Após decisão de Fachin, militares têm a chance de mostrar a quem devem prestar continência
Nos EUA, militares que ajudaram na tentativa de golpe trumpista foram presos. Aqui, alto-comando do Exército se subordina a presidente que despreza a Constituição, se mete em política e ameaça poderes.
A DECISÃO DO MINISTRO Edson Fachin de anular as condenações do ex-presidente Lula pelo ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro traz à tona uma pergunta: como se comportarão desta vez os nossos militares? Aceitarão o resultado da Suprema Corte ou voltarão à cena política com novas ameaças institucionais?
Nos Estados Unidos, a atitude dos militares diante da invasão do Capitólio, um dos episódios mais emblemáticos do ocaso da era Trump, pode servir de exemplo às Forças Armadas brasileiras. É importante relembrá-lo para marcar a distinção de atitude de oficiais nos dois casos de insubordinação frente a crises políticas.
Em 12 de janeiro de 2021, os oito mais altos oficiais-comandantes das Forças Armadas dos EUA quebraram a premissa democrática fundamental de não atuação política, em uma carta sem precedentes na história daquele país. No documento, condenaram a invasão da sede do Congresso dos EUA, por apoiadores do então presidente e seu comandante-em-chefe Donald Trump, e asseguraram que as Forças Armadas se subordinariam ao então presidente-eleito Joe Biden, em respeito à ordem democrática constitucional e ao resultado das eleições presidenciais.
Em 3 de abril de 2018, sabemos agora pelo livro-depoimento do general Eduardo Villas Bôas “Conversa com o Comandante” (Editora FGV, 2021), organizado pelo professor Celso Castro, da FGV, a cúpula do Exército Brasileiro quebrou a premissa fundamental de não atuação política e se reuniu para discutir o conteúdo de dois tuítes. Os posts foram posteriormente publicados na conta pessoal do referido general, então comandante do Exército Brasileiro, ameaçando o Supremo Tribunal Federal às vésperas do julgamento que poderia colocar em liberdade o ex-presidente Lula – então primeiro colocado para as eleições presidenciais daquele ano. Em ambos os casos, os mais altos militares dos dois países atuaram politicamente. O que há em comum e de diferente nas duas situações?
Nos EUA, a mensagem buscava apaziguar uma crise constitucional instaurada pelo então presidente Donald Trump, que não apenas não aceitou o resultado das eleições legítimas como também conclamou seus apoiadores, no dia da invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro, dizendo em discurso “se vocês não lutarem contra o inferno, vocês não terão mais um país”. O motim foi o ápice de uma crise política que já se arrastava há meses. Era público que Trump cogitava pedir que os militares interviessem na política doméstica para alterar o resultado das eleições.
Neste sentido, a carta dos comandantes visava assegurar que a ordem democrática seria mantida, que o resultado das eleições seria respeitado e, principalmente, buscava reafirmar a linha de comando militar, garantindo que seus subordinados não agissem fora de seu papel constitucional.
No caso brasileiro, os tuítes dos altos oficiais do Exército (ainda que publicados por Villas Bôas) foram o estopim do início de uma crise constitucional, que se arrasta até hoje. Diferentemente dos EUA, nossos comandantes quebraram a premissa de não atuação política em um momento em que as instituições estavam funcionando, os processos jurídicos estavam sendo seguidos (ao menos os ritos formais, que levaram o caso até o STF) e colocaram gasolina em um fogo que tinha bombeiros certos e preparados para controlá-lo.
Enquanto nos EUA os militares atuaram para tranquilizar os ânimos e evitar que as tensões se escalassem ainda mais entre os poderes, no Brasil, os guardiões armados fizeram publicamente uma ameaça a um dos poderes constitucionais. Sérgio Etchegoyen, um dos altos oficiais generais à época da trama do Twitter, então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, além de amigo próximo de Villas Bôas (e revisor do referido livro-entrevista), disse que os posts de Villas Bôas não seriam intimidadores, “a não ser que tivéssemos ministros covardes na nossa Suprema Corte”.
Ora, general, será que tentar evitar que os militares (ou melhor, um cabo e um soldado) atentem contra o STF não pode ser visto como uma atitude covarde? Alguns poderiam chamar de prudência, outros de apaziguamento. Mas seria assim tão improvável, em um país de democracia frágil, que viveu em sua história recente 21 anos de ditadura militar, um país cujas Forças Armadas são historicamente marcadas por repressão doméstica ao invés de guerras externas, que os ministros da Suprema Corte lessem os tuítes como uma ameaça de golpe e resolvessem, assim, mudar seus votos para evitar no Brasil um evento como o da invasão do Capitólio nos EUA?
Insubordinação a quem?
É inegável que, em ambos os casos, houve uma quebra da cadeia de comando – o que é chamado de insubordinação. Nos EUA, os comandantes militares contrariaram diretamente uma posição pública de seu comandante-em-chefe, o então presidente Trump, ao afirmarem que as eleições foram justas, e que todos se subordinariam, em pouco mais de uma semana, ao presidente eleito Biden.
