mundo depende do que eles estão fazendo.
Aqui tu aprendes que não é tão importante, porque o universo dos que lêem é tão pequeno, o livro circula em áreas tão pequeninas que é uma espécie de aprendizagem de humildade que faz bem. Então tu tens, se queres contatar com outros, se queres ter outras áreas de comunicação, tu não podes depender do livro.
E por isso eu comecei a envolver-me com grupos de teatro, a trabalhar na rádio, na televisão, para ver se aquilo que eu queria dizer podia ter outros canais que não fossem só o livro. Aqui é muito importante que o escritor aprenda a não ser escritor, a deixar de ser escritor. Isso é um aprendizado que eu acho que nos faz muito bem a todos nós.
Você sempre estudou aqui? Nunca saiu? Você se diz muito influenciado pela literatura brasileira. Como foi?
Couto: Estudei aqui, e sempre vivi aqui. Eu acho que quando tomei consciência dessa contaminação pela literatura brasileira, eu já estava “doente”, no sentido bom. Acho que a minha geração e a geração anterior foram muito marcadas pela literatura brasileira. Havia uma certa redescoberta com Graciliano, com Jorge Amado, de que, afinal, a língua pode ser outra coisa.
Há quem esteja trabalhando a língua de outra maneira; e há outras culturas que pegam nesta coisa que é o português para trabalharem de outra forma. E não só. Também as temáticas políticas, no caso particularmente de Jorge Amado, eram coisas que coincidiam com uma época histórica aqui que era preciso pôr em causa. Certo tipo de valores. Então, quando eu começo a escrever, já havia toda esta envolvência, que era mais forte.
O ambiente literário de Moçambique estava muito mais fortemente ligado ao do Brasil do que ao de Portugal. E por uma outra razão também, a censura, que era muito forte em Portugal, aqui, nesse aspecto era mais tênue. Eram vendidos aqui livros que em Portugal eram proibidos. Então, era mais fácil. Tudo, até aquela revista “O Cruzeiro”, lembra? Era uma coisa que tinha aqui uma difusão enorme. Quando chegava aqui “O Cruzeiro”, era uma espécie de janela para um outro mundo que era muito familiar, e nós nos reencontrávamos, mais do que lendo as coisas que vinham de Portugal.
E a influência de Guimarães Rosa?
Couto: Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer.
Eu sabia que eu queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse “esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele, por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico.
Houve mais cruzamentos e trocas de livros no tempo colonial e fascista do que depois da Independência. Então, eu tinha este fascínio. Eu tinha que conhecer este João, este tal Rosa. E um amigo meu trouxe as “Terceiras Histórias”. E de fato foi uma paixão. Foi de novo alguém que dizia “isto pode-se fazer literariamente”. Mas, como tu dizes, eu já queria fazer isto, porque já estava contaminado primeiro por este processo que não é literário, é um processo social das pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam a coisa plástica e fazem do português o que querem.
É um processo muito livre aqui. As pessoas misturam português e como dizia uma camponesa da Zambézia, “eu falo português corta-mato”, uma prova de atletismo que se faz através do mato, de trilhas. E pronto. Eu não faria isto se não estivesse marcado antes de Guimarães Rosa, antes de Luandino Vieira, se não estivesse marcado por isto que é um processo que não é só lingüístico, não é, nem letrado.
Para sua geração, é como se fosse impossível ter vivido aqui sem se envolver com o movimento pela Independência e com a guerra civil?
Couto: Não havia outra possibilidade. Isso era uma espécie de solução existencial. Tu só eras se tu militasses. Nem nos colocávamos a questão de optar por outros caminhos. E nós casamos de tal maneira com esse período da história que eu agora fui para o Congresso da Frelimo e tenho muitas críticas. Eu acho que já não sou da Frelimo, porque acho que a Frelimo se converteu em outra coisa. Eles próprios confessam, já são sociais-democratas.
Qual a sua principal crítica ao partido?
Couto: Acho que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em empresários de sucesso. Eu já não estou lá. Mas quando a Frelimo cantava era uma coisa que me fascinava. Lembro da primeira vez que eu vi Samora Machel, que era um deus para nós, nós endeusávamos aquele homem. Era nosso Guevara.
E quando nós fomos como jornalistas ter com este homem na Tanzânia, no percurso, todos nós íamos pensando em como íamos impressionar aquele homem. Queríamos que ele gostasse de nós. E cada um pensava no que dizer: “olha, eu sei parte dos discursos dele de cor, eu sei citar coisas da Frelimo”. E quando chegamos ao pé dele, a grande impressão que eu tive é que ele era um homem de um grande magnetismo, uma pessoa que exalava esta aura, e era muito pequenino, baixinho, com uma grande energia. E a primeira pergunta que ele nos fez foi “algum de vocês sabe cantar?”. E nós não sabíamos.
Como intelectuais sabíamos fazer coisas políticas etc. Esta coisa depois me fez pensar. Ele nos disse: ‘como é possível um homem que não sabe cantar, que não sabe dançar nada? Como é que vocês podem ser pessoas se não sabem cantar nem dançar? O que é que sabem fazer?” Então, nós sabíamos fazer coisas que, de fato, eram um pouco chatas, não é? Um pouco aborrecidas. E este era o grande fascínio, a Frelimo cantava.
E agora, quando chego a este Congresso e começam aquelas canções e começam aqueles velhos militantes que eu conheci e que eram jovens, todos, naquela época, estava ali um pedaço da minha própria história, e estavam ali os mortos, que sempre nos criam este sentimento religioso com o mundo, não é? Porque estavam presentes esse mesmo Samora, esses heróis nacionais, estavam sendo enfocados nesse clima de celebração, quase de missa. E eu pensava assim, eu não posso deitar essa parte da minha vida fora, não posso. Porque, senão, fica um vazio. Se eu não estivesse atento e vigilante, estaria dizendo os mesmos “vivas”.
Então, estou disponível para a defesa de certas coisas, mas tenho que passar pelo crivo da minha consciência de hoje. Então, a Frelimo credenciou-se desta maneira: “nós somos o país”. De fato, a Frelimo eram todos os moçambicanos que comungavam com essa grande causa. E isso foi bom enquanto um momento de grande euforia, mas, depois, passou a ser uma coisa má, antes mesmo da morte de Samora Machel. Quando depois tu tinhas o que já não era um plano de gerar, era um plano de gerir, e quando tu tinhas que instalar modelos, fazer a governação, não era bom, para um sentido crítico que devia estar presente. Pensar sempre que nós somos o país, acomoda. E deixa de ser verdade.
A guerra teria surgido por conta do descontentamento de vários grupos com a Frelimo?
Couto: Num certo momento particular, eu acho que todo o povo moçambicano comungava com a Frelimo. Era o grande objetivo nacional. Mas depois o que surgiu foi que alguns dos dirigentes da Frelimo se tinham afastado por causa do exílio, por causa de serem formados na Europa, por causa de terem sido atraídos pelos modelos soviéticos de experiência e distanciaram-se culturalmente do país. E o que eles desconheciam eram suas próprias raízes. Aprenderam a desconhecer isso. E os grandes erros tiveram uma razão mais cultural do que política, se é que se pode separar assim.
Os modelos de governação que foram instalados, quer fossem primeiro socialistas quer fossem depois capitalistas eram deslocados de nós, não despertavam aquilo que era a cultura mais profunda, que era a alma mais funda deste país. Eu acho que quando se fala em África, e agora já posso falar em África, normalmente se fala em África de uma maneira tão simplista, como se fosse uma coisa só. Mas em geral em África não se dá a devida importância àquilo que é a religião, o fator religioso.
Não posso compreender os brasileiros se não compreender aquilo que determina muito da alma brasileira, que é a religião, a católica no caso. E eu não posso compreender a África se não compreender uma coisa que nem tem nome, que é a religião africana, que chamam às vezes de animista.
Os próprios africanos também não entendem que têm de procurar esse entendimento do que eles são, das suas dinâmicas atuais, a partir deste entendimento do que é a sua ligação com os deuses. E eu acho que a Frelimo falhou principalmente aí. A guerra que se instaurou foi também uma guerra religiosa, era uma guerra de identidade, à procura de identidade. E isso explica a violência que essa guerra assumiu.
A guerra começou depois de quanto tempo?
Couto: Começou quase logo. Não se sabia bem. Eu acho que isto nem se pode chamar guerra, isso que houve aqui com o nome de conflito generalizado, de violência contra um Estado central e centralizador. Em 1977 tivemos a guerra contra a Rodésia, o atual Zimbábue, uma guerra clássica, mas por baixo dessa guerra já estavam sendo gerados os conflitos que depois se encaminharam para essa coisa da Renamo e da guerra civil.
Que você acha que teve origem na religião?
Couto: Eu acho que teve várias origens, uma delas é a religiosa. A Frelimo era um regime marxista. Combatia a religião de frente. Não chegou a atuar como a União Soviética porque não conseguia, não tinha capacidade, mas queria. O que foi mais grave foi o que foi mais silencioso e que não era visível, porque era essa guerra contra esta religião africana, que é a religião dos antepassados. E aí não há uma instituição.
Esta religião africana não tem vínculo com o Vaticano, não tem um corpo separado. O líder religioso é ao mesmo tempo o líder político, é o que faz a gestão da terra, são os chefes das famílias. Essa agressão acabou por ter conseqüências que eram logo imediatamente políticas.
Você percebeu isso logo?
Couto: Não. Demorou Percebi isso quando já era demasiado tarde. É sempre assim que acontece na minha vida, quando percebo alguma coisa já é demasiado tarde. Eu acho que na altura só tínhamos sinais. Eu percebia que alguma coisa não estava funcionando bem, não só do ponto de vista religioso como do cultural.
Por exemplo, as missangas foram retiradas como objeto de troca pela comissão agrícola, porque se achava que aquilo não tinha importância, que aquilo não tinha o valor monetário que se acreditava, e isso foi um dos erros (A população rural usava missangas como moeda de troca, ao invés de dinheiro.0 Eu percebia que alguma coisa não estava bem. Era um poder que era cego em relação a tudo isso, por isso não deu resultado, mesmo que politicamente tivesse boas intenções.
Ninguém, na época, conseguiu enxergar isso?
Couto: No início, as vozes críticas eram poucas, depois as vozes que se levantaram, principalmente contra as aldeias comunais, que foi uma grande questão. A Frelimo queria organizar o campo de acordo com um modelo de povoamento de território retirado de outros países. A idéia das aldeias comunais foi um desastre. Tinha uma certa lógica da governação, a coisa centralizada. Não podes fazer hospitais e escolas em todos os povoados.
Não funcionou porque foi feita de uma maneira apressada, administrativa. Não foi feita por um esquema de sedução, em que se criavam atrativos, e depois as pessoas se juntavam voluntariamente a isso, não é? Aqui a terra é uma igreja, os mortos são enterrados. E aquele é o lugar onde eu me comunico com o divino, com o sagrado. O valor da terra aqui tem que ser também dimensionado nesse aspecto.
Neste projeto que eu a estava a mostrar, provavelmente é preciso retirar pessoas de dentro dessa região do parque. Há 20 mil pessoas vivendo ali. Mas quando tu falas nisso, tu tens que pensar que a pessoa está ligada à terra por este outro vínculo, que não tem substituição possível, não tem compensação possível, é a mesma coisa que chegar no Brasil e destruir uma igreja.
O poder que têm os chefes tradicionais, embora eu não goste do termo, “chefes tradicionais” no poder rural continua presente. Este é um país rural, um país dominado pela oralidade, é um país em que a governação moderna só administra uma faixa, um verniz. De resto, é governado por outras forças, por outras lógicas.
Esses chefes tradicionais têm o poder que têm porque lhes foi conferida esta tarefa de gerir a sua terra, e pelos deuses, eles são simples instrumentos dos deuses para administrar a terra. Quando tu tiras um indivíduo do seu lugar, ele perde esse poder. Portanto, o assunto se torna imediatamente político também, torna-se um assunto de poder. E por isso não podes mexer nesses mecanismos de qualquer maneira.
