O imposto da democracia
Estou a reler um livro interessantíssimo da autoria do venezuelano, Moisés Naím, “A vingança do poder”. Já falei sobre ele algumas vezes aqui. Numa das suas passagens cita o francês, La Rochefoucault, que teria dito que a hipocrisia é o imposto que o vício paga à virtude. Com isso ele queria chamar atenção para uma nova forma de exercício de poder em nome da democracia que, segundo o autor, usa três estratégias para corroer a democracia em nome da própria democracia.
Num momento em que precisamos de nos reencontrar como País, pode ser útil usar Moisés Naím para virarmos a nossa atenção para o que precisamos de fazer para nos reencontrarmos. Viver em sociedade é conversar. Isso não significa que as conversas sejam apenas harmoniosas. Para irmos para a frente, essas conversas têm que ser robustas, o que significa que os diferentes pontos de vista que nos animam têm que se ver reflectidos. Segundo Naím – e praticamente toda a ciência política – o que tornou os sistemas democráticos robustos foi não só a abertura para a deliberação como também o controlo de quem governa por quem é governado, controlo esse que se adquire através da garantia de certos direitos fundamentais: liberdade de expressão, participação política, etc.
Naím vê este modelo democrático sob forte ameaça. Há cada vez mais políticos em todo o mundo que fingem ser democratas para, no fundo, minar a própria democracia. Exemplos abundam: Órban na Hungria, Putin na Rússia, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Kagame no Ruanda e, claro, os sucessivos governos da Frelimo no nosso próprio País. A jornalista americana, Anne Applebaum, autora dum livro sobre esta matéria também muito interessante, fala duma “Autocracia Ltd.”. O que esta “Autocracia Ltd.” tem em comum são três características, segundo Naím: “Populismo, polarização e Pós-Verdade”. Trata-se de três conceitos que descrevem o manual de instrucções na base do qual se faz a perversão da democracia.
O populismo é mesmo isso. Assenta num discurso político que distingue o povo inocente e injustiçado por uma elite política corrupta que vive à sua custa. Esse discurso é pessimista. Vê tudo como sendo disfuncional, corrupto e em desabamento. Clama pela destituição da elite política que está contra o povo como condição para que o País seja refeito. Nessa senda, o discurso criminaliza os adversários políticos que não são vistos como pessoas portadoras de outras opiniões e interesses políticos, mas sim como criminosos que precisam de ser punidos.
O discurso político populista glorifica a violência, é hostil à mídia (o Trump é que introduziu o termo “fake news”), denigre os intelectuais cuja autoridade científica passa a depender de validação popular interpretada por outros intelectuais (e semi-intelectuais), odeia o controlo sobre o poder que exerce e aposta num indivíduo forte que vai, com o seu carisma, devolver o bem-estar ao povo através do combate que vai desencadear contra as elites que oprimem o povo.
O populismo cria as condições ideais para a polarização da sociedade. O meio-termo deixa de existir. Ou se está com o povo, ou se está contra o povo. O debate político não se faz ao nível da substância dos assuntos, mas sim da capacidade de reclamar o povo para si próprio e impôr a sua visão como a que melhor reflecte os anseios do povo. Na verdade, a “Autocracia Ltd.” não tem necessariamente projecto político. Ou melhor, o seu projecto político é o que ela diz ser a vontade do povo, povo esse que não se engana, sabe tudo e é sempre um vulcão à espera de eclodir. Quando se discute em contexto de polarização, a preocupação não é ouvir para entender, mas sim ouvir para não só contrariar como também agredir moral, psicológica e, se as condições estiverem reunidas, também fisicamente.
Tudo isto acontece dentro dum contexto em que as questões deixam de ter mérito porque cada qual funciona na base da sua ideia de realidade, as famosas realidades alternativas. Isto é assim por causa do que Moisés Naím chama de “pós-verdade”. Este fenómeno não descreve a mentira, ainda que faça parte da política mentir. Descreve a remoção de qualquer base comum de discussão objectiva. Tudo passa a ser suspeito, o trabalho dos outros, a idoneidade das instituições, a honestidade da autoridade, a integridade académica, a honra religiosa, etc. Uma sociedade encontra-se nas garras da “pós-verdade” quando deixa de ser possível discutir racionalmente.
Portanto, este é o manual de instrucções da “Autocracia Ltd.”. É o que Naím chama de 3P’s, a saber, populismo, polarização e pós-verdade. É através da sua presença insidiosa na sociedade que o poder se vinga. Pode ser prudente que cada um de nós avalie as suas crenças e acções políticas em função deste esquema. Pode ser que ajude a encontrar os espaços comuns de deliberação. Os 3P’s são o imposto que temos vindo a pagar, e vamos continuar a pagar, como forma de corroermos a democracia.
