Mais abaixo partilho um texto de Elisio Macamo. Enquanto o lia, lembrei-me de um personagem da minha infância, Pavlik Morozov, um pioneiro glorificado pelo Estado soviético por ter denunciado a sua própria família. A delação, um acto ignóbil, mais ainda quando recai sobre membros da família, pode ser arma útil na luta contra fenômenos sociais, como a corrupção? A luta contra a corrupção, contra os reacionários, contra os inimigos do povo, contra os que atrasam o progresso da nação, pressupõe, necessariamente, socavar os fundamentos da lealdade familiar? Seria lícito, seria honroso, delatar meu irmão por eu não entender como pôde construir uma casa decente, contrariando uma história secular de pobreza? Este é, talvez, um debate que vale a pena fazer.
Debate a fazer, sem embargo das considerações que Elisio vem fazendo, há décadas, em torno da temática da corrupção.
Eis o texto do Elísio:
"Dia internacional do inútil
Uma vez por ano, não sei desde há quanto tempo, os nossos governantes, e muitos outros no mundo inteiro, perdem um dia de trabalho com uma das maiores burlas intelectuais em matéria de desenvolvimento. É a ideia de que a corrupção constitui um dos maiores desafios e, quiçá, obstáculos para o desenvolvimento. É um caso típico de como um equívoco partilhado pela maioria pode ganhar o estatuto de verdade. Transformou-se numa indústria gigantesca que alimenta exércitos nacionais e internacionais de parasitas que lutam pela transparência e integridade, criou oportunidades de pesquisa para investigadores que confundem moralismo com análise e, o que me parece pior, transformou a democracia numa cultura de suspeita e de denúncia, minando desse modo, os seus próprios alicerces. Dia 9 de dezembro, dia internacional da luta contra a corrupção...
Os equívocos partilhados pela maioria têm uma morfologia própria. Primeiro, eles não se impõem por serem logicamente válidos. Impõem-se pelo seu apelo moralista que entorpece o raciocínio de gente sensata. A gente ri-se hoje quando pensa, por exemplo, na Inquisição e na caça às bruxas. Ou no comércio de escravos e nos excessos do colonialismo. O que tornou essas coisas todas possíveis não foi apenas a maldade de quem as praticou. Foi a convicção de estar a praticar um bem partilhado pela maioria. Equívocos partilhados são uma das manifestaçoes mais nefastas da tirania da maioria.
Segundo, equívocos partilhados partem do princípio de que uma pergunta que hoje se responde desta maneira, amanhã, se colocada de novo, vai ter a mesma resposta. Parece intuitivamente correcto, mas é arriscado. Perguntas são sempre a descrição incompleta dum problema que não entendemos. As respostas vão ser, necessariamente, uma reacção ao que sabemos, não ao que não sabemos. Amanhã, se soubermos mais sobre o problema, podemos vir a ter uma outra resposta. Não faz muito tempo que a resposta à pergunta sobre se negros, com oportunidades, podem provar ser tão inteligentes quanto os outros era um “não” categórico. A descrição do negro que se tinha nessa altura era incompleta e baseada em preconceitos (que, infelizmente, ainda não desapareceram completamente). Hoje, com o que sabemos, temos uma outra resposta.
Terceiro, equívocos partilhados promovem um entendimento simplista de problemas e são cegos à complexidade que as suas soluções produzem com consequências talvez piores para o tecido social. Por exemplo, a caça às bruxas criou não só um exército de funcionários que passaram a depender da expropriação das suas vítimas como também semeou nas sociedades a suspeita que passou a ser a principal moeda de troca na avaliação das pessoas, independentemente do seu mérito. Esta característica dos equívocos partilhados sufoca a criatividade na reflexão, pois torna moralmente oneroso o exercício de pensar fora de caixa. Quando toda a gente acredita que mulheres são bruxas fica arriscado gritar no meio da multidão que talvez o problema seja outro. Fatalmente arriscado!
Dia 9 de dezembro foi o dia internacional do equívoco partilhado. E como não podia deixar de ser, o nosso pobre Presidente dedicou horas do seu tempo de trabalho para falar numa cerimónia comemorativa do grande dia, desviando, dessa maneira, a sua atenção – de certeza com alívio – de questões mais prementes como, por exemplo, Cabo Delgado e Nyongo. Refém da necessidade de mostrar ao mundo e aos moralistas da sua própria terra que se preocupa com esse grande mal, lá foi ele meter a sua colherada, desta feita apelando para um maior compromisso da família com a luta contra este inimigo e pedindo até que a própria família denuncie “corruptos”.
Não poderia ter sido mais infeliz do que isto. Este apelo à família revela tudo o que está errado nesta luta contra a corrupção. Que nem ele tenha sensibilidade para os perigos deste tipo de abordagem chega a ser surpreendente. Nos últimos dias têm circulado fotos do seu próprio filho ostentando riqueza aparentemente incompatível com o salário do pai. Mas pode ser que as fotos sejam “fake”. E não só. Pode ser que ele tenha ganho a lotaria. Pode ser que ele tenha feito um negócio qualquer que lhe trouxe muito dinheiro. Ser filho do homem mais poderoso do País traz consigo a proximidade com potes de dinheiro. A gente pode torcer o nariz perante isso, pois pode consubstanciar a violação de regras de probidade, mas lá está, qual é exactamente o problema de um familiar de alguém em posição de poder se beneficiar disso?