Havia muitos brancos nesse grupo da sua geração?
Couto: Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre foram uma minoria que não conta.
Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são portugueses?
Couto: Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos, e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira, e aquilo estava hierarquizado.
Era um sistema que discriminava mais os pretos. Mas criou-se uma porta que determinou a diferença na comparação com a colonização inglesa. Aqui tu podias, sendo preto, ser branco. Podias ser assimilado. E passar a ter privilégios que tua raça não tinha. Se abdicasses daquilo que seria tua cultura, tua religião, o teu nome, porque tinhas que mudar de nome.
O fator raça, era um fator, mas não era o fator. Era um fator pelo qual se podia transitar. Essa é a diferença do racismo inglês, que tu sendo preto não tens saída, és preto sempre. Podes ser educado como preto, mas lá no meio dos pretos. Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui discriminado assim.
No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça. Agora, de vez em quando, sim, há casos em que pontualmente, por razões de um certo oportunismo, por razões de quando a porta é estreita e só pode passar um. Aí lembram-se que eu sou branco e que portanto eu não seja tão representativo assim. Também tem uma grande força aquilo que falamos ontem, o modelo americano da ação afirmativa.
Isso tem força?
Couto: Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é preciso.
Você concorda com essa política?
Couto: Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu. Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder, sendo pretos, são brancos.
Neste sentido de que as pessoas que se sentem excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui devia defender a mim enquanto minoria, não é?
Mas você é o colonizador, não é?
Couto: Mas eu poderia ser chinês. Imagine que eu fosse chinês. Há moçambicanos chineses. São uma minoria ínfima, e eles podiam usar esse mecanismo da ação afirmativa para dizer “ah, eu também tenho que estar presente, que estar representado não sei onde”. E sucede o contrário disso.
Como seus pais reagiram na época da Independência? Eles pensaram em sair daqui?
Couto: Eles saíram, quatro vezes, sempre definitivamente e voltavam para Portugal, pois este já não era o país que eles conheciam, de que aprenderam a gostar.
Eles saíram por medo?
Couto: Não, por desencontros.
Como foram tratados os portugueses naquele momento?
Couto: Naquele momento havia 250 mil portugueses em Moçambique e saíram quase todos logo nos primeiros dois, três anos da Independência. Saíram em massa. Chamavam de o período dos contentores (“contêineres”), porque eles metiam todas as suas coisas, os seus pertences, toda a sua vida, naqueles grandes caixotes e iam de barco ou de avião.
Teus pais saíram também?
Couto: Não, nesse período, não. Na minha casa, eu tive sorte, porque quando meu pai saiu de Portugal, também já saiu por razões políticas, de oposição. Meu pai colaborou na medida que ele pôde com a Independência de Moçambique. Ele sempre nos dizia “vocês são outra coisa, são deste país, é como se eu tivesse dado filhos para uma terra que já não é minha. Ele sabia que isso ia acontecer. A minha mãe também.
São quantos filhos?
Couto: Três. E todos nós nos engajamos e demos a vida, arriscamos algo mesmo por este país, e lutamos contra aquilo que era Portugal. Nesse primeiro momento, havia uma ignorância profunda, os portugueses que viviam aqui genuinamente acreditavam que isto era Portugal. E foi uma surpresa. Para eles, eles foram vendidos, é isso que eles diziam.
Houve uma revolta, logo no período de transição para a Independência. Nesse mesmo dia houve uma revolta que se chamou "sete de setembro". Ficou conhecida assim. Por exemplo, minha casa foi invadida, foi partida, porque achavam que meu pai, porque era um jornalista que escrevia coisas a favor da Frelimo, era um traidor. Então, a idéia era que nós, os portugueses, nós, os brancos, estávamos sendo traídos, e os principais traidores, como eles não reconheciam na outra raça a capacidade de ser sujeito, eram os brancos.
A sua raiva toda era principalmente contra os de sua própria raça, que eram tidos como traidores que venderam o país à Frelimo. Aí tivemos que fugir. Tivemos que levar meu pai para a Beira, e ele ficou lá um tempo, até que a Frelimo tomou conta da situação novamente. Mas isso era uma situação excepcional. O resto dos portugueses, não é que eles tenham sido maltratados, mas eles achavam que o país não estava preparado, que os moçambicanos não estavam preparados, que vinha um desastre, que eles estavam dentro do Titanic e antes que aparecesse o iceberg eles tinham que sair.
E fugiram. Era inevitável. Hoje em dia há aquela tendência de tentar corrigir isso, quer dizer, de tentar retificar a história. Alegam que talvez se tivesse tido uma política de transição maior. Isso não é verdade. Foi uma transição bem feita. Não houve violência, exceto nos casos de que já falei, e que foi provocada por eles mesmos.
Você vive em um país em que 50% da população não sabe ler nem escrever. As edições de livros têm tiragens baixas, mil exemplares em média. Como isso te afeta?
Couto: A média chega a 3 mil exemplares. Obviamente é triste que haja esta condição de que a maior parte das pessoas não sabe ler ou não tem acesso aos livros. Por outro lado é um desafio que te obriga a perceber, como eu já disse antes, que tu tens que ter outros canais, saber usar outros canais. E eu acabo por transformar isso que é uma coisa negativa em uma coisa que é positiva para mim.
Por exemplo, a minha passagem pelo teatro foi uma das melhores escolas que eu tive, eu escrevia para um grupo de teatro, ao qual pertenço há 14 anos. E escrever para eles, e depois perceber como é que as pessoas reagiam ao ver as peças de teatro aqui na cidade, nas zonas rurais, quais eram as diferenças, me ensinou muito sobre o que é se comunicar com os outros.
Portanto, tu tens esse desafio, tu tens que perceber que a grande fronteira não é entre o analfabetismo e o alfabetismo, é entre o universo da escrita e o universo da oralidade. Esta é a grande fronteira. E o universo da oralidade não é uma coisa menor, é uma grande escola, é um outro sistema de pensamento. E é neste sistema de pensamento que eu aprendi aquilo que é mais importante hoje para mim.
Inclusive a maneira como eu escrevo nasce desta condição de que este é um país dominado pela oralidade, um país que conta histórias através da via da oralidade. E hoje eu me sinto assim, eu não tenho nenhum território, neste aspecto de quando algo me fascina. Por exemplo, eu leio Guimarães Rosa, eu leio 50 vezes a mesma página, porque aquela escrita me atira para fora da escrita, me empurra para fora da página, porque me acendem vozes dos contadores de histórias da minha infância.
Você acha que falta em Moçambique um escritor, uma voz negra?
Couto: Tenho uma opinião dividida. Por um lado, eu acho que não tem nenhum sentido falar em raças quando tu falas em literatura. Obviamente quando tu perguntas "falta", é "falta" para quem? Para a própria literatura? Essa seria a grande questão. Será que a literatura vive desse tipo de representações? Por sexo, por raça? Mas, por outro lado, eu entendo que o país precisa se rever naquilo que é alguém que constitui sua raça dominante. E entendo que isso é um processo que tem que acontecer e já está acontecendo, não pode acontecer administrativamente, não podes promover.
Obviamente os grandes escritores de Moçambique são vários, estão surgindo e são todos de raça negra. Eventualmente haverá um mestiço. Porque não há nenhuma hipótese. Só para se ter uma idéia, se os brancos moçambicanos forem 5 mil, já são muitos. Em um país de 17 milhões de habitantes, isto não tem significância nenhuma, este é um grupo condenado à extinção. Os mestiços serão quantos? 30 mil? 40 mil?
Existe miscigenação aqui?
Couto: Depende das regiões. No litoral, sim. No interior, não. Em algumas províncias onde a presença portuguesa é mais antiga, como a Zambézia ou Inhambane, há mais. Mas o problema para mim, para fechar esse trecho sobre a literatura, eu acho que acontece é que mesmo os pretos que estão afirmando-se como grandes nomes da nossa literatura são mulatos do ponto de vista cultural, são todos eles urbanos, nasceram na língua portuguesa já, é raro o que sabe falar uma língua que não seja o português. É assim que eu também me sinto. Não me sinto como um representante da raça branca, eu sinto que sou um mulato, culturalmente.
Você já leu alguma crítica sobre a maneira como você representa o negro na sua literatura? Sobre como o realismo mágico, que você utiliza muito, facilitaria essa tarefa?
Couto: Acho que isto é um disparate. O escritor é um construtor de mundos inventados. Desse ponto de vista aí, eu nunca deveria escrever sobre mulheres, por exemplo. Ou uma mulher nunca poderia construir personagens masculinas. No fundo, a literatura é a negação disso mesmo. A negação da nossa condição, um urbano não poderia escrever sobre o mundo rural.
O Guimarães Rosa, que era um urbano, não podia escrever sobre o sertão brasileiro. Eu, quando escrevo, na minha cabeça, estou construindo personagens, e obviamente que são negros, quase todos eles, a não ser que eu identifique-me de outra maneira. Porque este é o meu mundo, é o mundo que eu vivi, que eu nasci e, por osmose, quando chego à Europa fico admirado primeiro por uma sensação de ver tantos brancos.
É a primeira reação que eu tenho, de que não estou no meu lugar, porque há muitos brancos. Então, naturalmente na minha cabeça, quando construo um personagem, ele surge negro, porque sou moçambicano. Mas pode surgir outra coisa, claro. Acho que é um disparate ler um livro assim.
E por que o apelido "Mia"?
Couto: Por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu, lá fora, sou sempre esperado como preto ou como mulher.
Certa vez, numa delegação do Samora Machel, que foi daqui visitar Fidel Castro, eu fui o único homem na vida a quem Fidel Castro deu saias e colares e brincos, pensando que eu era mulher. Ele deu prendas a todos, e a minha caixa. Isso me diverte. Essas questões de identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo.
Você acha que deveria haver mais contato entre o Brasil e Moçambique?
Couto: Tem que forçar nas áreas que é preciso forçar. Mas nas nossas áreas algumas coisas podem depender de pessoas. Eu não acredito nas instituições. Nesse aspecto as instituições vão seguir caminhos divergentes. O Brasil será cada vez mais América e nós seremos África. E ainda por cima nós somos África voltados para o outro lado.
Nós estamos de costas, geograficamente, para o Brasil. Então nós já somos Índia, já somos Oriente. Temos que nos inserir numa outra coisa, num outro universo. Agora acho que pelo fato de as relações históricas e culturais, estas que fizeram com que eu encontrasse um irmão, eu falei em Guimarães, mas há outros importantes como Caetano, Chico Buarque, que tiveram uma influência enorme.
O Chico, o Caetano, o Gilberto, essa gente nos fez ter orgulho desta coisa. Porque até certa altura até tínhamos vergonha de falar a língua do colonizador, a língua dos mais pobres mostrando que essa língua era rica e brilhava quando era cantada. Então isso tem que ser continuado, e isso sempre foi feito contra a corrente, sempre foi feito por pessoas e não por instituições.
Trechos desta entrevista foram publicados no caderno “Mundo” da “Folha de S. Paulo”, em 21 de julho de 2002.
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Marilene Felinto é escritora, autora de "O Lago Encantado de Grongonzo", "Postcard" e "Jornalisticamente Incorreto". É também colunista da "Folha de S. Paulo".
Texto apresentado por Mia Couto na
AMECON – Associação Moçambicana de Economistas:
(30.09.2003)
Economia- A FRONTEIRA DA CULTURA
Durante anos, dei aulas em
diferentes faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. Os meus colegas
professores queixavam-se da progressiva falta de preparação dos estudantes. Eu
notava algo que, para mim, era ainda mais grave: uma cada vez maior distanciação
desses jovens em relação ao seu próprio país. Quando eles saíam de Maputo em
trabalhos de campo, esses jovens comportavam-se como se estivessem emigrando
para um universo estranho e adverso. Eles não sabiam as línguas, desconheciam os
códigos culturais, sentiam-se deslocados e com saudades de Maputo. Alguns
sofriam dos mesmos fantasmas dos exploradores coloniais: as feras, as cobras, os monstros invisíveis.