No entanto, a carta dos militares norte-americanas buscava precisamente garantir que seus subordinados não agissem politicamente de modo a desestabilizar a ordem democrática constitucional dos EUA. Não é à toa que foi assinada pelos mais altos postos militares do país, pois, segundo a CNN, um número desproporcional de militares da ativa e da reserva foram presos por participarem do motim ao Congresso. Isso significa que militares e agentes do setor de segurança dos Estados Unidos estavam participando ativamente da tentativa de um golpe de Estado na democracia mais longeva do mundo. A insubordinação, neste caso, buscava não apenas tirar os militares envolvidos da cena política como desestimular futuras incursões do tipo por integrantes das Forças Armadas do país.
No Brasil, por outro lado, a insubordinação tornou-se tão frequente que o número de militares e demais indivíduos do setor de segurança candidatos nas eleições de 2020 foram os maiores em quase duas décadas. Diferentemente dos EUA, onde há regras definidas e limites impostos a militares na política, em especial aqueles ligados a cargos no Congresso ou em posições na cadeia de comando militar, aqui não há restrições tão fortes que impeçam que militares participem do jogo político. Sequer temos algum tipo de quarentena para militares, policiais ou juízes (funções que lidam com o aparato repressor do Estado) ocuparem determinados postos, o que possibilita que muitos façam de suas insubordinações trampolins para a vida política – sendo o vice-presidente Hamilton Mourão o exemplo máximo disso, mas não único.
‘A insubordinação seletiva dos militares brasileiros não parece levar em consideração as companhias políticas a que se associam’.
A recente nomeação do ex-ministro da Defesa Silva e Luna – o primeiro militar a ocupar o posto desde a criação do Ministério da Defesa, sob indicação de Michel Temer – para o cargo de presidente da Petrobras, no que foi imediatamente entendido como uma intervenção do presidente na empresa, escancara o uso indiscriminado de fardados que Jair Bolsonaro faz em seu governo. Sempre é bom lembrar que temos, hoje, mais militares em cargos de indicação política do que em qualquer outro momento da Nova República, ultrapassando até mesmo em número o próprio período da ditadura. Isso sem falar na condução atabalhoada do submisso general Eduardo Pazzuello, ainda na ativa, no Ministério da Saúde em plena pandemia.
Enquanto resta óbvia a opção dos norte-americanos de ação coordenada de todos os comandantes militares para assegurar a atuação em conjunto, cientes do peso político de cada palavra impressa, a impressão das orgulhosas palavras de Villas Bôas no livro parece indicar que ele acredita não ter agido politicamente – o que deixa o depoimento colhido pelo professor Celso Castro ainda mais rico por sua incoerência. Não coube a ninguém, a não ser ao próprio depoente e a seu fiel revisor, a imputação da grave transgressão de abertura dos quartéis à política.
Ademais, a ironia com que o próprio general tratou o tema em novo tuíte, no dia 16 de fevereiro de 2021, dizendo “Três anos depois” em resposta àcrítica do ministro do STF Edson Fachin de que a pressão por militares ao Judiciário era inaceitável, serve para demonstrar que, ao contrário do que o seu depoimento no livro busca fantasiosamente construir, ele tinha plena ciência de que agiu politicamente em 2018.
É fundamental notarmos a diferença do conceito de missão das forças armadas de ambos os países. A carta dos comandantes dos EUA deixa claro algo que é irremediável aos militares: o respeito irrestrito à Constituição do país, mesmo que às custas de uma insubordinação ao comandante-em-chefe. Se o presidente da República afrontou a Constituição, coube aos comandantes militares garantir a sua total submissão a ela.
Ao fazê-lo, os militares dos EUA asseguraram o que o pensador Jürgen Habermas chamou de patriotismo constitucional. Sociedades multiculturais democráticas se unem por princípios ideacionais societais comuns, expressos através de uma constituição. Logo, não é suficiente que a subordinação militar se dê a um indivíduo civil que ocupe o Executivo, como sugeriu Samuel Huntington, a obediência deve ser aos valores democráticos que unem uma determinada sociedade, ou seja, à constituição.
No Brasil, pelo contrário, o que parece direcionar a caserna é que as instituições e a sociedade devem respeitar os valores morais militares, e não os militares respeitarem os valores expressos pela Constituição Cidadã de 1988. O professor Manuel Domingos Neto, do Observatório das Nacionalidades, da UECE, chamou isso de patriotismo castrente: nossos militares seguem uma lógica patriótica que lhes é peculiar e própria, sendo a Constituição e a obediência ao papel que ela lhes lega algo circunstancial, e de acordo com a conveniência de nossos soldados.
Os tuítes postados por Villas Bôas e a estapafúrdia tentativa de justificá-los no livro da FGV são como as aventuras de Dom Quixote. Enquanto a mensagem do depoente ilustra uma narrativa que tenta qualificá-la como amena (qual terá sido a versão não amena?), condena a política nos quartéis forçosamente fingindo não perceber que seu discurso abriu as porteiras castrenses para a luta contra seus moinhos de vento.