Se o problema for a violação do princípio de igualdade de oportunidades, então é isso que devemos acautelar, não para impedir que familiares de políticos enriqueçam, mas sim para garantir que esse enriquecimento não seja em detrimento do bem público, nem exclua outros, talvez com melhores projectos, de se enriquecerem. Na nossa mente completamente colonizada pelo discurso moralista da indústria do desenvolvimento, não conseguimos separar estas coisas. É corrupção, corrupção é má, vamos combater. Entretanto, nos países que nos impõem esses padrões morais, sempre foi assim e, em muitos casos, continua a ser assim.
Isto é, em troca do auxílio ao desenvolvimento, criminalizamos as nossas relações sociais. Transformamos aquilo que dá conteúdo à nossa vida social em crime. Ao fazermos isto, transformamos a política em técnica, portanto, retiramos a vida social daquilo que devia fazer a essência da nossa comunidade política, e tornamo-nos vulneráveis à transformação da democracia num sistema autoritário sem alma que depende apenas da judicialização para a sua sobrevivência. É muito perverso.
A extensão dos prazos de prisão preventiva aprovada pelo parlamento não constitui nenhuma aberração do ponto de vista do discurso moralista dominante. Há gente que está detida por “corrupção”, os órgãos do estado não estão à altura de lidar com o assunto dentro dos prazos previstos, mas existe uma forte pressão de fora e de dentro para que os que deviam gozar da presunção de inocência sejam “julgados” e “condenados”, logo, pelo bem maior, isto é, a luta contra a corrupção, tudo o resto que devia fazer de nós uma comunidade política civilizada precisa de ser sacrificado. Não sei porque é que as pessoas se queixam. Este é um dos desfechos lógicos da luta contra a corrupção. Vai ser assim até não restar ninguém. Se os doadores querem realmente nos ajudar, deviam prestar assistência na melhoria dos processos administrativos, não na penalização de pessoas. Isso não é ajuda. É rancor.
Não me farto de dizer. A corrupção como problema de desenvolvimento é uma invenção daqueles que gostariam de explicar a si próprios porque o desenvolvimento não responde necessariamente à lógica simplista de fazer o que é certo para ter o resultado certo. É um dos elementos neocoloniais mais perversos do discurso do desenvolvimento. Aquilo que nos seus países só foi possível controlar com o desenvolvimento é declarado como a causa da ausência do desenvolvimento nos nossos países. E para garantir que a gente não se desenvolva mesmo eles obrigam os nossos governos a concentrar a sua atenção no supérfluo e financiam organizações da sociedade civil que despolitizam a democracia – transformando problemas políticos em problemas técnicos, sobretudo através da judicialização – ao mesmo que desviam rios de fundos que poderiam ter sido melhor aplicados em obras sociais ou na melhoria dos nossos processos burocráticos.
É mau desviar fundos públicos. Por isso mesmo, constitui crime. É mau aproveitar um cargo público para tirar benefício pessoal em detrimento do bem público. Por isso mesmo, constitui crime. Mas não é por isso que não nos desenvolvemos. Nem é isso que devemos combater. Não nos desenvolvemos por várias outras razões, muitas delas ligadas às condições estruturais dentro das quais devemos lograr isso (e isso tem muito a ver com a história).
Neste caso particular, não nos desenvolvemos por causa daquilo que torna possível esses actos criminosos. Isso é que precisa de ser abordado (e não necessariamente “combatido”), isto é, devemos resistir à tentação de concentrar os esforços nos efeitos. Isso não nos leva a sítio nenhum. Se um funcionário público desvia dinheiro que teria servido para construir dois hospitais, o problema não é esse desvio. O problema é o que faz com que o nosso sistema político não privilegie a construção de hospitais. Se dissermos que é a corrupção, estamos a ser circulares. É o equivalente de procurar algo perdido onde há luz, não onde perdemos a coisa. Tornar o sistema político mais robusto para permitir que as decisões sejam em prol do bem público é o que devia estar no centro da nossa atenção. E isso leva tempo, não se logra de hoje para amanhã.
Mas, nada. Participamos voluntariamente na colonização da nossa mente porque temos medo de não fazer parte da “maioria moral”. É grave. Temos compatriotas na prisão, e outro injustamente detido na África do Sul, cujo principal crime não foi terem procurado tirar partido pessoal de negócios públicos (sem dúvida crime), mas sim terem sido funcionários dum estado refém do discurso moralista daqueles que pensam que ajudar alguém é responsabiliza-lo pela sua própria vulnerabilidade. O discurso anti-corrupção é tipo alguém andar aí a reclamar com o tuberculoso que o seu problema é estar sempre a tossir e que se não fizer nada contra a tosse nunca vai se curar...
Pouco a pouco, vamos ter novos Mártires da Machava."
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