Aquelas zonas rurais eram,
afinal, o espaço onde viveram os seus avós, e todos os seus antepassados. Mas
eles não se reconheciam como herdeiros desse património. O país deles era outro.
Pior ainda: eles não gostavam desta outra nação. E ainda mais grave: sentiam vergonha de
a ela estarem ligados. A verdade é simples: esses jovens estão mais à vontade
dentro de um video-clip de Michael Jackson do que no quintal
de um camponês moçambicano.
O que se passa, e isso parece
inevitável, é que estamos criando cidadanias diversas dentro de Moçambique. E
existem várias categorias: há os urbanos, moradores da cidade alta, esses que
foram mais vezes a Nelspruit que aos arredores da sua
própria cidade. Depois, há uns que moram na periferia, os da chamada cidade
baixa. E há ainda os rurais, os que são uma espécie de imagem desfocada do
retrato nacional. Essa gente parece condenada a não ter rosto e falar pela voz
de outros.
A criação de cidadanias
diferentes (ou o que é mais grave de diferentes graus de uma mesma cidadania)
pode ou não ser problemática. Tudo isso depende da capacidade de manter em
diálogo esses diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta é: será que
esses diferentes Moçambiques falam uns com os
outros?
A nossa riqueza provém da
nossa disponibilidade em efectuarmos trocas culturais com os outros. O
Presidente Chissano perguntava num texto muito recente sobre o que é Moçambique
tem de especial que atrai a paixão de tantos visitantes. Esse não sei quê
especial existe, de facto. Essa magia está ainda viva. Mas ninguém pensa,
razoavelmente, que esse poder de sedução provém de sermos naturalmente melhores
que os outros. Essa magia nasce da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos
mestiçagens. Essa magia nasce da capacidade de sermos nós, sendo outros.
Eu venho falar aqui de um
diálogo muito particular de que poucas vezes se faz alusão. Refiro-me à nossa
conversa com os nossos próprios fantasmas. O tempo trabalhou a nossa alma
colectiva por via de três materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum
desses materiais parece estar feito para uso imediato. O passado foi mal
embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente
vem vestido de roupa emprestada. E o futuro foi encomendado por interesses que
nos são alheios.
Não digo nada de novo: o
nosso país não é pobre mas foi empobrecido. A minha tese é que o empobrecimento
de Moçambique não começa nas razões económicas. O maior empobrecimento provém da
falta de ideias, da erosão da criatividade e da ausente interna de debate. Mais
do que pobres tornamo-nos inférteis.
Eu vou questionar essas três
dimensões do tempo apenas para sacudir alguma poeira. Comecemos pelo passado.
Para constatarmos que esse passado, afinal, ainda não
passou.
O QUE FOMOS – UM RETRATO
FEITO POR EMPRÉSTIMO
O colonialismo não morreu com
as independências. Mudou de turno e de executores. O actual colonialismo
dispensa colonos e tornou-se indígena nos nossos territórios. Não só se
naturalizou como passou a ser co-gerido numa parceira entre ex-colonizadores e
ex-colonizados.
Uma grande parte da visão que
temos do passado do nosso país e do nosso continente é ditada pelos mesmos
pressupostos que ergueram a história colonial. Ou melhor, a história colonizada.
O que se fez foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a
ideia que Africa pré-colonial era um universo intemporal, sem conflitos nem
disputas, um paraíso feito só de harmonias.
Essa imagem romântica do
passado alimenta a ideia redutora e simplista de uma condição presente em que
tudo seria bom e decorreria às mil maravilhas se não fosse a interferência
exterior. Os únicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E
nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de
fora.
Esta visão já estava presente
no discurso da luta armada quando se retratava os inimigos como “infiltrados”.
Isto acontecia, apesar do aviso do poeta que dizia que “não basta que seja
pura e justa a nossa causa é preciso que a justiça e a pureza existam dentro de
nós”. As nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como sendo compostas apenas de gente pura. Se havia mancha ela
vinha de fora, que era o lugar onde morava o inimigo.
O modo maniqueísta e
simplificador com que se redigiu o chamado “tempo que passou” teve, porém, outra
consequência: fez persistir a ideia de que a responsabilidade única e exclusiva
da criação da escravatura e do colonialismo cabe aos europeus.
Quando os navegadores
europeus começaram a encher de escravos os seus navios, eles não estavam
estreando o comércio de criaturas humanas. A escravatura já tinha sido inventada
em todos os continentes. Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os
asiáticos e os próprios africanos. A escravatura foi uma invenção da espécie
humana. O que sucedeu foi que o tráfico de escravos se converteu num sistema
global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma a enriquecer o seu
centro: a Europa e a América.
Vou contar-vos um episódio
curioso que envolve uma senhora africana chamada Honória Bailor Caulker num momento em que ela visitava os Estados Unidos da
América.
Dona Honória Bailor-Caulker é
presidente da câmara da vila costeira de Shenge, em
Serra Leoa. A vila é pequena mas carregada de História. Dali partiam escravos,
aos milhares, que atravessavam o Atlântico e trabalhavam nas plantações
americanas de cana-de-açúcar.
Dona Honória foi convidada para discursar nos Estados Unidos da
América. Perante uma distinta assembleia a senhora subiu ao pódium e fez questão em exibir os seus dotes vocais. Cantou,
para espanto dos presentes, o hino religioso “Amazing
Grace”. No final, Honória
Bailor-Caulker deixou pesar um silêncio. Aos olhos dos
americanos parecia que a senhora tinha perdido o fio à meada. Mas ela retomou o
discurso e disse: quem compôs este hino foi um filho de escravos, um descendente
de uma família que saiu da minha pequena vila de Shenge.
Foi como que um golpe mágico
e o auditório se repartiu entre lágrimas e aplausos. De pé, talvez movidos por
uma mistura de sentimento solidário e alguma má-consciência, os
presentes ergueram-se para aclamar Honória.
- Aplaudem-me como descendente
de escravos ?, perguntou ela aos que a
escutavam.
A resposta foi um eloquente
“sim”. Aquela mulher negra representava, afinal, o sofrimento de milhões de
escravos a quem a América devia tanto.
-
Pois
eu,
disse Honoria, não sou uma descendente de
escravos. Sou, sim, descendente de vendedores de escravos. Meus bisavós enriquecerem vendendo
escravos.
Honória Bailor Caulker teve a coragem de
assumir-se com verdade com a antítese do lugar comum. Mas o seu caso é tão raro
que arrisca ficar perdido e apagado.
O colonialismo foi outro
desastre cuja dimensão humana não pode ser aligeirada. Mas tal como a
escravatura, também na dominação colonial houve mão de dentro. Diversas elites
africanas foram coniventes e beneficiárias desse fenómeno histórico.
Porque é que estou a falar
disto ? Porque eu creio que a História oficial do nosso
continente foi sujeita a várias falsificações. A primeira e mais grosseira
destinou-se a justificar a exploração que fez enriquecer a Europa. Mas outras
falsificações se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar
responsabilidades internas, a lavar a má consciência de grupos sociais africanos
que participaram desde sempre na opressão dos povos e nações de África. Esta
leitura deturpada do passado não é apenas um desvio teórico. Ela acaba por
fomentar uma atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianças sem
princípios.
É importante fazermos nova
luz sobre o passado porque o que se passa hoje nos nossos países não é mais do
que a actualização de conivências antigas entre a mão de dentro e a mão de fora.
Estamos revivendo um passado que nos chega tão distorcido que não somos capazes de o reconhecer. Não estamos
muito longe dos estudantes universitários que ao saírem de Maputo já não se
reconhecem como sucessores dos mais velhos.
O QUE SOMOS – UM ESPELHO À PROCURA DA SUA IMAGE
Se o passado nos chega
deformado, o presente desagua em nossas vidas de forma incompleta. Alguns vivem
isso como um drama. E partem em corrida nervosa à procura daquilo que chamam a
nossa identidade. Grande parte das vezes essa
identidade é uma casa mobilada por nós mas a mobília e a própria casa foram
construídas por outros. Outros acreditam que a afirmação da sua identidade nasce
da negação da identidade dos outros. O certo é que a afirmação do que somos está
baseada em inúmeros equívocos.
Temos que afirmar o que é
nosso, dizem uns. E têm razão. Num momento em que o convite é sermos todos
americanos esse apelo tem toda a razão de ser.
Faz todo o sentido, portanto,
afirmarmos aquilo que é nosso. Mas a pergunta é: o que é verdadeiramente nosso ? Há aqui alguns mal-entendidos. Por exemplo: uns
acreditam que a capulana é um vestuário originário, tipicamente moçambicano. Fiz
por diversas vezes esta pergunta a estudantes universitários: que frutos são os
nossos por oposição ao morango, ao pêssego, à maçã? As respostas, uma
outra vez, são curiosas. As pessoas acreditam que são originariamente africanos:
o caju, a manga, a goiaba, a papaia. E por aí fora. Ora nenhum desses frutos é
nosso, no sentido de ser natural do continente. Outras vezes, sugere-se que a
nossa afirmação se faça na base de vegetais usados na nossa culinária. O emblema
do tipicamente nacional passa agora para o coco, a mandioca, a batata doce, o
amendoim. Tudo produtos que foram introduzidos em Moçambique e em África. Mas
aqui se coloca a questão: essas coisas acabam sendo nossas porque, para além da
sua origem, lhes demos a volta e as refabricamos à
nossa maneira. A capulana pode ter origem exterior mas é moçambicana pelo modo
como a amarramos. E pelo modo como esse pano passou a falar connosco. O coco é
indonésio, a mandioca é mais latino-americana que a Jennifer Lopez mas o prato que
preparamos é nosso porque o fomos caldeando à nossa maneira.
Os conceitos devem ser
ferramentas vitais na procura desse nosso retrato. Contudo, muito do quadro
conceptual com que olhamos Moçambique assenta em chavões que, à força de serem
repetidos, acabaram não produzir sentido. Dou exemplos. Falamos muito
de:
- Poder
tradicional
- Sociedade civil
- Comunidades
rurais,
como se diz
camponês
-
Agricultura de subsistência
Perdoem-me a minha incursão
abusiva nestes domínios. Mas eu tenho sinceras dúvidas sobre a operacionalidade
de qualquer destes conceitos. Tenho dúvidas sobre o modo como essas categorias
cabem na nossa mão e produzem mudanças reais.
UMA LÍNGUA CHAMADA
“DESENVOLVIMENTÊS”
E é isso que me preocupa – é
que mais do que incentivar um pensamento inovador e criativo estamos a trabalhar
ao nível do que é superficial. Técnicos e especialistas moçambicanos estão
reproduzindo a linguagem dos outros, preocupado com o poder agradar e fazer boa
figura nos workshops. Trata-se de um logro, um jogo de
aparências, alguns de nós parecemos bem preparados porque sabemos falar essa
língua, o desenvolvimentês. Postos perante a
procura de soluções profundas para as questões nacionais estamos estão
tão perdidos como qualquer outro cidadão comum. Palavras chaves “boa-governação”, accountability,
parcerias, desenvolvimento sustentável, capacitação institucional, auditoria e
monitoramento, equidade, advocacia, todas estas palavras da moda acrescentam uma grande
mais-valia (eis outra palavra da moda) às chamadas “comunicações” (deve-se, de
preferência, dizer “papers”) Mas deve-se evitar
traduções feitas à letra se não acontece-nos como o palestrante – já ouvi chamarem de painelista, o que além de pouco simpática é uma palavra perigosa - pois esse palestrante, para evitar dizer que ia fazer uma apresentação
em power-point, acabou dizendo que ia fazer uma
apresentação em “ponta-poderosa”. O que pode sugerir
maliciosas interpretações.