Naím abre o livro citando o filósofo espanhol, José Ortega y Gasset: “Não sabemos o que está a acontecer connosco, e isso é precisamente o que está a acontecer connosco”. Profundo!
Todas as reações:
44Tu, Lyndo A. Mondlane, Ricardo Santos e a 41 outras pessoas6 comentários
4 partilhas
Gosto
Comentar
Enviar
Partilhar
Mais relevantes
Ankh Mxg
Só estou a marcar para ler os comentários. Mas convenhamos, os p8lit7cos (a maioria), tem como sua matéria prima o povo. O povo é o trigo, é quanto mais amassar o povo com a sua própria forma, mais este está disponível para te carregar. Agora política é oportunismo, retórica populista e, acima de tudo, messianismo. Isso não é só em África onde culpamos a pobreza e a má governação, pois vimos isso no Brasil e nos Estados Unidos. Tenho uma teoria de que as maiores convulsões sociais são produto da classe média. O governo cria condições e emerge uma classe média, que precisa de manter os seus "vicios", como ir à South, férias no Bilas, puto no colégio entre outros. Quando estas "conquistas" são ameaçadas, seja por uma crise internacional, ou outro factor externa ao governo, aí essa mesma classe média vira-se contra aquele governo que o construiu, e aí deve haver cedências para a continuação desta forma de vida. É por isso que estes levantamentos populares são cíclicos, só ainda não medi o tempo. Em suma, os políticos desonestos, sem escrúpulos, sempre vão negar factores óbvios, e usarão os 3P para as suas agendas, quer isso fira a integridade e sobrevivência do mesmo povo ou não.
- Gosto
- Responder
Dadivo Jose Litsecuane Combane
Ilidio Lobato e Elias Gilberto Djive , não digam que sou egoísta.
- Gosto
- Responder
Elias Gilberto Djive
Dadivo Jose Litsecuane Combane de egoísta não tens nada. O facto é que os 3Ps só se fazem presentes quando a autoridade vigente consente através das suas acções, um pouco aquele ditado segundo o qual "o feiticeiro só entra numa casa quando alguém o convida".
- Gosto
- Responder
Benedito Mamidji
Lendo o texto, fico com a sensação que o Moçambique de experimentação socialista até 1990 podia também ser descrito assim, embora não houve a pretensão democrática. Há uma ideia de que o populismo e a pós verdade são fenómenos actuais, mas a história (a nossa inclusive) está cheia de exemplos disso. Tenho para mim que os novos termos são como uma nova roupa para corpos velhos.
- Gosto
- Responder
Lyndo A. Mondlane
Os emocionais nao vao te entender prof, quando a racionalidade desaparece e é substituida pela emotividade, reulta dificil discutir pontos, como dizem é dificil aconselhar um apaixonado, nao actua pela razao, e nem logica, segue instintos passionais.. nao se pode debater nada com ele, estamos nesse estagio... o pior de tudo é alguem pensar que problemas complexos se resolvem com soluçoes simples... eu vou fazer aquilo porque neste pais ha dinheiro, queles nao fazem porque nao querem porque neste pais sobra dinheiro.. e economistas, engenheiros, doutores que estudaram mais de 5 anos na universidade aplaudem, sem ter em conta as nossas condiçoes economicas... nao digo que nao ha disfunçoes e desvios de aplicaçoes, os ha.. mas mas isso nao explica tudo.. outro dia acabei sabendo que o orçamento de residuos urbanos da cidade de alicante é de 340 milhoes de euros, o mesmo valor (340 mihoes) que o pais destina a saude de 30 milhoes de mozes... nao se pode pretender ter bom sistema de saude com 10€/ano/moze... é impossivel... se necessitaria 50 a 100 vezes esse valor minimo pra ter um sistema de saude decente....(todo o nosso actual PIB e mais dedicar so e somente a saude)... nao ha varinhas magicas para resolver isso
- Gosto
- Responder
2
Marcos Sinate
Ser democrata não é tarefa fácil. Enquanto nós pensarmos a democracia como um fim em si e limitá-la à realização de eleições teremos os 3P's a massacrar a democracia. Teremos líderes que tudo vão fazer para serem os porta-vozes do povo sem sequer consultá-lo; teremos líderes que tudo vão fazer para serem os que lutam contra os maus supostamente identificados pelo povo e por fim teremos os que são proprietários das verdades únicas. As ideias dos outros, embora sejam interessantes para o exercício da democracia, vão ser combatidas simplesmente porque não se confia na pessoa que a apresentou. Com quem podemos debater de forma séria em Moz? Como vão ser seleccionados os assuntos para o debate? Como identificar e contornar os 3P's durante o debate e a governação de quem quer que seja?
Sem comentários:
Enviar um comentário
MTQ