quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

O essencial da política e o supérfluo da gestão

 Elisio Macamo

2 d 
O essencial da política e o supérfluo da gestão
Hoje li que o Presidente da República ia assinar contratos-programa com ministros e gestores séniores do Estado. Ao que parece, são instrumentos de compromisso, com metas e indicadores, que servirão para avaliar o desempenho. A medida parece moderna e racional. Em contextos de má governação, tudo o que prometa disciplina e resultados soa bem. Só que a questão é saber se isto é essencial ou supérfluo. E, sobretudo, se isto reforça a política ou enfraquece-a?
Do ponto de vista da gestão, os contratos-programa fazem sentido. São comuns em empresas, em organizações administrativas e em sectores técnicos do Estado. Aí, os objectivos são relativamente claros, os meios são definidos e o sucesso mede-se por resultados observáveis. O problema começa quando esse instrumento é transplantado para o coração do governo, isto é, para a função ministerial.
Um ministro não é, antes de mais, um gestor. É um actor político. A sua principal tarefa não é cumprir metas contratuais, mas interpretar problemas públicos, definir prioridades, arbitrar conflitos e criar condições para que as políticas funcionem. Quando transformamos o ministro num gestor avaliado por indicadores, empurramo-lo para uma lógica de obediência técnica, não de responsabilidade política. Passa a preocupar-se mais em “cumprir o contrato” do que em responder à complexidade social e política do país.
Este desvio é grave porque toca no essencial da política que é para mim a relação de responsabilidade. Num Estado republicano, o ministro deve responder politicamente perante os representantes do povo, portanto, o parlamento, a opinião pública e os mecanismos de escrutínio democrático. É claro que está subordinado ao Presidente, mas não é um funcionário privado ao serviço exclusivo deste. Os contratos-programa deslocam essa responsabilidade para cima, concentrando-a na figura do Chefe de Estado, como se fosse ele o avaliador supremo de toda a acção governativa.
O efeito simbólico é a transformação do Presidente numa espécie de super-gestor do Estado, perante o qual todos os outros actores políticos são avaliados. Ao invés de se reforçar a política, reforça-se o poder preceptor, o poder que manda, avalia e sanciona, sem ter de se explicar. Isto não resolve a crise de representação que Moçambique vive. Aprofunda-a.
Mas há ainda outro problema. Os tais contratos-programa fingem que o desempenho depende apenas da vontade e da competência do ministro. Mas a política não funciona assim. Um ministro pode falhar não por incompetência, mas porque não teve orçamento, não teve apoio institucional, não teve enquadramento legal, não teve coordenação interministerial, etc. Os contratos escondem estas dependências e, ao fazê-lo, transformam problemas políticos em falhas individuais. Isto é cómodo para o topo do poder, mas profundamente injusto e politicamente empobrecedor.
Existe, contudo, uma alternativa mais simples, mais exigente e mais republicana que nem vem dos manuais de gestão. Vem da própria lógica da política. Já discuti isto uma vez num texto aqui no meu mural. Quando um Presidente convida alguém para ser ministro, esse convite deveria assentar em duas coisas: o que essa pessoa pensa fazer e o que precisa para o fazer. O futuro ministro deve dizer como interpreta a função, quais são as suas prioridades políticas e quais são as condições necessárias para agir com responsabilidade. Ao aceitar o convite, o Presidente aceita também essa interpretação e compromete-se, politicamente, a criar as condições prometidas.
Lembro-me que quando discuti esta questão, alguém disse que a função do ministro é cumprir o plano do governo. Eu acho que não. Um ministro é alguém que pega no plano do governo (contido no manifesto), interpreta-o para o poder implementar. É assim em praticamente todo o mundo. Ainda recentemente, estava a ouvir a entrevista dum ex-ministro das finanças britânico que dizia que o único momento em que um ministro tem poder sobre o primeiro ministro é quando é convidado a integrar o governo. Porquê? Porque é nesse momento que pode dizer como vê as coisas, como pretende fazê-las e o que precisa para o efeito.
Isto é suficiente para a avaliação de ambos. Se o ministro não fizer o que disse que faria, o Presidente tem toda a legitimidade para o demitir. Mas se o Presidente não criar as condições que aceitou criar, o ministro deve ter a dignidade política de se demitir. Neste modelo, a demissão não é castigo nem humilhação. É acto de responsabilidade pública. Repare-se na diferença: aqui não há indicadores artificiais, nem contratos tecnocráticos. Há palavra dada, compromisso político e responsabilidade mútua. E, sobretudo, há algo fundamental, nomeadamente, a relação deixa de ser privada e vertical para se tornar politicamente rastreável. A sociedade pode perguntar se o ministro fez o que prometeu e se o Presidente criou as condições que aceitou criar. É assim que se fortalece a política, não com truques de gestão.