O problema do desenvolvimentês é que só convida a pensar o que já está pensado por outros.
Somos consumidores e não produtores de pensamento. Mas não foi apenas uma língua
que inventamos: criou-se um exército de especialistas alguns com nomes curiosos,
tenho-os visto em reuniões diversas: já vi especialistas em resolução de
conflitos, facilitadores de conferências, workshopistas, experts em
advocacia, engenheiros políticos. Estamos empenhando o nosso melhor manancial
humano em algo cuja utilidade deve ser interrogada.
A grande tentação de hoje é
reduzimos os assuntos à sua dimensão linguistica.
Falamos, e tendo falado, pensamos ter agido. Muitas vezes a mesma palavra já
dançou com variadissimos parceiros. Tantos que já não
há festa sem que certas expressões abram o baile. Uma dessas palavras é a
“pobreza”. A pobreza já dançou com um par que se chamava “a década contra o
sub-desenvolvimento”.. Outro
dançarino tinha por nome “luta absoluta contra a pobreza”. Agora, dança com
alguém que se intitula “luta contra a pobreza absoluta”. Outro caso é o do povo.
O povo especializou-se sobretudo em danças de máscaras. E ele já se mascarou de
“massas populares”. Já foi “massas trabalhadores”. Depois, foi “população”.
Agora, dança com o rosto de “comunidades locais”.
A verdade é que ainda
mantemos um grande desconhecimento das dinâmicas actuais, dos mecanismos vivos e
funcionais que esse tal povo inventa para sobreviver. Sabemos pouco sobre
assuntos de urgente e primordial importância. Listo apenas alguns que agora me
ocorrem :
- a
vitalidade do comércio informal (mais do que comércial
é toda uma economia informal)
- os
mecanismos de troca entre a família rural e a sua sucursal
urbana
. o
papel das mulheres nessa rede de trocas invisíveis, do transito transfronteiriço
de mercadorias (o chamado mukero).
Como podemos ver, não são
apenas os jovens estudantes que olham para o universo rural como se fosse um
abismo. Também para nós há um Moçambique que permanece
invisível.
Mais grave que estas omissões
é a imagem que se foi criando para substituir a realidade. Tornou-se comum a
ideia que o desenvolvimento é o resultado acumulado de conferências, workshops e projectos. Eu não conheço país nenhum que se
tivesse desenvolvido à custa de projectos. Vocês, melhor que ninguém, sabem
disto. Mas quem lê os jornais verifica como está enraizada esta crença. Isto
apenas ilustra a atitude apelativa que prevalece entre nós de que os outros (na
nossa linguagem moderna, os stakeholders) é que tem a
obrigação histórica de nos retirar da miséria.
É aqui que a questão se
coloca – qual a cultura da nossa economia? Qual é a economia da nossa cultura ? Ou dito de modo mais rigoroso: como é que as nossas
culturas dialogam com as nossas economias ?
O SERMOS MUNDO – À PROCURA DE
UMA FAMÍLIA
Numa Conferencia em que este
ano participei na Europa, alguém me perguntou: o que
é, para si, ser africano
?
E eu lhe perguntei, de volta:
E para si, o que é ser europeu ?
Ele não sabia responder.
Também ninguém sabe exactamente o que é africanidade.
Neste domínio há pouco muita bugiganga, muito folclore. Há alguns que dizem que
o “tipicamente africano” é aquele ou aquilo que tem um peso espiritual maior.
Ouvi alguém dizer que nós, africanos, somos diferentes dos outros porque damos
muito valor à nossa cultura. Um africanista numa conferência em Praga disse que
o que media a africanidade era um conceito chamado
“ubuntu”. E que esse conceito diz que “eu sou
os outros”.
Ora todas estes pressupostos
me parecem vago e difusos, tudo isto surge porque se toma como substância aquilo
que é histórico. As definições apressadas da africanidade assentam numa base exótica, como se os
africanos fossem particularmente diferentes dos outros, ou como se as suas
diferenças fossem o resultado de um dado de essência.
África não pode reduzida a
uma entidade simples, fácil de entender. O nosso continente é feito de profunda
diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de
culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos
patrimónios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens
falamos com algum receio como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos
pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. Os senhores
dizem que não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há
cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.
O QUE QUEREMOS E PODEMOS
SER
Vou falar-vos de um episódio
real, decorrido aqui perto, na África do Sul, em 1856. Um célebre sangoma de nome Mhalakaza reclamou
que espíritos dos antepassados lhe tinham transmitido uma profecia. E que uma
grande ressurreição haveria de acontecer e que os britânicos iriam ser expulsos.
Para isso o povo Xhosa deveria destruir todo o seu
gado e todas as suas machambas. Esse seria o sinal de fé para que, das
profundezas do chão, brotassem riqueza e abundância para todos. Mhalakaza convenceu os soberanos do reino da veracidade
desta visão. O chefe Sarili, da casa real do Tshawe, proclamou a profecia como doutrina oficial. Para além da visão do adivinho, Sarili tinha uma estranha convicção: era de que os russos
seriam os antepassados dos Xhosas e seriam eles, os
russos, que iriam brotar do chão de acordo com a prometida ressurreição. Esta
ideia surgia porque os monarcas Xhosa tinham ouvido
falar da guerra da Crimeia e do facto dos russos
estarem a bater-se contra os ingleses. Espalhou-se rapidamente a ideia de que os
russos, depois de vencerem os britânicos na Europa, viriam expulsá-los da África
do Sul. E o que é ainda mais curioso: estava assente que os russos seriam
pretos, no pressuposto de que todos os que se opunham ao domínio britânico
seriam de raça negra.
Não me demoro no episódio
histórico. A realidade é que depois de desaparecerem o gado e a agricultura, a
fome dizimou mais de dois terços do povo Xhosa. Estava
consumada uma das maiores tragédias da toda a história de África. Este drama foi
aproveitado pela ideologia colonial como prova da dimensão da crendice entre os
africanos. Mas a realidade é que esta história é bem mais complexa que uma
simples crença. Por detrás deste cenário, ocultavam-se graves disputas
políticas. Dentro a monarquia Xhosa criou-se uma forte
dissidência contra este suicídio colectivo. Mas este grupo foi rapidamente
intitulado de “infiéis” e uma força de milícias denominada de “os crentes” foi
criada para reprimir os que estavam em desacordo.
É evidente que esta história,
infelizmente real, não pode ser repetida hoje com este mesmo formato. Mas eu
deixo à vossa consideração o encontrarem paralelos com ocorrências actuais na
nossa região austral, em África, no Mundo. Aprendizes de feiticeiros, seguem construindo profecias messiânicas e arrastam, de
forma triste, povos inteiros para o sofrimento e o desespero.
Aflige-me a facilidade com que vamos a reboque de ideias e conceitos que desconhecemos. Em lugar de as interrogarmos cientificamente e de ajuizarmos a sua adequação cultural transformamo-nos em funcionários de serviço, caixas de ressonância de batuques produzidos nas instâncias dos poderes políticos. Na nossa história já se acumularam lemas e bandeiras. Já tivemos:
- A década contra o sub-desenvolvimento
- O Plano Prospectivo
Indicativo
(o famoso
PPI)
- O PRE ( com o seu
“ajustamento estrutural”
- Parceria inteligente e
outras
Estas bandeiras tiveram as
suas vantagens e desvantagens. Mas raramente foram sujeitas ao necessário
questionamento por parte dos nossos economistas, dos nossos intelectuais. As novas bandeiras e lemas estão sendo
hasteadas nos mastros sem que esse espírito crítico assegure da sua viabilidade
histórica.
Há por vezes um certo
cinismo. Poucos são os que realmente acreditam naquilo que propalam. Mas estas
novas teologias tem os seus missionários fervorosos. Assim que essas teses
desabam, esses sacerdotes são os primeiros a despir as batinas. Foi o que
sucedeu com o fim da nossa chamada Primeira Republica. Samora morreu e ninguém
mais foi co-responsável da primeira governação. Samora existiu sozinho, é essa a
conclusão a que somos obrigados a chegar.
A CULTURA E A ECONOMIA - O QUE PODEMOS FAZER ?
O que podemos fazer é
interrogar sem medo e dialogar com espirito critico. Infelizmente, o nosso ambiente de debate se revela
pobre. Mais grave ainda, ele tornou-se perverso: em lugar de confrontar ideias,
agridem-se pessoas. O que podemos fazer com os conceitos sócio-económicos é
reproduzir aquilo que fizemos com a capulana e com a mandioca. E já agora com a
língua portuguesa. Tornámo-los nossos, porque os experimentamos e vivemos à
nossa maneira.
Como um parêntesis queria
fazer aqui referência a algo que assume o estatuto de pouca-vergonha. Eu já
vi pessoas credenciadas a defender a tese da acumulação primitiva do capital
justificando o comportamento criminoso de alguns dos nossos novos-ricos. Isto já
não é apenas ignorância: é má-fé, ausência completa de escrúpulos morais e
intelectuais.
Estamos hoje construir a
nossa própria modernidade. E quero congratular esta ocasião em que um homem das
letras (que se confessa ignorante em matérias de economia) tenha a possibilidade
de partilhar algumas reflexões. A economia necessita de falar, de namorar com as
outras esferas da vida nacional. O discurso económico não pode ser a religião
dessa nossa modernidade nem a economia pode ser um altar ante o qual nos
ajoelhamos. Não podemos entregar a especialistas o direito de conduzir as nossas
vidas pessoais e os nossos destinos nacionais.
O que mais nos falta em Moçambique não é formação técnica, não é a
acumulação de saber académico. O que mais falta em Moçambique é capacidade de
gerar um pensamento original, um pensamento soberano que não ande a reboque
daquilo que outros já pensaram. Libertarmo-nos daquilo que uns já chamaram a
ditadura do desenvolvimento. Nós queremos ter um uma
força patriótica que nos avise dos perigos de uma nova evangelização, e
de uma entrega cega a essa nova mensagem messiânica: o desenvolvimento. (Que
no quadro desse idioma, o desenvolvimentês, se deve
chamar sempre de desenvolvimento sustentável)
O economista não é apenas
aquele que sabe de economia. É aquele que pode sair do pensamento económico,
aquele que se liberta da sua própria formação para a
ela melhor regressar. Esta possibilidade de emigração da sua própria condição é
fundamental para que tenhamos economistas nossos que se distanciem da economia o
suficiente para a poder interrogar.
A situação do nosso país e do
nosso continente é tão séria que já podemos continuar fazendo de conta que
fazemos. Temos que fazer. Temos que criar, construir alternativas e desenhar
caminhos verdadeiros e credíveis.
Precisamos de exercer os
direitos humanos como o direito à tolerância (eis outra palavra do
vocabulário workshopista) mas temos que manter
acesso a um direito fundamental que é o direito à indignação. Quando nos
deixarmos de nos indignar, então estaremos a aceitar que os poderes políticos
nos tratem como seres que não pensam. Eu falo do direito à indignação perante o
mega-cabritismo, perante crimes como os que mataram
Siba-Siba e Carlos Cardoso. Perante a ideia de que a
desorganização, o roubo e o caos são
parte integrante da nossa natureza “tropical”.
