Sobre a imaginação política (3)
Onde está o projecto de Independência económica?
Há um ano, anunciou-se um novo ciclo político sob a promessa de ruptura com o passado e de inauguração duma nova era. O discurso inaugural falava de “independência económica”, “modernização” e “fazer diferente para ter resultados diferentes”. Um ano depois, o país não dispõe dum único documento, discurso programático ou plano conceitual que explique como estas palavras se traduzem em transformação efectiva. O governo tem slogans, sim, mas ainda não mostrou a ninguém o seu projecto. Tem discursos de motivação (por exemplo, os recentes discursos presidenciais nos conselhos coordenadores), mas não tem teoria de mudança. Esse vazio não me parece acidental. Ele revela a fragilidade estratégica que caracteriza a nossa vida política e a razão pela qual continuamos a confundir vontade com capacidade.
A chamada “independência económica” tornou-se o principal slogan deste ciclo, repetido com convicção e dramatismo, mas nunca explicado. O que significa? De que instrumentos depende? Em que horizontes se enquadra? Com que actores se conta? Que reformas institucionais exige? E, sobretudo, que diagnóstico do país pressupõe? A resposta oficial a estas perguntas, que eu saiba, nunca foi dada. O que temos não passa de algo simbólico, onde independência económica aparece como estado de espírito, e não como arquitectura política. É tratada como resultado desejado, não como processo que requer escolhas difíceis e reformas profundas. Assim, o slogan, que podia ser um ponto de partida para uma estratégia nacional séria, acaba por funcionar como truque retórico que adia o debate essencial sobre a reforma do Estado que passa, para que conste, pela reforma profunda da Frelimo.
Nenhuma independência económica é possível sem um Estado capaz, sem instituições que funcionem, sem contratos transparentes, sem administração pública profissionalizada, sem separação nítida entre governo e Estado, sem justiça confiável e sem regras claras que vinculem o poder político. Nenhuma! O governo fala de independência económica como se dependesse de vontade, mas a independência real, a única que interessa, depende de institucionalidade. Só existe quando os mercados funcionam com previsibilidade, quando os investidores sabem que contratos serão respeitados, quando a economia doméstica não é capturada por interesses partidários, quando a política fiscal é racional e quando o poder executivo é limitado pela legalidade e pelo escrutínio. Nada disto existe por decreto. Tudo isto exige uma teoria de mudança.
O nosso problema estrutural é que o governo não tem uma teoria de mudança, ou pelo menos eu não a vejo em sítio nenhum. O governo ainda não explicou como quer transformar o Estado – analisei entrevistas de ministros aqui e não vi nada realmente programático – reformar a burocracia, profissionalizar a administração, reconstruir a confiança pública, diminuir a captura partidária, fortalecer instituições independentes ou criar condições para que a economia funcione com lógica própria. O governo fala de fazer diferente, mas não explica o que no modelo actual será abandonado, modificado ou reconstruído. Não há diagnóstico claro do que falhou, das razões pelas quais falhou, nem da maneira como as falhas podem ser corrigidas. O país vive suspenso num vazio conceitual onde tudo é vontade e nada é estrutura.
Assim, slogans como “vamos trabalhar” tornam-se simulacros de responsabilidade. Trabalhar em quê? Com que prioridades? Com que meios? Segundo que modelo de gestão pública? Noutros contextos, um governo que proclama uma mudança desta magnitude publica uma estratégia nacional (tipo “white paper”), uma doutrina política ou um plano estruturado de reformas. Aqui, temos apenas proclamações semanais e apelos a um esforço colectivo não enquadrado por diagnóstico, nem método. A ausência de método é, em si mesma, uma forma de desistência. Quando não se quer enfrentar a complexidade, proclama-se intenção.
A imaginação política, essa faculdade que permite conceber futuros possíveis com base em análise e responsabilidade, está ausente do governo. No seu lugar instalou-se uma estética da determinação, tipo uma liturgia da vontade, que substitui pensamento por moralismo. Mas nenhum país se transforma porque um presidente é determinado. Transforma-se porque um presidente é capaz de conceber um projecto político e construir consenso institucional para o executar. E consenso institucional não se constrói com slogans, mas sim com clareza de diagnóstico, rigor de prioridades e coragem em fazer reformas, sobretudo do poder político.
Ao fim dum ano, a ausência de projecto político começa a revelar as suas consequências que eram, de resto, de esperar dada a disfuncionalidade da Frelimo dos últimos dez anos. Decisões avulsas, incapacidade de enquadrar crises e, sobretudo, uma crescente distância entre expectativas e realidade. O país continua sem saber que tipo de Estado pretende construir, que tipo de economia deseja estruturar e que modelo de desenvolvimento orienta as decisões. Continuamos a viver de reacções e improvisos, num ambiente político que não consegue converter a promessa de mudança em programa de transformação. Falta-nos imaginação, não no sentido de fantasia, mas no sentido de visão. Somos praticamente colhidos de surpresa por Trump, pela TotalEnergies, pelos britânicos ou pelos suecos. E depois escrevemos artigos indignados a proclamar soberania...
A independência económica pressupõe, em minha opinião, uma refundação institucional que podia consistir em retirar o Estado da lógica partidária, reconstruir sistemas de integridade pública, criar mecanismos de controlo real, abrir espaço para a crítica e responsabilização, profissionalizar a administração, desconcentrar o poder e criar estabilidade regulatória. Alguém vê sinais disto? Significaria, sobretudo, repensar o próprio exercício do poder político, aceitando que uma democracia não se mede pela força do governo, mas pela força das instituições que limitam o governo.
A imaginação política exige a coragem de formular uma teoria de mudança, de apresentá-la publicamente e de se deixar vincular por ela. Ter medo de explicar o seu projecto é ter medo do país. E um país que aceita governar-se por slogans renuncia à possibilidade dum futuro pensado e, portanto, construído.
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