O comentário de Etchegoyen, como revisor da obra e cujas declarações estimulam a insubordinação ao poder civil desde a instauração da Comissão Nacional da Verdade (que citou seu pai, o general Leo Guedes Etchegoyen, em seu relatório final), parece ser como o do fiel Sancho Pança, que, mesmo na miséria, acompanha os delírios de seu patrono.
Enquanto os militares nos EUA quebram um dos pilares democráticos precisamente para assegurar a defesa da sua Constituição, os brasileiros agem no sentido oposto, ameaçando a Suprema Corte por uma suposta defesa dos valores dos “cidadãos de bem” – e não de todos os brasileiros ou da nossa Carta Magna. Diferem os cidadãos que merecem a defesa armada daqueles que não a merecem, ferindo não apenas o princípio de igualdade perante a lei quanto sua própria finalidade institucional de defesa de todos os cidadãos brasileiros ou aqui baseados.
A própria relação com as suas respectivas Constituições são um grande diferenciador entre militares dos dois países. Enquanto nos Estados Unidos o alto comando comete insubordinação para defender os direitos humanos e processos constitucionais para todos, no Brasil, oficiais do Exército brasileiro são acusados de promover e acobertar casos de tortura contra seus próprios subordinados. A total falta de preparo institucional para processos investigativos justos e independentes nos deixa um legado de uma justiça militar seletiva, corporativista, que se autoprotege às custas do silêncio e da impunidade.
Outro aspecto de comparação tem a ver com as companhias que os militares buscam ter nos dos países. Aqui, o ditado popular “diga-me com quem andas e lhe direi quem és” talvez resuma o que pretendo com este ponto. A carta dos comandantes militares dos EUA busca marcar um distanciamento claro e inequívoco do que chamaram de “atos de sedição e insurreição”. Há quem vá mais longe, e aponte o motim como um ato de terrorismo doméstico. Considerando todos os pontos acima descritos, a cúpula militar dos Estados Unidos, mesmo lançando mão de uma ação de cunho político sem precedentes, viu a divulgação da carta dos comandantes como algo menor perto de ser associada a terroristas.
A insubordinação seletiva dos militares brasileiros não parece levar em consideração as companhias políticas a que se associam. Refiro-me às diversas denúncias de que o presidente Jair Bolsonaro, sua família e aliados políticos tenham relação direta com milícias. Parece ser mais importante para os militares brasileiros se insubordinarem contra uma presidenta da República que, ex-torturada e perseguida durante a ditadura, tenha instaurado uma comissão para passar a limpo a história de abuso de agentes do regime do que a um presidente, ex-militar afastado da ativa após um controverso julgamento por acusações de insubordinação e de planejamento de um atentado terrorista, denunciado por associação com milícias ao longo de sua trajetória parlamentar e que promove políticas de liberação de armas e munições que beneficiam diretamente grupos armados irregulares. Na recente anulação das condenações do ex-presidente Lula, dois oficiais da reserva voltaram ao mesmo tom de afronta institucional de Villas Bôas e Etchegoyen, os generais Luiz Eduardo Rocha Paiva, em publicação no Clube Militar, e Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Twitter.
Sempre é bom lembrar que o próprio presidente Bolsonaro já disse publicamente que Villas Bôas foi o responsável por ele chegar à presidência da República. Oportunamente (para eles), esse assunto não é abordado no livro, deixando em aberto uma das perguntas mais relevantes para entender a atuação dos militares, em especial do Exército, na eleição de Bolsonaro, algo que já é notório que foi obra de generais, segundo o professor Piero Leirner, da UFSCar.
Em perspectiva comparativa, lamentavelmente, vemos que o caminho escolhido pelos comandantes militares brasileiros, segundo o relato do próprio autor público dos tuítes, general Eduardo Villas Bôas, foi de uma interferência inapropriada e inadequada, que enfraqueceu a democracia e o funcionamento das instituições do país de maneira irreparável.
O livro “Conversa com o Comandante”, obra fundamental para o retrato do atual momento político brasileiro, nos tira qualquer esperança de autorreforma por parte das Forças Armadas, tamanho o grau de impregnação de teorias conspiratórias, delírios de poder e incapacidade de compreensão de como atuar em uma democracia por parte da elite militar do país. Celso Castro nos lega uma obra singular, pela sutileza da condução do relato, mostrando o delírio de poder dos comandantes do Exército Brasileiro que levou a política de volta aos quartéis.
Os altos-oficiais brasileiros, em especial do Exército, têm agora uma oportunidade ímpar de corrigir o erro de Villas Bôas e abandonarem de vez o jogo político. Cabe a eles demonstrar que, independentemente das decisões do STF, estarão dispostos a defender a Constituição, e que se subordinarão a qualquer um que emerja como vencedor no pleito de 2022. Qualquer nova tentativa de intimidação institucional selará o futuro de como nossos militares desejam ser vistos pela sociedade, mas demandará um desapego do poder que, ao que parece, nossos fardados não estão ainda dispostos a seguir. Quisera nossos comandantes militares admirassem as Forças Armadas dos Estados Unidos e seus princípios institucionais tal qual o presidente do Brasil e seus filhos admiravam a presidência de Donald Trump.
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