O nosso continente corre o
risco de ser um território esquecido, secundarizado
pelas estratégias de integração global. Quando digo “esquecido” pensarão que me
refiro à atitude das grandes potências. Mas eu refiro-me às nossas próprias
elites que viraram costas às responsabilidades para os seus povos, à forma como
o seu comportamento predador ajuda a denegrir a nossa imagem e fere a dignidade
de todos os africanos. O discurso de grande parte dos políticos é feito de
lugares-comuns, incapazes de entender a complexidade da condição dos nossos
países e dos nossos povos. A demagogia fácil continua a substituir a procura de
soluções. A facilidade com que ditadores se apropriam dos destinos de nações
inteiras é algo que nos deve assustar. A facilidade com que se continua a
explicar erros do presente através da culpabilização do passado deve ser uma
preocupação nossa. É verdade que a corrupção e o abuso do poder não são, como
pretendem alguns, exclusivas do nosso continente. Mas a margem de manobra que
concedemos a tiranos é espantosa. É urgente reduzir os territórios de vaidade,
arrogância e impunidade dos que enriquecem à custa do roubo. É urgente redefinir
as premissas da construção de modelos de gestão que excluem aqueles que vivem na
oralidade e na periferia da lógica e da racionalidade europeias.
Nós todos, escritores e
economistas, estamos vivendo com perplexidade um momento muito particular da
nossa História. Até aqui Moçambique acreditou dispensar uma reflexão radical
sobre os seus próprios fundamentos. A nação moçambicana conquistou um sentido
épico na luta contra monstros exteriores. O inferno era sempre fora, o inimigo
estava para além das fronteiras. Era Ian Smith, o apartheid, o imperialismo. O nosso país fazia,
afinal, o que fazemos na nossa vida quotidiana: inventamos monstros para nos
desassossegar. Mas os monstros também servem para nos tranquilizar. Dá-nos
sossego saber que eles moram fora de nós. De repente, o mundo mudou e somos
forçados a procurar os nossos demónios dentro de casa. O inimigo, o pior dos
inimigos, sempre esteve dentro de nós. Descobrimos essa verdade tão simples e
ficamos a sós com os nossos próprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu
antes. Este é um momento de abismo e desesperanças. Mas pode ser, ao mesmo
tempo, um momento de crescimento. Confrontados com as nossas mais fundas
fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar
outras escritas. Vamos ficando, cada vez
mais, a sós com a nossa própria responsabilidade histórica de criar uma outra
História. Nós não podemos mendigar ao
mundo uma outra imagem. Não podemos insistir numa atitude apelativa. A nossa
única saída é continuar o difícil e longo caminho de conquistar um lugar digno
para nós e para a nossa pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria
criação.
Senhor Presidente:
Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos feito.
Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos constituir? A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria.
Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do "apartheid" - violava de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas fomos vítimas da
agressão desse regime. Mas o regime do "apartheid" mereceu da vossa parte uma atitude mais branda: o chamado "envolvimento positivo". O ANC esteve também na lista negra como uma "organização terrorista!".
Estranho critério que levaria a que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de "freedom fighters" por estrategas norte-americanos.
Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um país. Sim, um país que não conseguia dormir. Porque vivia sobressaltado por terríveis
factos. E esse temor fez com que proclamasse uma exigência. Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição massiva.
Por razão desses terríveis perigos eu exigia mais: que inspectores das Nações Unidas fossem enviados para o vosso país. Que terríveis perigos me alertavam? Que receios o vosso país me inspiravam? Não eram produtos de sonho, infelizmente. Eram factos que alimentavam a minha
desconfiança. A lista é tão grande que escolherei apenas alguns:
- Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou bombas atómicas sobre outras nações;
- O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso ilegítimo da força" pelo Tribunal Internacional de Justiça;
- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto de derrubarem os invasores russos no Afeganistão;
- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo o gaseamento dos curdos em 1988);
- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice Lumumba foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e torturado e baleado na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido clorídico;
- Como tantos outros fantoches, Mobutu Seseseko foi por vossos agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire tornou-se o maior em África. A ditadura brutal deste zairense não mereceu nenhum reparo dos
EUA até que ele deixou de ser conveniente, em 1992;
- A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios mereceu o apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas, a resposta da Administração Clinton foi "o assunto é da responsabilidade do governo indonésio e não queremos retirar-lhe essa responsabilidade";
- O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant, um dos líderes mais sanguinários do Taiti, cujas forças para-militares massacraram milhares de inocentes. Constant foi julgado à revelia e as novas autoridades solicitaram a sua extradição. O governo americano recusou o pedido.
- Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA bombardeou no Sudão uma fábrica de medicamentos, designada Al-Shifa. Um engano? Não, tratava-se de uma retaliação dos atentados bombistas de Nairobi e Dar-es-Saalam.
- Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único país (junto com Israel) a votar contra uma moção de condenação ao terrorismo internacional. Mesmo assim, a moção foi aprovada pelo voto de cento e cinquenta e três países.
- Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra o Irão na sequência do qual milhares de comunistas do Tudeh foram massacrados. A lista de golpes preparados pela CIA é bem longa.
- Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA bombardearam: a China (1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala (1954), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala (1960), o Congo (1964), o Peru (1965), o Laos (1961-1973), o Vietname (1961-1973), o Camboja (1969-1970), a Guatemala (1967-1973), Granada (1983), Líbano (1983-1984), a Líbia (1986), Salvador (1980), a Nicarágua (1980), o Irão (1987), o Panamá (1989), o Iraque (1990-2001), o Kuwait (1991), a
Somália (1993), a Bósnia (1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão
(1998), a Jugoslávia (1999)
- Acções de terrorismo biológico e químico foram postas em prática pelos EUA: o agente laranja e os desfolhantes no Vietname, o vírus da peste contra Cuba que durante anos devastou a produção suína naquele país.
- O Wall Street Journal publicou um relatório que anunciava que 500 000 crianças vietnamitas nasceram deformadas em consequência da guerra química das forças norte-americanas.
Acordei do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade. A guerra que o Senhor Presidente teimou em iniciar poderá libertar-nos de um ditador.
Mas ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores dificuldades nas nossas já precárias economias e teremos menos esperança num futuro governado pela razão e pela moral. Teremos menos fé na força reguladora das Nações Unidas e das convenções do direito internacional. Estaremos,
enfim, mais sós e mais desamparados.
Senhor Presidente:
O Iraque não é Saddam. São 22 milhões de mães e filhos, e de homens que trabalham e sonham como fazem os comuns norte-americanos. Preocupamo-nos com os males do regime de Saddam Hussein que são reais. Mas esquece-se os horrores da primeira guerra do Golfo em que perderam a vida mais de 150000 homens.
O que está destruindo massivamente os iraquianos não são as armas de Saddam. São as sanções que conduziram a uma situação humanitária tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações Unidas (Dennis Halliday e Hans Von Sponeck) pediram a demissão em protesto contra essas
mesmas sanções. Explicando a razão da sua renúncia, Halliday escreveu:
"Estamos destruindo toda uma sociedade. É tão simples e terrível como isso. E isso é ilegal e imoral". Esse sistema de sanções já levou à morte meio milhão de crianças iraquianas.
Mas a guerra contra o Iraque não está para começar. Já começou há muito tempo. Nas zonas de restrição aérea a Norte e Sul do Iraque acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12 anos. Acredita-se que 500 iraquianos foram mortos desde 1999. O bombardeamento incluiu o uso
massivo de urânio empobrecido (300 toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo)
Livrar-nos-emos de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros da lógica da guerra e da arrogância. Não quero que os meus filhos (nem os seus) vivam dominados pelo fantasma do medo. E que pensem que, para viverem tranquilos, precisam de construir uma fortaleza. E que só estarão seguros
quando se tiver que gastar fortunas em armas. Como o seu país que dispende 270.000.000.000.000 dólares (duzentos e setenta biliões de dólares) por ano para manter o arsenal de guerra. O senhor bem sabe o que essa soma poderia ajudar a mudar o destino miserável de milhões de
seres.
O bispo americano Monsenhor Robert Bowan escreveu- lhe no final do ano passado uma carta intitulada "Porque é que o mundo odeia os EUA?" O bispo da Igreja Católica da Florida é um ex--combatente na guerra do Vietname. Ele sabe o que é a guerra e escreveu: "O senhor reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo, Sr. Presidente ! Somos alvos dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos dos
terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas. Em quantos países agentes do nosso governo depuseram líderes popularmente eleitos substituindo-os por ditadores militares, fantoches desejosos de vender o seu próprio povo às corporações
norte-americanas multinacionais? E o bispo conclui: O povo do Canadá desfruta de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como o povo da Noruega e da Suécia. Alguma vez o senhor ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas, norueguesas ou suecas? Nós somos odiados não porque praticamos a democracia, a liberdade ou os direitos humanos. Somos odiados porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas multinacionais."
Senhor Presidente:
Sua Excelência parece não necessitar que uma instituição internacional legitime o seu direito de intervenção militar. Ao menos que possamos nós encontrar moral e verdade na sua argumentação. Eu e mais milhões de cidadãos não ficamos convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós preferíamos vê-lo assinar a Convenção de Kyoto para conter o efeito de estufa. Preferíamos tê-lo visto em Durban na Conferência Internacional contra o Racismo.
Não se preocupe, senhor Presidente.
Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos feito.
Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos constituir? A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria.
Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do "apartheid" - violava de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas fomos vítimas da
agressão desse regime. Mas o regime do "apartheid" mereceu da vossa parte uma atitude mais branda: o chamado "envolvimento positivo". O ANC esteve também na lista negra como uma "organização terrorista!".
Estranho critério que levaria a que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de "freedom fighters" por estrategas norte-americanos.
Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um país. Sim, um país que não conseguia dormir. Porque vivia sobressaltado por terríveis
factos. E esse temor fez com que proclamasse uma exigência. Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição massiva.
Por razão desses terríveis perigos eu exigia mais: que inspectores das Nações Unidas fossem enviados para o vosso país. Que terríveis perigos me alertavam? Que receios o vosso país me inspiravam? Não eram produtos de sonho, infelizmente. Eram factos que alimentavam a minha
desconfiança. A lista é tão grande que escolherei apenas alguns:
- Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou bombas atómicas sobre outras nações;
- O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso ilegítimo da força" pelo Tribunal Internacional de Justiça;
- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto de derrubarem os invasores russos no Afeganistão;
- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo o gaseamento dos curdos em 1988);
- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice Lumumba foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e torturado e baleado na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido clorídico;
- Como tantos outros fantoches, Mobutu Seseseko foi por vossos agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire tornou-se o maior em África. A ditadura brutal deste zairense não mereceu nenhum reparo dos
EUA até que ele deixou de ser conveniente, em 1992;
- A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios mereceu o apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas, a resposta da Administração Clinton foi "o assunto é da responsabilidade do governo indonésio e não queremos retirar-lhe essa responsabilidade";
- O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant, um dos líderes mais sanguinários do Taiti, cujas forças para-militares massacraram milhares de inocentes. Constant foi julgado à revelia e as novas autoridades solicitaram a sua extradição. O governo americano recusou o pedido.
- Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA bombardeou no Sudão uma fábrica de medicamentos, designada Al-Shifa. Um engano? Não, tratava-se de uma retaliação dos atentados bombistas de Nairobi e Dar-es-Saalam.
- Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único país (junto com Israel) a votar contra uma moção de condenação ao terrorismo internacional. Mesmo assim, a moção foi aprovada pelo voto de cento e cinquenta e três países.
- Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra o Irão na sequência do qual milhares de comunistas do Tudeh foram massacrados. A lista de golpes preparados pela CIA é bem longa.
- Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA bombardearam: a China (1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala (1954), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala (1960), o Congo (1964), o Peru (1965), o Laos (1961-1973), o Vietname (1961-1973), o Camboja (1969-1970), a Guatemala (1967-1973), Granada (1983), Líbano (1983-1984), a Líbia (1986), Salvador (1980), a Nicarágua (1980), o Irão (1987), o Panamá (1989), o Iraque (1990-2001), o Kuwait (1991), a
Somália (1993), a Bósnia (1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão
(1998), a Jugoslávia (1999)
- Acções de terrorismo biológico e químico foram postas em prática pelos EUA: o agente laranja e os desfolhantes no Vietname, o vírus da peste contra Cuba que durante anos devastou a produção suína naquele país.