No fundo, a escolha é entre nos concentrarmos no supérfluo, importando instrumentos que dão uma aparência de controlo e eficiência, mas que esvaziam a política e concentram poder, ou então nos concentrarmos no essencial, isto é, reforçar a responsabilidade política, clarificar compromissos e aceitar que governar não é gerir contratos, mas assumir decisões sob condições imperfeitas.
Precisamos de mais política no sentido nobre do termo. Não sei se com encenação tecnocrática teremos isso. É incrível a forma como vamos de equívoco para equívoco convencidos de que estamos a trabalhar e a modernizar...
Mussá Mohamad Ibrahimo
Super interessante!
Pode se dizer que ele também está a usurpar o papel de fiscalizador, que é do parlamento? Além de torna - lo no super gestor e avalia - a - dor supremo?
  • Responder
  • Editado
Rogério Sitoe
Elisio Macamo há menos de uma hora estava a discutir este assunto com um amigo e eu eu colocava a questão nestes termos. Primeiro espero que os contratos sejam acessíveis à quem os quiser ler, mesmo que que seja a luz da transparência e do direito de acesso à informação. Porquê?. Precisamente porque tenho a expectativa de ver no contrato os deveres do "contratado" e as obrigações do "contratante". Que meios se dispõe a disponibilizar para a materialização de todos aspectos previstos no contrato. Não é por muito. É só tendo em conta a realidade financeira do país dos ministérios, onde não se cumpre o contrato mais geral: pagar salários a tempo previsto ou dotar de meios básicos para a funcionalidade dos ministérios e por aí adiante. Seria interessante saber igualmente se houve espaço para um Ministro avaliar o contrato, conhecendo os meios de que dispõe, dizer: isto não tem como ser cumprido , ou foi formal?
Rui Costa
Prezado Professor,
vivemos muito tempo só com protagonistas de " política & etnicidade" a dirigir Ministérios , sem competência técnica para a respectiva pasta. Acho positivo formalizar compromissos de execução a nível Ministerial. Nunca o fizemos. Gostaria imenso que tais compromissos até fossem públicos inclusive para Governadores Provinciais. Não há nada a perder com a experiência, pelo contrário. Com o devido respeito esse tema da Política no Comando e " chacun se governe" está gasto e de rastos. É preciso prestar contas e pagar duro pelos incumprimentos.
Saudações
Albino Forquilha
Grande observação, grande aula, espero que apreendamos desta nota do prof.
Manu Dos Santos Vilanculos
Bem,
Aqui, Professor toca no nervo da confusão entre governar e gerir. É um debate milenar, embora emparedadas de forma cristalina.
Eu dizia, ainda hoje, quando falávamos sobre, que a importação de instrumentos tecnocráticos para o núcleo da função política não apenas empobrece a responsabilidade democrática como desloca o centro da legitimidade do parlamento e da esfera pública para a vontade avaliadora do topo do poder.
O problema não é medir resultados, é fingir que a política se reduz a métricas. A responsabilização que fortalece a República é política, pública e mútua e não contractual, privada e vertical.
Obrigado pela aula, Professor!
Cal Barroso
Primo, você! Essa relva eu disse para “fumar as quintas” antes do pôr do sol. Mas pronto, já “fumavas”… NusAlança, talvez o Sôn’Primo Mablinga NusOva…
Herminio Muiambo
Os contratos-programas poderão ser contraproducentes porque os Ministros irão se preocupar mais com o aroma dos relatórios que com acções que visem o desenvolvimento do país.
Já vimos este cenário no passado e poderemos estar a institucionalizar o desempenho baseado em relatórios floreados, tendo em conta a escassez de recursos.
O meu maior medo reside na possibilidade de descida desta tacada para os níveis mais abaixo e as consequências que daí poderão advir.
Armistício Mulande
O que me espanta é o silêncio daqueles que já governaram o país e sabem de ante-mão que estes contrato-programa são uma unitilidade. Como país, gostamos de investir muito no supérfluo. Sem nenhum medo de estar errado aqui, estes actos não passam de folcror, não acrescentam nada à governação e, pelo contrário, desresponsabilizam os ministros perante o povo e seus representantes.
Como já se disse em comentários anteriores, a época de relatórios coloridos foi aberta. Vamos ver em 2029 no que isto vai dar.
Ilidio Da Silva
Pensando em voz alta, surgiu-me uma dúvida. Supondo que o Ministro do Desporto assinou um contracto programa com metas específicas .... " Mambas classificados em terceiro lugar no CAN" .Por sua vez o Ministério assina o contracto programa com a (FMF) como tem sido a práctica. Onde de entre outros recursos disponibiliza um prémio de X meticais em caso de qualificação para as meias finais. Porém já no jogo dos quartos de final, os atletas fazem greve pois querem o dobro do valor do prêmio disponível. Vão a jogo desmotivado e perdem. Logo o Ministro não cumpriu a metrica. Pois o orçamento não é elástico. Depois do CAN . O Ministro tem de cair. O Presidente da FMF, continua até ao final de seu mandato. Será isso que vai acontecer???
Isabel Maria Casimiro
Concoro Elísio!colocss bastante bem a questão

Sem comentários:

Enviar um comentário

MTQ