- O Wall Street Journal publicou um relatório que anunciava que 500 000 crianças vietnamitas nasceram deformadas em consequência da guerra química das forças norte-americanas.
Acordei do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade. A guerra que o Senhor Presidente teimou em iniciar poderá libertar-nos de um ditador.
Mas ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores dificuldades nas nossas já precárias economias e teremos menos esperança num futuro governado pela razão e pela moral. Teremos menos fé na força reguladora das Nações Unidas e das convenções do direito internacional. Estaremos,
enfim, mais sós e mais desamparados.
Senhor Presidente:
O Iraque não é Saddam. São 22 milhões de mães e filhos, e de homens que trabalham e sonham como fazem os comuns norte-americanos. Preocupamo-nos com os males do regime de Saddam Hussein que são reais. Mas esquece-se os horrores da primeira guerra do Golfo em que perderam a vida mais de 150000 homens.
O que está destruindo massivamente os iraquianos não são as armas de Saddam. São as sanções que conduziram a uma situação humanitária tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações Unidas (Dennis Halliday e Hans Von Sponeck) pediram a demissão em protesto contra essas
mesmas sanções. Explicando a razão da sua renúncia, Halliday escreveu:
"Estamos destruindo toda uma sociedade. É tão simples e terrível como isso. E isso é ilegal e imoral". Esse sistema de sanções já levou à morte meio milhão de crianças iraquianas.
Mas a guerra contra o Iraque não está para começar. Já começou há muito tempo. Nas zonas de restrição aérea a Norte e Sul do Iraque acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12 anos. Acredita-se que 500 iraquianos foram mortos desde 1999. O bombardeamento incluiu o uso
massivo de urânio empobrecido (300 toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo)
Livrar-nos-emos de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros da lógica da guerra e da arrogância. Não quero que os meus filhos (nem os seus) vivam dominados pelo fantasma do medo. E que pensem que, para viverem tranquilos, precisam de construir uma fortaleza. E que só estarão seguros
quando se tiver que gastar fortunas em armas. Como o seu país que dispende 270.000.000.000.000 dólares (duzentos e setenta biliões de dólares) por ano para manter o arsenal de guerra. O senhor bem sabe o que essa soma poderia ajudar a mudar o destino miserável de milhões de
seres.
O bispo americano Monsenhor Robert Bowan escreveu- lhe no final do ano passado uma carta intitulada "Porque é que o mundo odeia os EUA?" O bispo da Igreja Católica da Florida é um ex--combatente na guerra do Vietname. Ele sabe o que é a guerra e escreveu: "O senhor reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo, Sr. Presidente ! Somos alvos dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos dos
terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas. Em quantos países agentes do nosso governo depuseram líderes popularmente eleitos substituindo-os por ditadores militares, fantoches desejosos de vender o seu próprio povo às corporações
norte-americanas multinacionais? E o bispo conclui: O povo do Canadá desfruta de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como o povo da Noruega e da Suécia. Alguma vez o senhor ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas, norueguesas ou suecas? Nós somos odiados não porque praticamos a democracia, a liberdade ou os direitos humanos. Somos odiados porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas multinacionais."
Senhor Presidente:
Sua Excelência parece não necessitar que uma instituição internacional legitime o seu direito de intervenção militar. Ao menos que possamos nós encontrar moral e verdade na sua argumentação. Eu e mais milhões de cidadãos não ficamos convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós preferíamos vê-lo assinar a Convenção de Kyoto para conter o efeito de estufa. Preferíamos tê-lo visto em Durban na Conferência Internacional contra o Racismo.
Não se preocupe, senhor Presidente.
A nós, nações pequenas deste mundo, não nos passa pela
cabeça exigir a vossa demissão por causa desse apoio que as vossas sucessivas
administrações concederam a não menos sucessivos ditadores. A maior ameaça que
pesa sobre a América não são armamentos de outros. É o universo de mentira que
se criou em redor dos vossos cidadãos. O perigo não é o regime de Saddam, nem
nenhum outro regime. Mas o sentimento de superioridade que parece animar o seu
governo.
O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos.
Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação e consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar.
Mia Couto
O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos.
Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação e consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar.
Mia Couto
Março de 2003
MENSAGEM DE MIA
COUTO
Para
os beirenses, nomeadamente da geração de 60/70, este conterrâneo não precisa de
apresentações. Com ele brincaram, cresceram e estudaram; com ele se cruzaram na
praia , nos cinemas, nos clubes desportivos, nas ruas, jardins e praças da
cidade.
É de
há muitos anos a esta parte uma figura pública de renome e prestígio
internacional de que muito se orgulham os beirenses em particular e os
moçambicanos em geral! Notabilisado como escritor, a sua já vasta obra está
publicada em diversos idiomas, com edições sucessivamente esgotadas e
reeditadas.
Jornalista,
professor, biólogo e escritor, são títulos que encimam o seu vasto curriculo,
recheado de prémios e distinções diversas. Não admira pois que ele seja, na
actualidade, um dos escritores de língua portuguesa mais lidos e disputados
pelas televisões, rádios, jornais e revistas para entrevistas a propósito não só
da sua obra como de acontecimentos do mundo das letras, das artes e da cultura
em geral e também do quotidiano de Moçambique!
Quis
o destino que a família Couto se cruzasse
com a nossa, por casamento de um dos filhos – o mais novo - com a nossa filha Paula! Nasceu uma fraternal
amizade entre nós, que permanece
sólida.
Acresce
a este salutar relacionamento uma outra afinidade muito especial com esta
família: são também apaixonados pela fauna bravia! No caso particular do Mia,
uma boa parte da sua vida é dedicada aos problemas do meio ambiente, já que, na
sua qualidade de biólogo desenvolve actividades relacionadas com a vida
selvagem. O seu filho mais velho seguiu-lhe os passos (também é biólogo). Ambos
estiveram e estão envolvidos nos projectos mais ousados dos últimos anos em
Moçambique, como são o Parque Transfronteiro (A.Sul,
Moçambique e Zimbabwe); Mozal; Reserva de Elefantes do Maputo; Gaz de
Moçambique; Parque Nacional do Bazaruto; Ilha da Inhaca, etc,, cujos estudos de impacto ambiental abrangem a
componente de fauna bravia. Ambos, também, deram o seu nome a uma interessante
publicação – Mamíferos de Moçambique -, livro-álbum
editado no corrente ano e que também tem a assinatura do Dr. Augusto Cabral,
outro biólogo (amigo de longa data) que
é director do Museu de História Natural de Maputo.
Sempre
que estamos juntos o tema preferido é, inevitavelmente, a fauna bravia e os
problemas envolventes, que infelizmente são muitos e cada vez mais difíceis de
resolver.
Este
moçambicano, beirense de gema e inveterado apaixonado pela sua terra, tem-nos
contado estórias muito interessantes àcerca da sua condição de “produto
colonial”. Uma delas, passada na Europa, numa recepção que lhe foi feita a
propósito do lançamento de mais uma das suas obras, onde o anfitrião e demais
elementos da organização não lhe deram qualquer atenção à chegada, porque - confessaram depois -, não o
reconheceram uma vez que contavam ser negro o escritor Mia Couto! Um embaraço
que já se repetiu noutras ocasiões porque a tacanhez de muitos europeus não
vislumbra a realidade moçambicana!
Deixamos
aqui a mensagem que este ilustre beirense dirigiu, no passado dia 7, aos seus
conterrâneos, nomeadamente desta Comunidade, bem como a foto que registou o
momento em que escreveu a mesma. Ficam também
fotos das capas dos seus dois últimos livros e outra dos manos Couto com
o seu progenitor - o Jornalista e Poeta Fernando Couto que viveu e trabalhou
muitos anos na Beira e depois em Maputo, passando pelo “Notícias” e pela Escola
de Jornalismo (que dirigiu), mantendo-se ainda activo quer na escrita quer como
gerente da editora moçambicana Ndjira.
TEOR
DESTA MENSAGEM:
“À comunidade Beirense:
Há lugares que não
são apenas sítios onde vivemos. São parte da nossa vida, são a nossa vida. A
cidade onde nascemos é um lugar onde continuamos a nascer. Essa cidade (que é
mais água que terra) somos nós, com as nossas lembranças, as nossas saudades. E
a esperança que aquela seja uma cidade carregada de futuro.
Um abraço
deste beirense
Mia Couto
Maputo/
7.12.02”
|
Momento
em que o Mia Couto escrevia a Mensagem, num recanto da sua casa em
Maputo.
A
minha neta mais nova (Dania) e eu,
assistimos.
Maputo, 9 de Dezembro do ano capicua de 2002
Celestino (Marrabenta)
Nota do
MACUA DE MOÇAMBIQUE: O Celestino que me perdoe a ousadia.
Mia Couto in
SAVANA
13.12.2003
Rico é quem possui meios de
produção. Rico é quem gera dinheiro» dá emprego. Endinheirado é quem
simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o
dinheiro é que o tem a ele. A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos
“ricos”. Aquilo que têm, não detêm. Pior, aquilo que exibem como seu, é
propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém,
estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram.
Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitariam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por os lançar a eles próprios na cadeia. Necessitariam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.
O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.
As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. O fausto das residências chama grades, vedações electrificadas e guardas privados. Mas por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam.
Coitados dos novos ricos. São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam ser sustentados com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.
Os nossos endinheirados-às-pressas não se sentem bem na sua própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos. Aspiram ser outros, distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles imitando os outros, assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares verdadeiramente ricos. Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são capazes de resolver o mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros. Esses outros que os vêem passear-se nos mal-explicados luxos. Esses outros que reconhecem neles uma tradução de uma mentira. A nossa elite endinheirada não é uma elite: é uma falsificação, uma imitação apressada.
A luta de libertação nacional guiou-se por um princípio moral: não se pretendia substituir uma elite exploradora por outra, mesmo sendo de uma outra raça. Não se queria uma simples mudança de turno nos opressores. Estamos hoje no limiar de uma decisão: quem faremos jogar no combate pelo desenvolvimento? Serão estes que nos vão representar nesse relvado chamado “a luta pelo progresso”? Os nossos novos ricos (que nem sabem explicar a proveniência dos seus dinheiros) já se tomam a si mesmos como suplentes, ansiosos pelo seu turno na pilhagem do país.
São nacionais mas só na aparência. Porque estão prontos a serem moleques de outros, estrangeiros. Desde que lhes agitem com suficientes atractivos irão vendendo o pouco que nos resta. Alguns dos nossos endinheirados não se afastam muito dos miúdos que pedem para guardar carros. Os novos candidatos a poderosos pedem para ficar a guardar o país. A comunidade doadora pode irás compras ou almoçar à vontade que eles ficam a tomar conta da nação. Os nossos ricos dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem criancas que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns b
|
Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza. Como eu sonhava que Moçambique tivesse ricos de riqueza verdadeira e de proveniência limpa! Ricos que gostassem do seu povo e defendessem o seu país. Ricos que criassem riqueza. Que criassem emprego e desenvolvessem a economia. Que respeitassem as regras do jogo. Numa palavra, ricos que nos enriquecessem. Os índios norte-americanos que sobreviveram ao massacre da colonização operaram uma espécie de suicídio póstumo: entregaram-se à bebida até dissolverem a dignidade dos seus antepassados. No nosso caso, o dinheiro pode ser essa fatal bebida. Uma parte da nossa elite está pronta para reallzar esse suicídio histórico. Que se matem sozinhos. Não nos arrastem a nós e ao país inteiro nesse afundamento.
Savana
Maputo 20.02.04
A ASA DA LETRAPOR MIA COUTO
Plastificar a
cidade?
Num país em que as pessoas morrem por doenças de
fácil cura, a morte de uma palmeira é completamente irrelevante. Mesmo que, em
vez de morte, tenha havido assassinato. E mesmo que, em vez de uma palmeira,
tenham sido assassinadas dezenas de palmeiras. Maputo fez-se bonita para a
Cimeira da União Africana. Palmeiras foram adquiridas (e não foram nada baratas)
para embelezar a mais nobre das avenidas da cidade. O cidadão comum sabia que
esse dinheiro saía do seu bolso. Mas estava até feliz
por colaborar no renovar do rosto da cidade. Da sua cidade.
As palmeiras reais vieram e fizeram um vistaço. Os
Maputenses passeavam-se, com acrescida vaidade, pela larga avenida. Mas as
palmeiras têm um enorme inconveniente: são seres vivos. E pedem rega. Apenas
depois de terem sido plantadas é que se iniciaram obras estranhíssimas de
abre-e-fecha buraco, põe-e-tira tubagem. As palmeiras, pacientes, ainda
esperaram. Mas estavam condenadas à morte. Uma a uma, começaram a secar.
Durante meses (e até hoje) ficaram os seus cadáveres
de pé como monumentos à nossa incapacidade. Não houve sequer pudor de lhes dar
destino. Elas sobraram ali, como provas de um criminoso desleixo. O cidadão que,
antes fora iluminado por súbita vaidade, agora se interrogava: ali mesmo nas
barbas da Presidência da República ?
A morte destas palmeiras interessa, sobretudo, como
sintoma de um relaxamento que atingiu Moçambique. A folhagem seca dessas
palmeiras é uma espécie de bandeira hasteada desse abandalhamento. Não se
trata, afinal, de uma simples morte de umas tantas árvores. Não tarda a que
Maputo receba um outro evento internacional. Compraremos outros adereços para a
cidade. Uns para embelezar de raiz, outros para maquilhar as olheiras de
Maputo. Dessa vez, porém, compremos palmeiras de plástico. Ou plastifiquemos
estas, já falecidas, depois de lhe passarmos uma demão de tinta verde. Ou, se
calhar, nem disso precisaremos: à velocidade com que espaços que deviam ser
verdes estão sendo ocupados por placards e anúncios publicitários não
necessitaremos de mais nada. Aliás, qualquer dia, Maputo nem precisa de vista
para o mar. Esta cidade que sempre foi uma varanda virada para o Indico está
prescindindo dessa beleza. Locais cuja beleza advinha da paisagem estão sendo
sistematicamente sendo ocupados por publicidade de tabaco, bebidas alcoólicas e
bugigangas diversas. Um dia destes, nem necessitaremos de ter mais cidade.
Trocamos a urbe por propaganda de mercadorias.
Depois, queixamo-nos da
globalização.
(Extraído do
Vertical
N° 781, 782 e 783 de Março 2005)
A opinião de: Mia Couto
*
Oração
de Sapiência na abertura do ano lectivo no ISCTEM
OS
SETE SAPATOS SUJOS
Começo
pela confissão de um sentimento conflituoso: é um prazer e uma honra ter
recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao mesmo tempo, não sei lidar
com este nome pomposo: “oração de sapiência”. De propósito, escolhi um tema
sobre o qual tenho apenas algumas, mal contidas, ignorâncias. Todos os dias
somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de
modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no
entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às
estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre
nós mesmos. Falo da dificuldade de nós pensarmos como sujeitos históricos, como
lugar de partida e como destino de um sonho.
Falarei
aqui na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno que é a nossa
interioridade, um território em que somos todos amadores. Neste domínio ninguém
tem licenciatura, nem pode ter a ousadia de proferir orações de “sapiência”. O
único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de
partilhar publicamente as nossas fragilidades. É isso que venho fazer, partilhar
convosco algumas das minhas dúvidas, das minhas solitárias
cogitações.
Começo
por um fait-divers. Há agora um anúncio nas nossas
estações de rádio em que alguém pergunta à vizinha: diga-me minha senhora, o
que é que se passa em sua casa, o seu filho é chefe de turma, as suas filhas
casaram muito bem, o seu marido foi nomeado director, diga-me, querida vizinha,
qual é o segredo? E a senhora responde: é que lá em casa nós comemos
arroz marca…(não digo a marca porque não me
pagaram este momento publicitário).
Seria
bom que assim que fosse, que a nossa vida mudasse só por consumirmos um produto
alimentar. Já estou a ver o nosso Magnifico Reitor a distribuir o mágico arroz e
a abrirem-se no ISCTEM as portas para o sucesso e para a felicidade. Mas ser- se feliz é, infelizmente,
muito mais trabalhoso.
No
dia em que eu fiz 11 anos de idade, a 5 de Julho de 1966, o Presidente Kenneth Kaunda veio aos microfones
da Rádio de Lusaka para anunciar que um dos grandes pilares da felicidade do seu
povo tinha sido construído. Não falava de nenhuma marca de arroz. Ele agradecia
ao povo da Zâmbia pelo seu envolvimento na criação da primeira universidade no
país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo
para que cada zambiano contribuísse para construir a Universidade. A resposta
foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo.
Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários deram
dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar aquilo que imaginavam
ser uma página nova na sua história. A mensagem dos camponeses na inauguração da
Universidade dizia: nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos
netos deixarão de passar fome.
Quarenta
anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de fome. Na
realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam naquela altura. Na década
de 60, a Zâmbia beneficiava de um Produto Nacional Bruto comparável aos de
Singapura e da Malásia. Hoje, nem de perto nem de longe, se pode comparar o
nosso vizinho com aqueles dois países da Ásia.
Algumas
nações africanas podem justificar a permanência da miséria porque sofreram
guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra. Alguns países podem argumentar que não
possuem recursos. Todavia, a Zâmbia é uma nação com poderosos recursos minerais.
De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Quem falhou? Foi a
Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E porque razão
Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?
Falei
da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente, não faltariam outros
exemplos. O nosso continente está repleto de casos idênticos, de marchas
falhadas, esperanças frustradas. Generalizou-se entre nós a descrença na
possibilidade de mudarmos os destinos do nosso continente. Vale a pena
perguntarmo-nos: o que está acontecer? O que é preciso mudar dentro e fora de
África?
Estas
perguntas são sérias. Não podemos iludir as respostas, nem continuar a atirar
poeira para ocultar responsabilidades. Não podemos aceitar que elas sejam apenas
preocupação dos governos.
Felizmente,
estamos vivendo em Moçambique uma situação particular, com diferenças bem
sensíveis. Temos que reconhecer e ter orgulho que o nosso percurso foi bem
distinto. Acabamos recentemente de presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957,
apenas seis entre 153 chefes de estado africanos renunciaram voluntariamente ao
poder. Joaquim Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um detalhe mas é
bem indicativo que o processo moçambicano se guiou por outras lógicas bem
diversas.
Contudo,
as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só serão
definitivas quando se converterem em cultura de cada um de nós. E esse é ainda
um caminho de gerações. Entretanto, pesam sobre Moçambique ameaças que são
comuns a todo o continente. A fome, a miséria, as doenças, tudo isso nós partilhamos com o
resto de África. Os números são aterradores: 90 milhões de africanos morrerão
com SIDA nos próximos 20 anos. Para esse trágico número, Moçambique terá
contribuído com cerca de 3 milhões de mortos. A maior parte destes condenados
são jovens e representam exactamente a alavanca com que poderíamos remover o
peso da miséria. Quer dizer, África não está só perdendo o seu próprio presente:
está perdendo o chão onde nasceria um outro amanhã.
Ter
futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter passado. Antes da
Independência, para os camponeses zambianos não havia futuro. Hoje o único tempo
que para eles existe é o futuro dos outros.
Os
desafios são maiores que esperança? Mas nós não podemos senão ser optimistas e
fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a
volta por cima. O pessimismo é um luxo para os ricos.
A
pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro que todos queremos?
Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais.
Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos.
Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra
coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude.
Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter
mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de
futuro.
Falo
de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela
compõe um conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há
muito que venho defendendo que o maior factor de atraso em Moçambique não se
localiza na economia mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo,
ousado e inovador. Um pensamento que não resulte da repetição de lugares comuns,
de fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.
Às
vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nós pensarmos como sujeitos da
História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa
própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a
ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram
estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da
História.
Estamos
todos nós estreando um combate interno para domesticar os
nosso antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o actual
fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu
contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos
novos. Haverá muitos. Mas eu tinah que escolher e sete é um número
mágico.
O
primeiro sapato: a ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos
sempre vítimas
Nós
já conhecemos este discurso. A culpa já foi da guerra, do colonialismo, do
imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e de todos. Menos nossa. É verdade
que os outros tiveram a sua dose de culpa no nosso sofrimento. Mas parte da
responsabilidade sempre morou dentro de casa.
Estamos
sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização. Esta lavagem de mãos
tem sido estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na
impunidade. Os culpados estão à partida encontrados: são os outros, os da outra
etnia, os da outra raça, os da outra geografia.
Há
um tempo atrás fui sacudido por um livro intitulado Capitalist Nigger: The Road
to Success de um nigeriano chamado Chika A. Onyeani. Reproduzi num jornal nosso
um texto desse economista que é um apelo veemente para que os africanos renovem
o olhar que mantém sobre si mesmos. Permitam-me que leia aqui um excerto dessa
carta.
Caros
irmãos: Estou completamente cansado de pessoas que só pensam numa coisa:
queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente como
vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos. Queixamo-nos até à náusea
sobre o que os outros nos fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo
nos deve qualquer coisa. Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão.
Ninguém nos deve nada. Ninguém está disposto a abdicar daquilo que tem, com a
justificação que nós também queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o
saber conquistar. Não podemos continuar a mendigar, meus irmãos e minhas
irmãs.
40
anos depois da Independência continuamos a culpar os
patrões coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos dias. Os nossos
dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para aceitar a sua
responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e
pilhar os recursos naturais de África. Mas eu pergunto-vos: digam-me, quem está
a convidar os europeus para assim procederem, não somos nós? (fim da citação)
Queremos
que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas ao mesmo tempo
continuamos olhando para nós mesmos com benevolência complacente: Somos peritos
na criação do discurso desculpabilizante. E dizemos:
·
Que
alguém rouba porque, coitado, é pobre (esquecendo que há milhares de outros
pobres que não roubam)
·
Que
o funcionário ou o polícia são corruptos porque, coitados, tem um salário
insuficiente (esquecendo que ninguém, neste mundo, tem salário
suficiente)
·
Que
o político abusou do poder porque, coitado, na tal África profunda, essas
praticas são antropologicamente legitimas
A
desresponsabilização é um dos estigmas mais graves que pesa sobre nós, africanos
de Norte a Sul. Há os que dizem que se trata de uma herança da escravatura,
desse tempo em que não se era dono de si mesmo. O patrão, muitas vezes longínquo
e invisível, era responsável pelo nosso destino. Ou pela ausência de destino.
Hoje,
nem sequer simbolicamente, matamos o antigo patrão. Uma das formas de tratamento
que mais rapidamente emergiu de há uns dez anos para cá foi a palavra “patrão”.
Foi como se nunca tivesse realmente morrido, como se espreitasse uma
oportunidade histórica para se relançar no nosso quotidiano. Pode-se culpar
alguém desse ressurgimento? Não. Mas nós estamos criando uma sociedade que
produz desigualdades e que reproduz relações de poder que acreditávamos estarem
já enterradas.
Segundo
sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho
Ainda
hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano vai mandar
exorcizar o seu palácio de 300 quartos porque ele escuta ruídos “estranhos”
durante a noite. O palácio é tão desproporcionado para a riqueza do país que
demorou 20 anos a ser terminado. As insónias do presidente poderão nascer não de
maus espíritos mas de uma certa má consciência.
O
episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda explicamos os
fenómenos positivos e negativos. O que explica a desgraça mora junto do que
justifica a bem-aventurança. A equipe desportiva ganha, a obra de arte é
premiada, a empresa tem lucros, o funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a
quê? A primeira resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à
boa sorte. E a palavra “boa sorte” quer dizer duas coisas: a protecção dos
antepassados mortos e protecção dos padrinhos vivos.
Nunca
ou quase nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do trabalho como um
investimento a longo prazo. As causas do que nos sucede (de bom ou mau) são
atribuídas a forças invisíveis que comandam o destino. Para alguns esta visão
causal é tida como tão intrinsecamente “africana” que perderíamos “identidade”
se dela abdicássemos. Os debates sobre as “autenticas” identidades são sempre
escorregadios. Vale a pena debatermos, sim, se não poderemos reforçar uma visão
mais produtiva e que aponte para uma atitude mais activa e interventiva sobre o
curso da História.
Infelizmente
olhamo-nos mais como consumidores do que produtores. A ideia de que África pode
produzir arte, ciência e pensamento é estranha mesmo para muitos africanos. Ate
aqui o continente produziu recursos naturais e força laboral.
Produziu
futebolistas, dançarinos, escultores. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no
domínio daquilo eu se entende como natureza”. Mas já poucos aceitarão que os
africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de modernidade. Não é
preciso que os outros desacreditem. Nós próprios nos encarregamos dessa
descrença.
O
ditado diz. “o cabrito come onde está amarrado”. Todos
conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a acção de
gente que tira partido das situações e dos lugares. Já é triste que nos
equiparemos a um cabrito. Mas também é sintomático que, nestes provérbios de
conveniência nunca nos identificamos como os animais produtores, como é por
exemplo a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passar a ser assim: “Cabrito
produz onde está amarrado.” Eu aposto que, nesse caso, ninguém mais queria ser
cabrito.
Terceiro
sapato- O preconceito de quem
critica é um inimigo
Muitas
acreditam que, com o fim do monopartidarismo, terminaria a intolerância para com
os que pensavam diferente. Mas a intolerância não é apenas fruto de regimes. É
fruto de culturas, é o resultado da História. Herdamos da sociedade rural uma
noção de lealdade que é demasiado paroquial. Esse desencorajar do espírito
crítico é ainda mais grave quando se trata da juventude. O universo rural é
fundado na autoridade da idade. Aquele que é jovem, aquele que não casou nem
teve filhos, esse não tem direitos, não tem voz nem visibilidade. A mesma marginalização pesa sobre a mulher.
Toda
essa herança não ajuda a que se crie uma cultura de discussão frontal e aberta.
Muito do debate de ideias é, assim, substituído pela agressão pessoal. Basta
diabolizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demónios à
disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem
social ou religiosa diversa.
Há
neste domínio um componente histórico recente que devemos considerar: Moçambique
nasceu da luta de guerrilha. Essa herança deu-nos um sentido épico da história e
um profundo orgulho no modo como a independência foi conquistada. Mas a luta
armada de libertação nacional também cedeu, por inércia, a ideia de que o povo
era uma espécie de exército e podia ser comandado por via de disciplina militar.
Nos anos pós-independência, todos éramos militantes, todos tínhamos uma só
causa, a nossa alma inteira vergava-se em continência na presença dos chefes. E
havia tantos chefes. Essa herança não ajudou a que nascesse uma capacidade de
insubordinação positiva.
Faço-vos
agora uma confidência. No início da década de 80 fiz parte de um grupo de
escritores e músicos a quem foi dada a incumbência de produzir um novo Hino
Nacional e um novo Hino para o Partido Frelimo. A forma como recebemos a tarefa
era indicadora dessa disciplina: recebemos a missão, fomos requisitados aos
nossos serviços, e a mando do Presidente Samora Machel fomos fechados numa
residência na Matola, tendo-nos sido dito: só saem daí quando tiverem feito os
hinos. Esta relação entre o poder e os artistas só é pensável num dado quadro
histórico. O que é certo é que nós aceitámos com dignidade essa incumbência,
essa tarefa surgia como uma honra e um dever patriótico. E realmente lá nos
comportamos mais ou menos bem. Era um momento de grandes dificuldades …e as
tentações eram muitas. Nessa residência na Matola havia comida, empregados,
piscina… num momento em que tudo isso faltava na cidade. Nos primeiros dias,
confesso nós estávamos fascinados com tanta mordomia e ficávamos preguiçando e
só corríamos para o piano quando ouvíamos as sirenes dos chefes que chegavam.
Esse sentimento de desobediência adolescente era o nosso modo de exercermos uma
pequena vingança contra essa disciplina de regimento.
Na
letra de um dos hinos lá estava reflectida essa tendência militarizada, essa
aproximação metafórica a que já fiz referência:
Somos
soldados do povo
Marchando
em frente
Tudo
isto tem que ser olhado no seu contexto sem ressentimento. Afinal, foi assim,
que nasceu a Pátria Amada, este hino que nos canta como um só povo, unido por um
sonho comum.
Quarto
sapato: a ideia que mudar as palavras muda a realidade
Uma
vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da
nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo.
Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que
interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte
recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente
incorrectos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro,
etc…
Nós
fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um
discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o
bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se
devemos dizer “negro” ou “preto”. Como se o problema estivesse nas palavras, em
si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos
mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de
monhé.
Há
toda uma geração que está aprendendo uma língua – a língua dos workshops. É uma
língua simples uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o
português. Na realidade, não é uma língua mas um vocabulário de pacotilha. Basta
saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros isto é,
para não dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por
exemplo:
-
desenvolvimento sustentável
-
awarenesses ou accountability
-
boa governação
-
parcerias sejam elas inteligentes ou não
- comunidades locais
Estes
ingredientes devem ser usados de preferência num formato “powerpoint. Outro
segredo para fazer boa figura nos workshops é fazer uso de umas tantas siglas.
Porque um workshopista de categoria domina esses códigos. Cito aqui uma possível
frase de um possível relatório: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e
ao PARPA do GOM. Para bom entendedor meia sigla basta.
Sou
de um tempo em que o que éramos era medido pelo que fazíamos. Hoje o que somos é
medido pelo espectáculo que fazemos de nós mesmos, pelo modo como nos colocamos
na montra. O CV, o cartão de visitas cheio de requintes e títulos, a
bibliografia de publicações que quase ninguém leu, tudo isso parece sugerir uma
coisa: a aparência passou a valer mais do que a capacidade para fazermos coisas.
Muitas
das instituições que deviam produzir ideias estão hoje produzindo papéis,
atafulhando prateleiras de relatórios condenados a serem arquivo morto. Em lugar
de soluções encontram-se problemas. Em lugar de acções sugerem-se novos
estudos.
Quinto
sapato A vergonha de ser pobre e o culto das aparências
A
pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A
nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é
o pobre mas quem cria pobreza.
Vivemos
hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se
a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais
pobres.
Recordo-me
que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo.
Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um
ataque. “Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível”. O
termo é curioso: “compatível”.
Estamos
vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto
funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de
vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de
santuário, numa verdadeira obsessão promocional.
Esta
doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente
do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a
marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de
ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de
automóvel.
É
urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores
positivos.
A
arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma
essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem
pelo conteúdo.
Sexto
Sapato A passividade perante a injustiça
Estarmos
dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o
nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a
injustiça é praticada contra os outros. Persistem em Moçambique zonas
silenciosas de injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me em particular à:
-
violência domestica (40 por cento dos crimes resultam
de agressão domestica contra mulheres, esse é um crime
invisível)
- violência contra as viúvas
-
à forma aviltante como são tratados muitos dos
trabalhadores
-
aos maus tratos infligidos às
crianças
Ainda
há dias ficamos escandalizados com o recente anúncio que privilegiava candidatos
de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correcto.
Contudo, existem convites à discriminação que são tão ou mais graves e que
aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.
Tomemos
esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma
correcta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei se todos estão a par
de qual é a tiragem do jornal Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se
aceitarmos que cada jornal é lido por 5 pessoas, temos que o numero de leitores
é menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que
circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de
lado o problema da circulação. Por que geografia restrita circulam as mensagens
dos nossos jornais? Quanto de Moçambique é deixado de fora ?
É
verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio racista porque não
é não resultado de acção explícita e consciente. Mas os efeitos de discriminação
e exclusão destas práticas sociais devem ser pensados e não podem cair no saco
da normalidade. Esse “bairro” das 60 000 pessoas é hoje uma nação dentro da
nação, uma nação que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em
português e dorme na almofada na escrita.
Um
outro exemplo. Estamos administrando anti-retro-virais
a cerca de 30 mil doentes com SIDA. Esse número poderá, nos próximos anos,
chegar aos 50 000. Isso significa que cerca de um milhão quatrocentos e
cinquenta mil doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com
implicações éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável,
pergunto, que a vida de um milhão e meio de cidadãos esteja nas mãos de um
pequeno grupo técnico?
Sétimo
sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que
imitar os outros
Todos
os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa.
Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual
familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora,
dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vem
dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como
nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem
somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.
O
resultado é que a produção cultural nossa se está convertendo na reprodução
macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma
espécie de hip-hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o Mac Donald’s.
Falamos
da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão
das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua
portuguesa) e a ideia que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos
de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos
americanos.
O
nosso corpo social tem a uma história similar a de um indivíduo. Somos marcados
por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o fim da adolescência, o
fim da vida.
Eu
olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser
diferentes ? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como
fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos
dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é
decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso
a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e
grinaldas e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir
uma cerimónia mais enraizada na terra e na tradição moçambicanas.
Falei
da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo inteiro na
modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós
somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa
modernidade de que sejamos também construtores.
A
minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós
necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz
de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas,
necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas
de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e
num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos outros não ajuda.
Necessitamos de inventar os nossos próprios pontos cardeais. Interessa-nos um
passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que
não nos venha desenhado como um receita financeira.
A
Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa, uma
forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva. Não podemos treinar
jovens profissionais de sucesso num oceano de miséria. A Universidade não pode
aceitar ser reprodutor da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com
jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse
pensamento não se encomenda, não nasce sozinho. Nasce do debate, da pesquisa
inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor está surgindo em
África e no mundo.
A
questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou
melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa
condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e
uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a SIDA, a droga, o
desemprego).
Não
foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o naufrago vê num barco
salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos nessa conta.
Numa
sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso nacionalista
disse, com verdade e com coragem, o que já muitos sabíamos. Ele confessou que
ele mesmo e muitos dos que, nos anos 60, fugiam para a FRELIMO não eram apenas
motivados por dedicação a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e
saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio
pela educação como um passaporte para uma vida melhor estava presente um
universo em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a toda a
África. Até 1940 o número de africanos que frequentavam escolas secundárias não
chegava a 11 000. Hoje, a situação melhorou e esse número foi
multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na
criação de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dúvida,
resultados importantes.
Aos
poucos se torna claro, porém, que mais quadros técnicos não resolvem, só por si,
a miséria de uma nação. Se um país não possuir estratégias viradas para a
produção de soluções profundas então todo esse investimento não produzirá a
desejada diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o
enriquecimento rápido de uma pequena elite então de pouco valerá termos mais
quadros técnicos.
A
escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, nos ensina a
termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos ser
verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós,
professores e pais, também estamos à procura de respostas.
Com
o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso é correcto e é
oportuno. Temos que gostar de nós mesmos, temos que acreditar nas nossas
capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser fundado numa vaidade
vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem fundamento. Alguns acreditam que
vamos resgatar esse orgulho na visitação do passado. É verdade que é preciso
sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a auto-estima não
pode ser construída apenas de materiais do passado.
Na
realidade, só existe um modo de nos valorizar: é pelo trabalho, pela obra que
formos capazes de fazer. É preciso que saibamos aceitar esta condição sem
complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela
História. Mas nós fizemos parte dessa História, fomos também empobrecidos por
nós próprios. A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro
de nós.
Mas
a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós.
Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do
nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos
construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso
que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que
atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade é uma: antes vale andar
descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.
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